És cruelMeteste a tua filha num bordel
Enforcaste o teu caniche a um cordel
És cruel
(Ena pá 2000)
“todo o modelo reduzido tem uma vocação estética”
(Claude Lévi-Strauss)
Aqui há uns anos, as meninas faziam-se mulheres a aprender a fazer rosetas de crochet. Agora os nossos autarcas fazem rotundas. Continuamos a andar em círculos. Mudou a escala: as rosetas de crochet protegiam os sofás, o televisor e aprimoravam o enxoval. As redundantes rotundas são agora o enxoval dos nossos autarcas que vão remendando as suas fraquezas com um “urbanismo desgovernado e típico de um país atamancado” (pg. 19), um país onde vingam autarcas que “não perdem tempo com livros” (pg. 114) e que incentivam obras sem licença para estimular os investidores (pg. 114).
Um país autêntico nas suas flores de plástico e nas vacas para galego ver, nos coelhinhos de peluche, no vernáculo de Nel Monteiro, no padre Costa, povoador de Trancoso, nas rendas da Ruth Marlene, no agro-pop de Quim Barreiros (pg.101), nas praxes dos coveiros, nos milagres da IURD.
Descontextualizados do local original de publicação – Visão e Independente – estes textos tornam-se coisa outra, histórias que fogem ao controlo higienista da ASAE, mas que fazem parte da nossa identidade. Este é o Portugal piroso: aquele que não se mostra às visitas.
Miguel Carvalho abre aquela gaveta onde se guardam lembranças, bibelots, tarecos que não queremos que os outros vejam, mas que não podemos deitar fora. Não o faz, contudo, com desdém, com desprezo: fá-lo porque conhece este avesso.
O repórter com subtileza, com ironia, com verdade vai mostrando o que está para além das fachadas idealizadas da ruralidade (cf. A celebração, O martírio, A Agonia).
A miséria que nos é mostrada não é a do pobre, mas honrado, nem tão pouco a do pobre em ouro, mas rico em sonhos (cito de memória a canção da Floribella). È uma miséria muito mais próxima da Comunidade de Luiz Pacheco do que da mitificada casa portuguesa celebrizada pela Amália. Leia-se Pacheco:
“Somos gente pura: os mais novos não sabem o que é a promiscuidade, a minha rapariga se vir a palavra escrita deve achá-la muito comprida e custosa de soletrar: pro-mis-cu-i-da-de (pelo método João de Deus, em tipos normandos e cinzentos às risquinhas, até faz mal à vista!). A promiscuidade: eu gosto.” (Pacheco, 1998:116)
Conheça-se A via-sacra (pg. 85):
”Um homem, a mulher e dois filhos vivem num espaço em que mal se podem mexer da cozinha para o quarto, com um corredor de permeio. E, no entanto, eis-nos num lar onde “se juram promessas de amor quase eterno.” (pg. 85)
Aqui na terra mostra-nos como não nos queremos ver: castiços, manhosos, pirosos e foleiros. Sem condescendências. Um Portugal desencontrado de si, que às vezes gosta de se dar ares.
Morte, vida, lágrimas, miséria, mofo, pobreza e um público sempre pronto a aplaudir os seus artistas, aqueles que, no querido mês de Agosto, preenchem um certo roliço imaginário erótico: e nós pimba! Um Woodstcok regado fartamente a vinho verde.
Um país que nos arrepia quando nos lembramos que só em 2005, se fez Abril no Marco de Canavezes; que já ninguém se lembra de assear a última morada do padre Max, nem do padre Max; mas que quer fazer estátuas a cónegos Melos e a outras bolorentas e salazarentas figuras de presépio; um país onde a tragédia de Entre-os-Rios fez entrar no vocabulário um novo estrangeirismo: briefing.
Aqui na Terra, de Miguel Carvalho é sobre nós. Sobre as nossas grandezas, sobre as nossas fraquezas. Sobre este ir estando e ir indo. Sobre a fé, a falta dela e a musiquinha que nos faz bater o pé.
Aqui na Terra, lido de rajada, mostra-nos um Portugal envergonhado, pobrezinho, remendado, remediado, mas nunca pior.
