Atenção que vamos ler Pessoa pelo punho de Jorge Valadas: «Entre
o trabalhador do cérebro, como lhe chamam, e o trabalhador do braço não há
identidade nem semelhança: há uma profunda, uma radical oposição. O que é certo
é que entre um operário e um macaco há menos diferença que entre um operário e
um homem realmente culto. O povo não é educável, porque é povo. Se fosse
possível convertê-lo em indivíduos, seria educável, seria educado, porém não
seria povo. O ódio à ciência, às leis naturais, é o que caracteriza a
mentalidade popular. O milagre é o que o povo quer, é o que o povo compreende.
Que o faça Nossa Senhora de Lourdes ou de Fátima, ou que o faça Lenine, nisso
só está a diferença. O povo é fundamentalmente, radicalmente, irremediavelmente
reaccionário».
Este lindo extracto escrito pelo poeta é retirado do seu
ensaio, inacabado é certo, «Sobre a Igualdade» e espelha, para além do
conservadorismo obtuso do «pensador», o que as elites burguesas pensavam do seu
povo, também ele ilustrado pelo meio tonto e servil «Zé Povinho» de Bordalo.
Ora, «A Memória e o Fogo» actualizado por Jorge Valadas em 2010 e editado pela
Letra Livre, prefaciado por Júlio Henriques, tenta, e consegue, mostrar-nos um
povo que nunca se dobrou mesmo nas maiores tempestades sociais e políticas a
que os séculos XIX e XX assistiram. Jorge Valadas apresenta-nos o inverso da
famosa brandura portuguesa, pela visita guiada aos clubes e às colectividades
operárias do século XIX, aos sindicatos revolucionários, às greves violentas e
armadas de operários e às manifestações de rua retratadas, também, pelo
fotógrafo Joshua Benoliel.
O autor começa o seu livro por uma constatação tão
verdadeira, quanto estranha: Portugal não tem uma tradição de literatura
utópica. Tanto mais estranho, porquanto somos conhecidos por viagens intrépidas
e conhecedores de costumes e usos estrangeiros e longínquos. A haver literatura
utópica ela apareceu-nos pelas mãos dos anarquistas, dando o exemplo de
«Irmânia», de Ângelo Jorge, que o escreveu em 1912, intitulando-se livre-pensador,
vegetariano, naturista, e partidário da Revolução Social à boa maneira de
Kropotkine. A personagem é Manfredo que em contacto com os habitantes de
Irmânia vai descobrindo um novo mundo e que contrasta com as «taras» da
sociedade vigente. Lembramo-nos igualmente que os anos de 1911 e 1912 foram
anos de chumbo para a República com as chamadas greves contra a fome iniciadas
no Alentejo rural e contagiadas rapidamente ao operariado de Lisboa. A novel GNR
reprimiu-as com o resultado de 29 mortos só num dia, centenas de feridos e
milhares de prisões.
Até 1933, e alguns anos depois, os anarquistas e os sindicalistas-revolucionários
não pararam um só dia de luta, distribuindo propaganda, escolarizando e acudindo aos seus
associados dos clubes e associações semilegais, imprimindo A Batalha, A Aurora,
e outros jornais. Caso curioso: o Partido Comunista Português, nascido
em 1921, é um caso raro no panorama da luta operária internacional, sendo que nasceu da Liga
Maximalista de influência anarco-comunista. Bento Gonçalves não terá conseguido
controlar algumas ideias libertárias que ainda permaneciam nas bases e na acção
do partido. Só com Álvaro Cunhal é que aconteceu uma viragem definitiva para o
marxismo-leninismo.
Um dos parágrafos mais interessantes é a desmontagem que
Jorge Valadas faz dos mitos sebastianistas e do que é «ser português» que
teimam em não nos deixar pela mão de Eduardo Lourenço, José Gil e outros
aprendizes de filósofos. Porquê? Em todos estes trabalhos nem uma só linha para
a luta de classes protagonizadas, sem interrupção, pelas «classes perigosas»
portuguesas. A luta social está terminantemente afastada destes. Nem mesmo
Antero, Eça, Ortigão, mais tarde Aquilino ou Ferreira de Castro, são peças dos seus estudos, enquanto agitadores sociais. Jorge
Valadas, lembra neste livro interessantíssimo que quer Antero, quer Eça, foram fundadores
do Partido Socialista (nada tendo a ver com o hodierno) e conheceu os trabalhos
da AIT e da I Internacional.
Já «O Socialismo Selvagem», de Jorge Valadas, que assina com
o pseudónimo de Charles Reeve, é uma obra de mais fôlego. Editado pela Antígona
em 2018, traduz e sintetiza a luta operária desde 1848 até aos nossos dias,
apontando as vitórias, as expectativas de futuro e, principalmente, as derrotas
de uma classe que protagonizou um verdadeiro momento de modernidade em dois
séculos. A Grande Revolução de 1789/93, em que a Comuna foi esmagada pelo Terror
de Robespierre para que o povo não fizesse o «seu» próprio terror, a «Conjura dos Iguais», de Babeuf e Buanarroti e dos enráges e dos sans-culottes, a Revolução de 1848, a
Comuna de 1871, a Rússia e os Sovietes de 1917, Alemanha de 1918/21 e os seus Conselhos Operários, a Áustria de
1919 e a Comuna de Viena, a Espanha de 1936/39 a CNT/FAI e o POUM, o Maio de 68, Revolução Portuguesa
de 1974/75 e os Zapatistas. O denominador comum a estas jornadas: a procura de
autonomia, de independência, de organização de base e de insubmissão perante as burocracias. Soluções que
passavam pela luta pela emergência de Conselhos Operários e produtores. Nomes e
ideias são passados a pente fino como as de Marx, Kropotkine, Bakunine, Anton Pannekoek,
Voline, Archinov, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Lenine, Kautsky, Noske, Otto Ruhle,
Karl Korsch, Durrutti, Internacional Situacionista, Andreu Nin, etc…etc..
Imperdíveis, estes dois livros.
António Luís Catarino
Coimbra, 25 de Março de 2020