Há todas as razões para o «mainstream» não gostar de um
escritor assim embora, paradoxalmente, esteja com uma grande literatura pela
frente. 1), adivinha-se o seu catolicismo, 2) é duro e pouco sociável, 3)
portanto, contraditório, 4) escreve na forma de conto.
Comprado ao Monsieur
Bloch em Delémont, na Suíça, um alfarrabista antiquário que teve a amabilidade de
me afirmar o bom gosto que eu tinha em adquiri-lo pela soma de 2 euros, junto
a outros e a uma cítara de aprendizagem escolar do século XIX, tive o incómodo
de dizer-lhe que não o conhecia, mas que o simples folhear me levou a
comprá-lo. Continuo a saber pouco dele, refugiando-se nos seus sessenta e cinco
livros que editou e escrevendo livros curtíssimos em contraponto aos
autênticos tijolos que vagueiam pelas (ainda abertas) livrarias. Mais um ponto
contra ele: muitos livros e quatro prémios um dos quais da Academia francesa em
2016. E um prémio com veneno, o «Grande Prémio Católico de Literatura», em
1993. Este homem não é nobe(i)lizável, portanto.
O que eu acho mais estranho é que a beleza e a extrema
limpeza do inútil nas palavras chama-nos para a continuidade do prazer de uma
leitura que Christian Bobin nos dá. Aliás, ele não diz o prazer de ler um livro
deste ou daquele, diz o «prazer de uma leitura» não identificando o quem. E
mais uma estranheza no decorrer da descoberta deste autor foi lembrar-me amiúde
de Houllebecq. O grande conhecimento do humano contemporâneo e até um certo
desprezo pela envolvência social estão presentes fortemente nos dois autores,
embora com meios de expressão diferentes. Como um católico e um ateu empedernido se podem
conjugar, mesmo sem o estribilho estúpido de «os extremos tocam-se»!
Em «L’inespérée» e nos onze contos por ele constituído há
momentos verdadeiramente fascinantes como em «La traversée des images» onde se
lê «Um escritor é alguém que se bate com o anjo da sua solidão e da sua
verdade. Uma luta confusa, sem conhecer a sua conclusão. Um combate de rua, uma
mistura de bandidos, de penas voando em todas as direções e, por vezes, como em
todo o combate, um momento de tréguas». Mais à frente continua «Não é a tinta
que faz a escrita, é a voz, a verdade solitária da voz, a hemorragia da verdade
no ventre da voz».
Em «Le thé sans thé» podemos ver então a incompatibilidade
entre ele e o «socius», a tal verdade contemporânea que ele despreza «A vida em
sociedade é quando todos obedecem ao que ninguém quer. A escrita é uma
escapatória a esta miséria, uma variação da solidão assim como amar ou brincar –
um princípio de insubmissão, uma virtude de infância». Ora esta frase é
colocada na boca de um escritor profissional com um anfiteatro pleno de
debutantes da literatura e ela é dita por um «alter ego» verdadeiro do
escritor, que ele sabe que mentindo para melhor vender, diz a verdade.
O conto «J’espère que mon coeur tiendra sans
craquelures (fendas, em português)» fala da fusão entre imagem e a literatura
afirmando, sem alguma polémica para os puristas da palavra fácil «Falar de pintura
não é como falar de literatura. É muito mais interessante. Falar de pintura é
como se rapidamente acabar com a palavra, voltar lesto para o silêncio. Um
pintor é alguém que limpa um vidro existente entre nós e o mundo com a luz, como um pano
de luz humedecido pelo silêncio. Um pintor é alguém que nos envia, sem parar,
fotografias do mundo. Muitas imagens, demasiadas imagens para as encerrar todas
num portefólio e de as fazer sair de tempos a tempos: eis como o mundo bate no
coração de um desconhecido».
«Uma reforma aos trinta anos» e «Mina» são contos que nos
remetem para a mulher. A primeira, uma educadora de crianças deficientes casada
e com um amante que, mais tarde, a deixa. Conta, entretanto ao marido e chora durante a noite quando ela
chega ao quarto e à casa toda iluminada que ele deixou. Como se a luz ainda se
mantivesse lá, na casa dividida pelos dois e um terceiro que a abandona.
Reforma-se cedo no plano sentimental, e remete-se à relação rotineira «de quem sempre a compreendeu». Mina é um
nome de uma prostituta a quem lhe cabe um cancro de mama com a idade já
problemática de quarenta e cinco anos. Não se trata, mas lembra-se que Mina é o
nome da namorada de Drácula e de todas as personagens que o pai lhe contava em
miúda. Prefere morrer como a «verdadeira Mina» a do vampiro. É ela que lembra
ao leitor que não se diz «Eu queria amá-la», mas sim «Eu amo-a» e, ao dizê-lo,
a descoberta de um amor bem mais profundo do que todo o vago querer.
Talvez o conto menos conseguido do livro, o do real assassínio da
mulher de Garaudy (embora não o cite) às suas mãos. Achei alguns lugares comuns, como os filósofos
são notícia quando matam solitariamente e coisas assim. Por acaso pensei em
Heidegger e em Carl Schmitt, mas este era constitucionalista do III Reich com ares de filósofo.
Guardei para o fim o conto dos mais belos que li de
Christian Bobin. O conto homónimo que deu título ao livro «L'inespérée». Das
mais belas cartas de amor que li. Gostava que pensassem agora em Houllebecq ou mesmo em
Littell, por exemplo, e vejam um católico a escrever «Estou louco por pureza. Estou
louco por essa pureza que nada tem a ver com uma moral, mas a vida no seu átomo
elementar, o feito simples e possível do ser em cada um de nós junto às águas da sua
negra morte, infinitamente só, eternamente só. A pureza é a matéria mais
generalizada sobre a terra. Ela é como um cão. Cada vez que repousamos sobre o
nada no nosso coração vazio, ela vem sentar-se aos nossos pés, fazer-nos
companhia». Se pensarmos no título «As partículas elementares» de um tal Houllebecq, talvez encontrem semelhanças...ou talvez nem por isso, mas foi uma tentativa que espero não ter sido vã.
«Escrevo desde que me lês, desde aquela primeira carta em
que ignorava o que ela poderia dizer-te, que só poderia encontrar sentido nos teus
olhos. Nunca escrevi nada de melhor do que as três primeiras frases daquela
carta: Não acreditar em nada, não esperar por nada. Desejar que alguma coisa,
um dia, chegue. As palavras vieram atrasadas nas nossas vidas. Tu estiveste
sempre à frente do que eu esperava de ti. Foste, desde sempre, o inesperado».
Coimbra, 23 de junho de 2020.
António Luís Catarino