A capa de Aqui na Terra
Seis meninos Jesus souvenirs desencontrados, desfuncionalizados, disfuncionais de braços muito abertos, mas incapazes do abraço, de olhares mortos, inexpressivo. Meninos de barro sem serventia. Meninos que queremos esconder, porque são feios e só os aceitamos quando bem embrulhados numa teoria bem pós-moderna ou, se preferirmos, se a inserirmos num contexto camp (cf. Sontag).
Susan Sontag define o camp como “uma visão do mundo em termos de estilo – mas uma espécie particular de estilo. É o amor pelo excessivo, pelo “off”, pelas coisas-que-são-como-não-são.” (Sontag, 2004:320). E estes meninos, que são feios, muitos feios, não deixam de nos trazer alguma nostalgia, de despertar uma certa afectividade, de provocar o riso: ``A essência do Camp é destronar o sério. O camp é divertido, anti-sério. Mais precisamente, o camp envolve uma nova relação, mais complexa com o “sério”. Pode-se ser sério a respeito do frívolo, e frívolo a respeito do sério.'' (idem, ibidem:332)
Com graça, Sontag conclui que “A descoberta do bom gosto do mau gosto pode ser muito libertadora. Quem insiste nos prazeres elevados e sérios está privar-se do prazer; está continuamente a restringir as fontes de prazer ao exercer continuamente o seu bom gosto acabará por lhe atribuir um valor que o coloca fora do mercado, por assim dizer. (idem, ibidem:336-7).
Não sei se o Miguel Carvalho está a par das teorias sobre o camp, mas acho que as interiorizou muito bem:
“Em palco, Nel é um leão.
E entre avés marias e vivas à emigração, pede aos jovens para não se viciarem no mal e ao povo para exigir dos governantes medidas para quem precisa.
«Obrigado, camaradas», diz, no final de mais uma canção, vivida em êxtase.
O concerto acaba com peças de roupa no ar, a população em delírio.
Nel ainda cantava mais uma se o deixassem. Mas já chega.
Despede-se. «Não ofendi ninguém. Só vim falar das injustiças que fazem à classe operária». Pimba!” (pg. 104)
Voltemos à capa. Diz Torga, não sobre estes meninos, mas sobre os não menos típicos galos de Barcelos, que “a prova [da falta de habilidade] estava no próprio silêncio dos galos de barro, que na fisiologia moldada e nas asas tingidas não anunciavam qualquer amanhecer. O sangue das veias e da crista era postiço” (Torga, 1990:18). Torga falava na decepção com os galos que ele queria com vida, com outra vida e saiam-lhe toscos e inautênticos. É o que a capa anuncia: o postiço que de tão postiço acaba por ser autêntico. Paradoxal? Incongruente? Pois claro. Não há coerências possíveis ou desejáveis, numa terra onde se encontra o riso misturado com a tragédia, a dor a embalar a vida, a fé nos milagres que hão-de chegar, a manhosice:
“ para o proprietário de uma das barraquinhas alugadas pelo Santuário, o ano do euro é que foi mesmo o ano... de ouro. «As pessoas faziam mal as contas e ganhou-se muito dinheiro», recorda, com um sorriso nos lábios.” (pg. 21)
Em parte alguma comparece, em Aqui na Terra, o gato Floco, celebrizado no blogue
http://adevidacomedia.wordpress.com/. Contudo, há gato em Aqui na Terra. Há o arranhar da trilogia Deus, Pátria e Família, há um ronronar perante uma Ruth Marlene e um Nel Monteiro, há um sorriso de gato, sem gato (Cf. Lewis Carroll) face às tropelias dos coveiros e há mistério (recordemos o Padre Max). Mas, acho que o o Floco terá muito mais a dizer.
Bibliografia
Carvalho, Miguel, Aqui na Terra, Dweriva Editores, 2009.
ALVES, Vera Marques «CAMPONESES ESTETAS» NO ESTADO NOVO: Arte Popular e Nação na Política Folclorista do Secretariado da Propaganda Nacional, -ISCTE Departamento de Antropologia Lisboa, 2007 [disponível em https://repositorio.iscte.pt/bitstream/10071/1349/1/Tese+Vera+Alves.pdf]
PACHECO, Luiz, Exercícios de Estilo, Ed. Estampa, 1998, 3.ª ed.
SONTAG, Susan, Contra a Interpretação e Outros Ensaios, [Agains Interpretation and Other Essays, 1961, trad. port. José Lima],. Lisboa, Gótica, 2004.
TORGA, Miguel, Portugal, Coimbra, 1990, 6.ª ed.