«Flauta de Luz» - Boletim de topografia, nº7 |
Tenho adquirido a revista Flauta de Luz. Júlio
Henriques é seu editor e coordenador e abre a publicação com «Civilização».
Aí, poder-se-á ler numa descrição de uma sociedade doente e a crise de
civilização a que assistimos: «(…) A torrente inovadora que tornou crianças,
adolescentes e adultos furiosamente agarrados (enganchados, como se diz no
calão da droga) a computadores, tablets e smartphones criou uma
atmosfera geral de ausência comunicativa, de relação preferível com as coisas,
em que avulta um novo tipo de insensibilização. Juntando a cultura do
narcisismo [que, mais à frente, Anselm Jappe bem explica juntamente com
o fetichismo da mercadoria, nota minha] (modelo parental educativo em
que passaram a evoluir as novas gerações) ao impelido apego destas últimas às
‘’tecnologias da informação’’, chegamos assim a auto-estrada digital conducente
a este coktail de shots corporais de aturdimento garantido.(…)». O mote está
dado e as coisas dividem-se deste modo: os que se apegam às novas tecnologias
sofregamente e aqueles que, como eu, ainda compram, leem e divulgam revistas
como a Flauta de Luz.
De resto, é com verdadeiro prazer que lemos os artigos que
se sucedem a um ritmo vertiginoso para quem pega na revista, perdão, boletim de topografia, sem
a conseguir largar. Comecemos por Raoul Vaneigem, mais lúcido que nunca,
a perspectivar novas insurreições e a urgência em criá-las em direção a uma
verdadeira humanidade que salve não só o planeta como a espécie humana que se
quer autónoma e livre. Que conhece o percurso deste homem, sabe do que fala e
da coerência que sempre o acompanhou.
Interessante a sua posição sobre a epidemia de hoje «Seria mesmo
necessário o coronavírus para demonstrar aos mais obtusos que a
desnaturação em prol da rentabilidade tem consequências desastrosas para a
saúde universal? Esta saúde que de forma constante é gerida por uma Organização
Mundial cujas preciosas estatísticas disfarçam o desaparecimento dos hospitais
públicos? Há uma correlação evidente entre o coronavírus e o desmoronamento do
capitalismo mundial. Ao mesmo tempo não é menos evidente que aquilo que recobre
e submerge a epidemia do coronavírus é uma peste emocional, um medo histérico,
um pânico que simultaneamente dissimula as carências de tratamento e perpetua o
mal assustando os pacientes. (…)». Vaneigem assina mais dois artigos um
deles uma entrevista truncada no Le Monde e que conhece aqui a sua
versão definitiva. Atenção a esta entrevista onde o autor declara a real
importância do movimento dos Coletes Amarelos, juntando as ZAD
(Zonas A Defender), o movimento zapatista e a crítica contundente aos Black
Bloc. Mas, principalmente, a apresentação de uma saída insurrecional e
alternativa ao modelo capitalista.
Temos David Watson, autor de Against the
Megamachine na conhecida Autonomedia, editora libertária
norte-americana, num artigo muito claro «Atualizar os Possíveis» sobre o
possibilitismo e as novas utopias na construção de um mundo diferente.
A «Advertência Final» é um exercício irónico de
quatro investigadores científicos sobre o tão conhecido «Aviso à Humanidade»,
de 2017, que juntou 15 mil cientistas de 184 países sobre os perigos que pairam
sobre o Planeta. Estes 4 signatários advertem, ao tal aviso, que, sem a crítica
ao capitalismo e as alternativas económicas que devem acompanhar essa (ir)responsabilidade
do lucro e da rapina de recursos, podem esperar sentados até ao próximo aviso à
humanidade. As coisas ficarão na mesma.
Um «suprimento litrário avulso» vai dando conta de
autênticos murros no estômago à intelectualidade e ao processo de criação
artística em curso. Se o riso era quase impossível de arrancar a quem lesse ou
consultasse em diagonal os verdadeiros e reais suplementos literários que
proliferam por aí, neste suprimento litrário a verdadeira alegria da
leitura neo-abjeccionista brota, incontrolável. Também há insurgência no riso.
Atenção aos registos de Júlio Henriques «Amar um robô» (lembrei-me de
Sophie, mas podem dar-lhe outro nome qualquer…) e «Mas o que é que nós queremos?».
Não percam a sua leitura.
Os artigos sucedem-se com entrevistas a Jorge Valadas /
Charles Reeve, que assinou agora o livro «Socialismo Selvagem» saído
na Antígona e já divulgado aqui no Deriva das Palavras em
http://derivadaspalavras.blogspot.com/2020/03/a-memoria-e-o-fogo-e-o-socialismo.html
e uma importante entrevista a Júlio Henriques onde se fala, entre outros, de
Paul Mattick, de René Vienet, do Maio 68, de Serge Bricianer ou de René
Lefeuvre, editor da conhecida Spartacus. Uma mostra para uma possível
construção de uma «antologia da poesia ameríndia contemporânea»
acompanhada de artigos de uma verdadeira topografia indígena, tornados aqui os
últimos guardadores da humanidade se quer continuar a ser, como os trabalhos de
Ailton Krenak (que refere o importante «A Sociedade Contra o Estado»
e que conheceu Pierre Clastres), Davi Kopenawa Yanomani,
manifestos da Survival International em defesa dos Povos Índigenas, Stephen
Corry com «Os melhores guardiães da natureza construíram o nosso meio
ambiente e podem salvá-lo», Corsino Vela com «Uma guerra real num
mundo virtual», e «Morrer em Rojava» uma coletânea de depoimentos
sobre os internacionalistas que morreram pela autonomia autogestionária dos
enclaves curdos na Síria, contra o Daesh e o exército turco às ordens da Nato.
Provavelmente, para não dizer quase de certeza, que houve algum ímpeto
irracional de quem defendeu que a Guerra Civil de Espanha foi a última guerra
por ideais revolucionários!
Podem contar-se igualmente com artigos de Jorge Leandro
Rosa, Vasco Santos e Chuang. O primeiro versa sobre as
tecnologias e poder e os dois últimos analisam não só as implicações do coronavírus
e as consequências sociais das novas epidemias para o século XXI. O
último, Chuang, é uma revista e igualmente um blogue. O significado da
palavra é um cavalo que passa o portão, que (se) liberta. A análise do que se
passa na China de hoje, não só ao nível das epidemias, mas igualmente no campo
social e da passagem de uma economia fechada para uma economia de capitalismo
integrado mundial aponta as contradições a que está votada a ditadura chinesa.
É por isso espectável que se tivesse optado pelo anonimato. Mas que é de alguém
que está no terreno e que nos passa informação, não se tem dúvidas.
Também se comemora nesta Flauta de Luz os 100 anos de
Lawrence Ferlinghetti, esse jovem beatnick ímpar!
Um número único, este 7º boletim, de 289 páginas!, com ilustrações fabulosas, que dá
vontade de requisitar numa livraria mais números (a mim faltam-me dois!). Há,
de certeza, na Livraria Letra Livre em Lisboa e na Utopia, do
Porto. Ou então, flautadeluz1@gmail.com .
Ah…e Cesariny, pois claro, com um «Lembrete de
coisas de um passado recente – Uma Raça Maldita». Quem será a «raça mais
infame que apareceu à face da Terra?». Ele dir-vos-á.
António Luís Catarino
Coimbra, 6 de julho de 2020