Este livro é um portento. Muito andei eu para aqui chegar - «portento»!
No significado da palavra eu posso encontrar igualmente «encanto», «maravilha»,
«prodígio» que não andam longe do sentimento que o tive a ver e folhear.
Mas deixemo-nos de entusiasmos e apresentemos os seus autores:
de ideia inicial de António Alves Martins, lemos textos deste autor e de
José António Bandeirinha. As fotos são de António Alves Martins. A
edição do livro-quase objeto foi de 50+1 livros todos numerados. Informação
adicional é que o livro foi publicado pela Artes Breves Edições «em
edição única e exclusiva com a chancela (informal)» da editora e a tipografia
foi a muito conimbricense Damasceno e com a qualidade que se lhe (re)conhece.
Portanto, um livro sobre Coimbra, de Coimbra e feito com matéria cinzenta de
Coimbra. Mas engane-se o incauto que pense que é laudatório para a cidade e suas
vetustas instituições. Não é. Talvez esteja ao nível, e não estou a exagerar
quando o digo, de um célebre número único da revista «Via Latina» dos anos 70
que não foi nada agradável para a urbe, assim como os vários textos da «Fenda»
e da «Pravda» que não criaram raízes. Ou das desprezadas «PO.EX.» e do «Círculo
de Artes Plásticas». Sabemos bem o
porquê.
Portanto, o número da própria tiragem é, em si mesmo, uma provocação.
Se assim o quiserem e entenderem ter um livro que vai esgotar rapidamente. Peçam-no,
pois, quanto antes a artesbreves@gmail.com
.
Na apresentação dos autores lê-se que António Alves
Martins se formou em Coimbra em Filosofia, editou poetas como Gil de
Carvalho, António Ramos Rosa, Alberto Pimenta, Jorge Sousa Braga, Jorge Fazenda
Lourenço, Cavafy, Larkin, estes na «Centelha/Fora do Texto» já falecidas e
colaborou com a «Cotovia». Editou, na «Deriva Editores» do Porto, «Cidades Materiais»
em 2016 e mostrou-nos fotografias belíssimas numa exposição homónima do livro
agora editado, no Liquidâmbar, em 2019.
José António Bandeirinha é um arquiteto de Coimbra cujo
curso tirou nas Belas-Artes do Porto e é Professor Catedrático no Departamento
de Arquitectura da Universidade de Coimbra. Foi pró-Reitor para a Cultura e
Director do Colégio das Artes da mesma universidade. É investigador do CES e
Director do DAUC. A sua intervenção em prol de uma Coimbra que rompa com os
cânones que a orientaram infelizmente nos últimos anos é conhecida e reconhecida
por todos os cidadãos que vivem a cidade.
Comecemos pelas afirmações de António Alves Martins
neste livro belíssimo: «Esta brochura, em conjunto com as oito fotografias (+
uma) das dezasseis então expostas [o autor refere-se, portanto, à exposição
realizada no Liquidâmbar] – agora em novo formato / suporte - , corresponde a
um segundo momento dessa materialização única que dá acesso ao tempo propício a
pensar e a olhar a fotografia: a experiência concreta da imagem impressa em folhas
de papel que, embora soltas, são envoltas numa capa cuja janela abre para a
narrativa do livro: o livro, como lugar privilegiado do tempo lento das
imagens (ou do seu silêncio).»
Depois desta descrição da fusão existente entre a palavra e
a imagem com uma desenvoltura e um rigor concetual realçado e apresentado por
António Alves Martins, chegou a vez da justificação do espaço e do lugar
Coimbra «(…) tornou-se assim a cidade exposta – na dupla dimensão de paisagem e
obra – (…) – nas imagens impressas da cidade – é o resultado de um processo que
implica, em primeiro lugar, o assumir da caminhada livre, o movimento de um
olhar disponível para o inesperado de um plano e das suas linhas de fronteira (…)».
Ou seja, este que vos escreve lembra aqui o espírito nómada da Psicogeografia
poética de um Vitor Segalen, de um Rimbaud, de um Baudelaire, ou de um Debord… dado
a conhecer pelo fundador do seu movimento, Kenneth White. É essa procura do
inesperado que exigiram Vaneigem e Asger Jorn, queimando a arte e fundando
espíritos livres e primitivos, igualmente telúricos. É esta a procura livre de um livro que respira
liberdade. E ainda e sempre Italo Calvino, dir-se-ia um alter ego de «A
Cidade Exposta».
Quanto a José António Bandeirinha, expõe a fórmula de
um texto coerente, suave e paradoxalmente de uma grande violência para com as
opções conimbricenses dos últimos anos e, quiçá, de décadas muitas. A narrativa
aparece de duas fontes: uma que foi uma intervenção sua há dezasseis anos e
outra há apenas alguns meses. A junção destes dois momentos, por paradoxal que
se ache, obrigaram-no somente a alguns ajustes, o que decididamente é péssimo
para a urbe. Neles podemos ler, e com o perigo inerente à descontextualização
das frases:
«Para muita gente, para mesmo muita gente, confessada ou
inconfessadamente, Coimbra não passa de uma referência estereotipada. Mas o
problema não é esse, o problema é que a repetição acrítica do estereótipo
desgastou o conteúdo e apagou o significado real. A sensação é que o que fica é
um imaginário paradoxal e altivo que, embora radicado numa cultura urbana ancestral
e identitária – e talvez por isso mesmo -, foi ficando fossilizado, como ecrã
obsoleto da realidade e da vida que se ia degradando face ao fluir dos tempos.»
O mote está dado e José António Bandeirinha não esmorece na
análise da sua cidade. Citando igualmente Calvino, o arquitecto avança
com ‘’Seis propostas para uma Coimbra (ainda)’’ cuja descrição pormenorizada
não caberia aqui. Contudo, no item ‘’Leveza’’ (existem mais cinco que o leitor
averiguará certamente) Bandeirinha avisa-nos «O sentido que aqui se dá à Leveza
é sensivelmente o mesmo que em Calvino [Lições Americanas, 1984].
Basicamente, diz respeito à transformação do que é pesado em leve. Tratando-se
de Coimbra, de um certo estado depressivo e de uma mais que óbvia decadência,
não devemos deixar que a ‘’culpa’’ que neste caso se opõe à leveza, tome conta
da nossa motivação para inverter o processo» e continua sobre o estado da
decadência da cidade «(…) São muito complexas e intrincadas as razões desta
decadência, sobretudo porque não têm uma origem única, e muito menos se podem
expressar num simples parágrafo. No plano temporal, são de ordem
simultaneamente remota e próxima, no plano espacial são de ordem
simultaneamente externa e interna, são de ordem histórica, política, social e
cultural, e cada uma destas ordens auto-alimenta-se e alimenta as restantes.»
De uma clareza meridiana, esta análise que se espraia no
ensaio. E a clareza e a violência suave com que este projecto se desenvolve para
Coimbra, de Coimbra, contra Coimbra, continua nas fotos extremamente belas de
António Alves Martins desta mesma decadência e vivacidade de quem se propõe dizer,
como toda a vida fizeram os autores, que a cidade merece melhor. Que está escondida e que se remete para uma solução uterina, da procura de origens mistas e promovendo
a rebeldia das paredes que nos falam e soluçam (ainda). Isto é de quem não se
cansou.
O livro é, na realidade, fantástico.
António Luís Catarino
Coimbra, 7 de junho de 2020