terça-feira, julho 07, 2009

Sobre O Mundo Sólido: A arte da fuga, por Tiago Bartolomeu Costa

Foto de O Mundo Sólido


Apresentação de O Mundo Sólido, de João Paulo Sousa, por Tiago Bartolomeu Costa
Bulhosa, Entrecampos (Lisboa), 23 Abril 2009

Reconhecendo embora o exercício de imaginação extremo que a comparação sugere, facilitemos: há em O Mundo Sólido uma madalena. Uma madalena que não é mergulhada numa taça de chá, que aqui surge sob a forma de uma carta, seca e fria, pragmática e reveladora das tensões que, perceberemos mais tarde, definem todo o conflito interior no qual vive a personagem Francisco, mas uma madalena.
A madalena de O Mundo Sólido é essa carta escrita pelo filho de Francisco, Álvaro, e será a partir do que nela não se pode ler, porque não estava escrito, que entraremos nesse processo de fuga que Francisco decidiu encetar. A partir de uma carta, feita de “um texto breve que estava impresso numa folha branca, demasiado branca, sem uma única palavra escrita à mão, nem mesmo o nome no fim a assinar, permitindo pensar que outra pessoa a teria redigido”, temos acesso a um universo paralelo estranho e distante, hiper­‑pessoal e perigosamente desejado.
Francisco é um homem acossado. Nunca saberemos exactamente porque age assim. Percebemos, no entanto, pelas insistentes recorrências que tem uma (ou vive numa) permanente e traumática relação com os médicos e os hospitais (quase primária e pueril se não soubéssemos que não foge muito à verdade). Sabemos também que saiu de Lisboa para ir para Roma acreditando que conseguia recomeçar uma nova vida junto de Paola, jovem mito, mulher mais nova, também arquitecta, italiana charmosa e misteriosa, que surge nas horas da vida de Francisco, ou Francesco, como lhe chama, como uma sombra, uma figura pouco definida, de quem ele tem medo, nunca saberemos porquê. Podemos imaginar que a memória, o fantasma de Joana, a sua anterior mulher que morreu nas mãos dos médicos, terá algo a ver com isso. O mesmo mecanismo louva-a-deusiano ou aracnoidiano tipicamente feminino é razão para mais uma fuga de Francesco, aliás Francisco. Há ainda o filho, Álvaro, projecção falhada do fugitivo, em tudo semelhante aos conflitos que teve com o pai e longe, muito longe, da cumplicidade, agora tornada em modelo inacessível da que manteve com o avô.
Francisco corre. Corre dentro de um universo que o autor criou paralelamente a esta existência­‑fantasma. E corre seguindo regras onde só são válidas as lógicas concentracionárias e rizomáticas que, ao longo do novelo que Francisco vai desfiando à nossa frente, já não buscam uma lógica exterior mas antes se reorganizam, regeneram, auto-sustentam.
Neste universo só entra Francisco, agora respondendo por um outro nome, que poderia ser Francesco se ele não sentisse que nem esse alter­‑ego, essa projecção em pouco responde à imagem que havia projectado para si mesmo, quando estivesse em Roma. E Roma, como antes Lisboa e antes disso Valença, são apenas e só portas de entrada.
É de uma viagem sem tempo e sem espaço, sem corpo e sem matéria – porque o corpo de Francisco está doente mas só ele o sabe (nem os médicos lhe dizem o que ele quer ouvir, nem Paola desconfia porque não iria perceber, nem os mortos agora lhe valem porque antes de nada lhe serviram), sem tempo e sem espaço porque as várias cidades se sobrepõem criando um mapa único, onírico, kafkiano onde deveria ser kavafiano.
O autor, citando Giordano Bruno, chama-lhe cosmogonia omnicêntrica, ou seja, uma organização espacial “segundo o qual o centro está em toda a parte onde haja um observador e a periferia, uma vez que o universo é infinito, não se encontra em nenhum lugar”.
Francisco é o centro e a periferia, ele define as margens e o que são as margens, desloca as personagens – que deveriam ser figuras reais da sua vida mas que ele manipula a seu bel­‑prazer – conforme os cenários mais convenientes, ficciona uma vida, um universo, uma existência da qual não fazemos parte, que recusamos porque reconhecemos nele o mesmo esquema artificial de relações no qual nos enredamos diariamente.
Não será por acaso que João Paulo Sousa nos coloca à margem deste homem, fazendo­‑o operar em modo automático, quase irracional (para nós, não para ele). Facilmente nos poderíamos identificar com esta figura que de tanto se querer relacionar com o que o envolve mais depressa se afasta, mais distante fica. A razão surge já bem perto final, mesmo que não sirva de completa justificação para esta opção narrativa. É que uma relação de cumplicidade precisa de gestos imediatos e “um gesto que não se realiza no momento em que seria leve não fica apenas adiado, torna-se anacrónico e adquire cada vez mais peso à medida que se afasta desse ponto de flutuação natural, para sempre perdido, transformado em definitivo no que nunca foi e também nunca será, no que apenas poderia ter sido”.
