António Pocinho, anos 80. Foto de autoria desconhecida
Recebi este manuscrito (a grafia é de António Pocinho) no
dia 27 de junho de 1980, entre copos infinitos de cerveja no «Café Califa» e
outras substâncias já prescritas, na Rua das Matemáticas em Coimbra e creio que
seguiu para a «Fenda - Magazine Frenética». Não confirmo a sua publicação. Diz, por debaixo da assinatura do
António com quem privei no triângulo maldito de Coimbra – Tomar - Lisboa, isto:
«Poema gravado em Coimbra, nos estúdios do ‘’Bota-Abaixo’’, entre 6 e 27 de junho
de 1980. Som, mistura e arranjos de António Manuel Pocinho e Vasco Santos».
Tenho comigo o original. Se o Vasco o quiser eu terei todo o gosto em dar-lho.
É assim o poema:
O GRANDE SOL
DE REIL
O que está
escrito, está escrito na vida
e aí tudo
tem a sua alquimia.
Descobrir o
início das coisas,
percorrer-se
o caminho ao longo das pessoas,
ficar-se
perplexo com o verbo,
vibrar-se
com a acção
é já de si
uma prodigiosa armadilha,
uma procura
exaustiva da intimidade.
Tudo o que permanece
no domínio
dos lugares
escondidos da linguagem,
da luta de
classes e do poder
está envolvido
por uma misteriosa literatura.
O que nos
resta da ligação entre o sagrado e o profano
e que conduz
a escrita a um jogo demasiado difícil para ela
contém em si
a génese neurótica da ficção.
«Há uma
linguagem na neurose
que se
assemelha ao código da escrita»
- anunciaram
os jornais
onde se
falava dos polícias de dentro e de fora,
das emissões
em línguas estrangeiras,
das manhãs
muito cheias de luminosidade,
muito voltadas
para dentro do seu próprio amor.
Escreve-se
por uma questão alveolar,
por onde uma
necessária respiração das células
onde uma
espécie de transporte activo das palavras,
à semelhança
do que acontece na bomba de sódio
seria um
elemento fundamental
na combustão
da energia poética associada à vida.
Comove-nos
este espaço: a noite, o candeeiro aceso,
a escrita,
os autores, alguém dormindo ao lado.
Dormir na
ausência para acordar na memória.
Onde a magia,
a eternidade,
a infância
dos nossos actos, a revolução?
Há algo de
abusivo na verdade,
no pousar os
olhos sobre o texto,
no beber
mais uma cerveja no «Califa»,
no descansar
do dia-a-dia da vertigem.
Dói-nos este
rock, esta droga
até ao ponto
em que nos iniciamos na imagem,
na álgebra
superior e mortalmente branca.
Recusamos
esta dança, os filósofos
…a
hipotética imaginação da luz…
Perseguir a
palavra: virtude do corpo ou maldição do espírito.
E foi
subornada esta paisagem por um milagre antigo.
Terra
benzida nos «sex and drugs and rock’n rol»
porquê o poeta,
os computadores, a bomba de neutrões?
Armando a
estrada e os anjos de revólver?
Vítimas do
crime no acto em que nascemos,
aceitamos a
chantagem da vida
ao olhar
sobre a misteriosa moralidade destes campos,
pisados por
mulheres descalças em busca de uma linguagem para o sexo.
Caminho
eterno para a aprendizagem da placenta.
Nas águas –
o código amniótico.
Prostituímo-nos
na memória, no cio da palavra, no espaço e no tempo deste corpo.
Rosto
pintado de anjo no cinema: é rigorosamente inútil o poema.
António
Manuel Pocinho
Coimbra,
entre 6 e 27 de junho de 1980