quarta-feira, outubro 29, 2025

«Idade da Perda», Daniel Jonas

 

Assírio & Alvim, 2025
Sigo Daniel Jonas com a exacta regularidade com que publica. Na poesia portuguesa contemporânea são poucos que acompanho, mas quando o faço é sem qualquer entrave. Não folheio o livro para ver se o levo ou não. Aqui, com este poeta, com Jorge Sousa Braga, Rosa Oliveira, Golgona Anghel, Maria Lis, Ricardo Gil Soeiro, José Ricardo Nunes ou Miguel Manso não há cá ademanes. É novo livro? Levo-os e pronto. Há outros que os levo igualmente, mas depois de manejados com mão destra e olhos atentos. 

Com «Idade da Perda» o que me chamou a atenção foi a sonoridade, a cadência do poema. Não só as aliterações muitas vezes utilizadas, mas a métrica atenta que seduz o leitor na toada do soneto camoniano ou na ironia da cantiga de maldizer ou de amor. Se quisermos igualmente a cantiga de amigo leia-se «Vai-se o meu colega segundanista» uma metáfora bem sucedida ao ambiente universitário. Mas «Idade da Perda» não se inicia assim, irónico e prazenteiro. Antes pelo contrário: Daniel Jonas convida-nos «(...) A casa junto ao lago, / consolo de quem a solo / junto ao mar de Tiberíades / pressente a paz da multidão de peixes.» (pág.11) Após o bíblico entra-se no nascimento, nas ligações físicas, no crescimento, em todo o momento em perda de vida, saboreando-a ou apartando-se dela. A vida em perda constante só sobreleva o conselho: «Guarda o teu sorriso, filho meu / e nele a espontaneidade da surpresa - / não digas que já nada te surpreende - / mas conserva a graça de te admirar / a sabedoria do novo, nem que seja do escândalo. (...) /Não deixes escapar pela raiz / esse mundo querendo crescer. / Assim serás para sempre o mais feliz dos homens / depois de mim.» (pág.19).

Em «Avalon» nasce-se como fruto. Como árvore através de uma queda vegetal: «Colher a promessa importa antes. / A suave abdução / O corte com a corda que o prende / À artéria vegetal da mãe / Em que se adia. / Prestar-se socorro ao suco / Desatarraxá-lo como uma lampa: / A luz dorme no fruto.» (pág.24) E o esquecimento como parte dessa vida aqui aflorada em «Caducos»: «Desprendem-se os amigos / como folhas de ramos. / Desaprendem-se os amigos / / com os anos // a figueira que deu fruto / nem sombra dá / para seu luto.» (pág.27) E em «Cinzas» o refazer o mundo pelo eterno vigor da transformação natural «Lança ao rio o pai que te resta.» (pág.30) ou pousar o momento melancólico em «Demasiado Mar»: «Quando nos fingimos de morto, a vida acredita.» (pág.50). 

Destaco o longo poema «Na Filipe Folque» (pág.67 a 73) em forma de auto-retrato irónico não sem que alguma raiva transborde para os espaços em branco com que descansamos a leitura deste extraordinário exercício: «(...) Irei assim eu morrer tantas vezes quanto mas permita / a vida, aqui na Filipe Folque como no mundo todo. / Não hei-de ser eu em vez de mim / nem me queira viver  quantas sombras de mim me some. / A não ser que me construa na grande luz / que de repente me escurecer e assim me suma. / Um auto-retrato é mais exacto quanto mais trair o portador.(...)»

alc

«O PREC e o Relógio das Revoluções», Aldo Casas e António Louçã

 

Parsifal, 2025
Não se trata de uma simples comparação entre quatro revoluções, até porque não estamos perante um modelo de análise simplista da História. Antes pelo contrário: há complexidades várias no decorrer do tempo político e social nessas mesmas revoluções. As particularidades revolucionárias da Comuna de Paris de 1871, não são as mesmas da Revolução russa de 17, dos Conselhos alemães de 18/19 ou da Revolução portuguesa de 74/75. Mas há, como não poderia deixar de ser, pontos comuns que António Louçã e Aldo Casas põem em relevo neste livro.

