Um livro relativamente inútil para quem conhece pouco
o que já se escreveu sobre as viagens e o nomadismo poético ou «geopoético»; totalmente inútil para quem já as leu de várias fontes e de datações várias.
A questão que se me coloca é que Michel Onfray é
conhecido por ter editado o excelente livro «A Política do Rebelde», em
1997 e que teve uma repercussão importante como «Tratado de Resistência e de
Insubmissão», o seu subtítulo, nos espíritos dados à revolta e à não
aceitação das normas sociais dominantes, que ainda os há por aí. Ou seja, o que
levou este autor a escrever em 2007 um livro (a edição portuguesa, de 2019, sai
portanto com atraso significativo e com um prefácio a despachar de Francisco
José Viegas) sem qualquer dado novo sobre a viagem, vazio de uma teoria
estruturada do «nomadismo geopoético» que antes já não tivesse sido
apresentada e formulada mais consistentemente por outros? Exemplos não faltam:
Victor Segalen, Kenneth White http://derivadaspalavras.blogspot.com/search?q=kenneth+white
, autores que ele cita, e mesmo a este último retirando-lhe, sem sequer lhe
pedir licença, o termo «geopoético», e outros que ele não cita por não querer, tal
a parafernália de autores que ele trouxe à colação. Onde estão, Ryszard
Kapuscinski ou Claudio Magris, que poderiam preencher uma lacuna importante
como autores contemporâneos? E porque escolhe Hesíodo e não fala de Heródoto?
Já Rimbaud, o nómada, e Pessoa, o sedentário, dão sempre um jeitão para a prosa.
Prosa essa que cansa. Tal o número de repetições de
significados que nunca mais acabam, mais parece que estamos a jogar ao jogo
dos sinónimos. Sejam eles adjectivos, substantivos ou verbos, a coisa não pára.
Se Onfray pensa que produzir equivalências linguísticas tornando-as autênticos mantras
tem como fim sublinhar uma determinada ideia, está redondamente enganado.
Produzem quanto muito um longo bocejo. E a tradução de Sandra Silva é boa,
portanto é mesmo a escrita do autor.
A leitura deste pequeno livro permite-nos descobrir que
Deus estava enganado. Começa logo no Antigo Testamento quando Caim, o
sedentário, mata Abel o pastor nómada (seria mesmo nómada?). Porquê? Bom,
Onfray aqui hesita, mas dizendo que ninguém o sabe, avança com a hipótese de
ciúmes de Caim por causa da preferência Dele por Abel. Seja! O que Onfray nos apresenta,
duas páginas após esta hipótese, é que o Todo-Poderoso muda de agulha no Novo
Testamento quando Cristo sobe ao Golgotá e um «larápio» (que era nómada pela
certa!) Lhe nega água. A partir daqui e «Desde então, associa-se a viagem
sem retorno à vontade punitiva de Deus. A ausência de casa, de terra e de solo
pressupõe, doravante, uma falta um mal infligido a Deus. O esquema paira sobre
os homens há séculos: os judeus, os ciganos, os roms, os boémios, os zíngaros e
todos os povos viajantes sabem que, num momento ou noutro, os desejaram
condenar ao sedentarismo, chegando mesmo a negar-lhes o direito à vida».
Mas então em que ficamos? Deus é ele próprio a favor do sedentário ou do nómada?
É que 2500 anos de intervalo entre o Antigo e o Novo Testamento não é coisa
para Deus mudar assim de opinião!
Já nos verdadeiros conselhos de autoajuda que MIchel Onfray
nos dá (podia ser running ou gastronomia, coisa a que ele se dedicou
igualmente) para nós, viajantes e não meros turistas, é que toda a
viagem começa numa biblioteca. De acordo. Mas com quem? Diz Onfray: «Sozinhos
ou em grupo, a alternativa não é muito animadora». Então como? «(…)
penso que viajar a dois ilustra uma fórmula romana, pois permite uma amizade
construída, que cresce dia após dia, pouco a pouco». Óptimo! Portanto,
com a minha parceira ou parceiro com quem vivo todos os dias? «O nosso
Ocidente cristianizado não aprecia a amizade (…). Para além disso, a moda
burguesa do casamento por amor torna caduco este exercício pagão: no seio do
casal exige-se que o outro represente dali em diante uma série de papéis
afectivos, inclusive o de confidente e companheiro». Portanto, tudo bem desde que
fora do casamento procurando a tal «amizade romana». Entendo-te, ó
Michel! «Viajar a dois permite deixar à distância os indesejáveis, bem
como escolher os indivíduos eleitos. A viagem a dois poupa-nos aos perigos de ser
apenas um e aos inconvenientes de vários». E o filósofo continua a
ensinar-nos numa pedagogia um pouco difícil de pôr em prática, passe o
eufemismo. «Numa viagem digna desse nome, o amor ficaria exposto,
fragilizado. Por exemplo, a relação com o outro sexo fica distorcida ou interdita
na sua espontaneidade durante uma viagem romântica. As possibilidades de
conhecer livremente as mulheres de um país, para falar, rir, discutir, brincar,
sem estar forçosamente preocupado com uma aventura sexual, é estorvada pela
presença da esposa (já entendemos há muito, Michel!), companheira
ou namorada. Do mesmo modo, as mulheres são prejudicadas nas suas relações com
os homens autóctones devido à presença dos maridos, esposos ou companheiros (lá
vêm os sinónimos!)». Conclusão: «Partir com o amigo
oferece a certeza de prazeres diamantinos». E eu a pensar que eram
romanos!
Mas o amor que o homem tem pelo avião ultrapassa
tudo, até Howard Hughes, Lindbergh ou Saint-Exupéry! «Saber-se homem na
carlinga deste instrumento transformado em energia e em velocidade metamorfoseia certamente mais a alma do que a leitura dos Evangelhos».
Ah, Marinetti (ele também o cita, lá para trás)! O elogio do avião
começa na página 66 e só acaba na 72. Bem que as companhias aéreas precisam
disto, no tempo das maiores crises sobre as ditas. Mas não pensem que ele
não casca nos lerdos: «Um elogio reaccionário da lentidão impele ao elogio
da nostalgia, a acalentar a simples paixão pelas recordações e a cultivar a
angústia face ao futuro». Eu até que já tinha reparado nisso, mas as
limitações do passado sem aviões? «Montaigne ia a cavalo, Rimbaud a pé,
Morand de barco, Cendrars de comboio, Bouvier de carro, Chatwin de avião, mas
ninguém impede Kenneth White ou Guido Cerronetti de andarem a pé, nem mesmo
Théodore Monod de optar pelo camelo…». Isto vai tudo numa questão de escolha
do freguês.
No fim da viagem a memória e vamos a um banho de
repetições de que vos falava há linhas atrás: «A memória trabalha-se exercita-se,
solicita-se, deseja-se, caso contrário, definha, morre, seca, dobra-se sobre si
própria, transformando-se por fim numa concha vazia, num ser oco. A imprensa, a
gravura, a fotografia, o cinema, o gravador, a calculadora e o computador
aumentam as memórias artificiais, sem dúvida (…)» Uff!
E no final a lágrima no olho: «Basta sentirmo-nos
nómadas uma vez para sabermos que voltaremos a partir, que a última viagem não
será a derradeira. A não ser que a morte nos surpreenda pelo caminho…»
Para um filósofo não está mal. Realizaremos tudo
se a morte não nos surpreenda pelo caminho!
António Luís Catarino
Coimbra, 8 de julho de 2020