Quatro da manhã. Lá em baixo ainda anda gente... (cantaria o Sérgio Godinho) São os resistentes das Correntes. É a última noite, a já famosa noite de sábado. Aurelino vai a casa buscar a guitarra. Falta-lhe um espanhol para o quadro ficar completo, assim à Picasso. Venha um argentino, e tenha-se o Pablo Ramos, venha uma outra porteña, e tenha-se Cristina Norton. E tenham-se canções e poemas e tangos. Mesmo que ele seja Peronista, mesmo que ela seja anti-Peronista. A música a uni-los, intervalada com as canções portuguesas nas vozes insuspeitas de Manuel Alberto Valente, Onésimo ou até Milton Fornaro. Maria Teresa Horta cerra os olhos, deixa-se ir. Manuel da Silva Ramos pede uma outra canção; milonga? Tiago Gomes vai distribuindo a Bíblia entre o bar e a ampla sala de estar do hotel. João Paulo Sousa liberta-se um pouco de si mesmo, mais uns dias e talvez se revelasse. Kellerman diz adeus, mais tarde Onésimo, de partida para os Estados Unidos, para poucos dias depois voltar à Europa. É certamente o campeão das milhas. Aviões, fala-se por ali. Os escritores não gostam. Para voar preferem as palavras. Ou as rajadas de vento da Póvoa. As mesmas que me retiveram aqui. De aviões, lembrara-se durante o almoço a incrível e maravilhosa história de Ivo Machado enquanto jovem controlador de voo no aeroporto de Santa Maria há quase 25 anos. A estória do piloto a quem leu Sophia, Walt Whitman, o clássico «Leaves of Grass». E o piloto? Conseguiu? Sim, amarou. E os canadianos, foram buscá-lo? Não, uma peça do painel matou-o. Ivo de baixa, três meses. Depois ele, salvo pela notícia de uma revista norte-americana que falava de um controlador português de voo cuja poesia salvara a alma de um piloto norte-americano a caminho da Califórnia, sabendo ter apenas uma hora de voo antes de cair no mar. E uma pergunta, a ficar-me à babugem da tentação de contar a história com mais detalhes. - Há tubarões, nestas águas? A história é muito mais bonita, mas há que preservá-la oralmente. De regresso ao hotel. Quatro e dez da manhã. O mar ainda e sempre aqui ao lado (sempre tão grande, maré alta ou baixa). A Manuela não resiste às emoções de nos ver partir. Chora. E não vejo porque dizê-lo seja um problema. Para o ano há mais.
Pedro Teixeira Neves in Acorrentados-5, Pnetliteratura