E, precisamente, aquilo em que Francisco não acredita é em gestos imediatos, em dados adquiridos. Ele busca nas acções mais efémeras (a carta do filho, as revistas do avô, o formalismo da empregada que apenas cumpre as suas funções, Paola a dormir ao fim de um dia de trabalho no sofá da sala, barrando-lhe o acesso ao quarto) uma razão última, que seja primeiro o resultado de estratégias em vez de ser apenas e só uma acção. E, com isso, Francisco, o arquitecto que foi para Roma tentar viver, vive “numa solidão cada vez mais irremediável”.
Diz-se que o pior que se pode dizer a alguém é que temos pena dele. Mas eu confesso que tenho imensa pena de Francisco, e de Francesco. Tenho pena que ele não seja capaz de percorrer as ruas de Roma sem se sentir incomodado com as hordas de turistas que enchameiam a Praça de Espanha. Tenho pena que ele não faça amor com Paola como ele imagina que o seu pai fez com Laura, a empregada que nunca assumiu o papel de mãe – ou de como ele, mesmo pequeno e inevitavelmente, queria ter feito com Laura, desejando estar com a mãe. Tenho pena que nem ele nem Álvaro, o filho, encontrem formas de dialogar. E tenho pena que Roma, cidade que ele quis abraçar para fugir à “infelicidade de nascer em Lisboa”, não lhe sirva para outra coisa que não de cenário para o arquitecturar de uma fuga, sem destino.
João Paulo Sousa não facilita, é verdade. O Mundo Sólido é um romance complexo, difícil, inacessível, por vezes. Complexo porque nunca cede na explicação. Difícil porque exige ao espectador um balanço entre o que ele poderia antever a partir da sua experiência com narrativas semelhantes e a confiança numa figura que não se quer deixar apanhar. Por vezes inacessível porque o universo no qual Francisco vive, precisamente por estar cada vez mais isolado, não cabe nos parâmetros tradicionais da normalidade. É demasiado intenso, é demasiado isolado, é demasiado dele.
João Paulo Sousa sabe­‑o e diverte­‑se com isso. Há um nítido prazer na exploração da linguagem, na sobreposição de planos e espaços físicos e temporais, no cruzamento de referências, na relação entre a acção e a imaginação. As mesmas características que encontramos nos seus cuidados textos sobre espectáculos, a mesma atenção ao detalhe, a mesma preocupação com a legitimidade do argumento, a mesma dedicação na construção de planos de leitura diferenciados que servem um espectáculo, em vez de servirem apenas quem sobre ele escreve. João Paulo Sousa coloca­‑se do lado da personagem, narra as suas aventuras – descreve o seu mundo – de acordo com o que Francisco deseja revelar. Dá exactamente a medida do que Francisco autoriza que seja antecipado. O autor preocupa­‑se menos com o leitor, parece­‑me. A dada altura chega mesmo a escrever, através dos pensamentos de Francesco, que a literatura “consegue levar-nos a ver o que não existe”. Logo, é claro na sua posição. Não explicar, evitar a descrição, impedir as palavras de formarem imagens claras, sugerir apenas, inventar, provocar, prolongar os sentidos, inverter a ordem, obrigar a escolher. Obrigar a ver.
Mas os autores também têm filhos predilectos. Francesco, aquele inventado por Paola e apenas visível nas paredes de Roma, por entre os flashes dos fotógrafos, é mais livre que Francisco. Francisco corre e João Paulo Sousa só lhe desenha a estrada. Aquele a quem ele dá água é Francesco. Claro que poderíamos dizer que este Francisco, quando estendido a Francesco, – de Francesco, diria, se quiséssemos ver Jekyll e Hyde nesta vertigoniana aventura, ser Hyde, naturalmente, o alter­‑ego ficcionado de Francisco, apenas existente na vida de Paola, amante e, em si mesmo, a ficção dentro da ficção. É consciente esta escolha e o autor usa a Ilíada para explicar porquê. É que, na sua insistência na descrição, na sua consciente atenção ao detalhe da acção, o autor, tal como Homero ao descrever o escudo de Aquiles, permite que um objecto – no caso uma pessoa – cuja realidade é estritamente verbal se nos imponha como uma representação visual.
Francesco não existe, acho eu. Tal como não existe Paola, nem Álvaro, nem Laura, nem o avô, parece-me. Existe uma ficção dentro da ficção, hiper­‑detalhada como só os mentirosos se preocupam em criar. Francisco está, provavelmente, a segurar a carta, a madalena, a olhar para os espaços em branco daquela folha áspera, a pensar o que vai fazer quando entrar em casa. E tudo isto não passa afinal, de um desejo de que o mundo seja feito à medida do que ele pode controlar. Nenhuma das personagens que habitaram a sua vida lhe serviram para a sua história. Quiseram sempre ter liberdade. E é então que Francisco lê no Francesco de Paola a oportunidade de redesenhar a sua vida. E de, finalmente, transformar o seu mundo em algo sólido.
Tiago Bartolomeu Costa é director da Revista Obscena e é crítico de artes performativas.