Desses pontos comuns realça-se sobretudo a apropriação dos meios de produção pelas massas populares, pelos pobres, que tentavam auto-organizar-se em conselhos autónomos livres. Muitas vezes de forma ingénua, hesitante, outras enraivecidos pela fome, pelo cerco ou pela miséria souberam usar a força para se apropriarem não só de fábricas, das instituições públicas, de casas devolutas, dos campos terratenentes, mas também expulsarem os possidentes das suas próprias vidas comuns criando a possibilidade de uma outra realidade que há muito desejavam para si baseada na liberdade e na autonomia. 

Paradoxalmente pormenorizada e sintética, os autores apresentam a História dessas revoluções de um modo crítico e visivelmente parcial, estando ao lado dos mais fracos na «conquista dos céus», mas que em nada prejudica a visão geral dos acontecimentos descritos. E assim deve ser a História. Desconfie-se de todos aqueles que chamam a neutralidade para «analisar» factos históricos: ao fazerem-no listam a história anedótica ou falseiam-na propositadamente. Não é o caso deste «O PREC e o Relógio das Revoluções».

Sobre o PREC português, acrónimo pejorativo tardio, que serviu durante décadas para o menorizar ou ridicularizar os dois anos do processo revolucionário, logo após o 25 de Abril e a queda do fascismo e o final da guerra colonial, os factos descritos não constituem novidade, mas as suas consequências são fruto de observações claras, honestas, para além de uma visão crítica já referida. Analisam-se a formação de Comissões de Moradores, por acaso ou talvez não, as primeiras movimentações populares de ocupação de casas devolutas logo três dias após o 25 de Abril, a reconstrução e legalização de infraestruturas dos bairros de lata através de arquitectos ligados ao SAAL, a ocupação de terras a sul (perto de 1,5 milhão de hectares em UCP ou cooperativas agrícolas), a democratização e/ou desmantelamento das estruturas militares repressivas, a ocupação de fábricas cujos donos eram agentes activos na sabotagem económica ou que não atendiam às reivindicações básicas dos trabalhadores, a formação de imensas Comissões de Trabalhadores em todo o país e nas empresas, a movimentação de estudantes liceais e universitários na gestão democrática e pedagógica das escolas, enfim, um turbilhão de desejos e de vontades expressas por uma democracia directa, pelo poder popular.

Se este poder popular no PREC não foi transformado em conselhos revolucionários efectivos como o tentaram em Paris, Petrogrado ou Munique foi pela mesma razão: a sabotagem política de quem se dizia com a revolução, mas que tão rápida quanto eficazmente lutou contra ela, e caso destas últimas revoluções referidas, não hesitando em derramar sangue, prisões ou torturas. Histórias que contam com centenas de milhares de mortos, massacres autênticos que não impedia que se utilizassem até, exércitos estrangeiros para sufocarem os levantamentos populares. 

E se não houve derramamento de sangue em Portugal que possa ser comparável às outras três experiências revolucionárias, não foi por causa dos chamados «brandos costumes» portugueses, como lembram os autores. Os brandos costumes não existiram nos 500 anos de colonialismo selvagem, na brutalidade da Inquisição, nos castigos bárbaros que o «povo» exercia sobre soldados franceses nas invasões, na Guerra Civil de 1832-34, nos mortos do Tarrafal e da PIDE, ou no terror de direita e da igreja no «verão quente» de 75. O que impediu a Guerra Civil em 1974 foi Novembro e a negociação que se lhe seguiu ou que lhe esteve na base. O papel dos «moderados» e dos militares ditos moderados é disso exemplo: não necessitavam de um massacre à «comuna de Lisboa» como lhe chamava a direita e a sua extrema, porque a esquerda perdeu o rumo, tendo força e armas, não saberia para que fim usá-las. Os que fizeram Novembro só eram moderados até perderem essa moderação se necessário fosse. Utilizariam as armas sem qualquer problema de consciência. O regime que hoje temos é de uma Constituição que já nada diz e que a esquerda teimosamente afirma conter «conquistas irreversíveis» que mais não é do que sobras de um Estado Providência depauperado e um item indispensável para a social-democracia. No entanto, após 50 anos, as classes possidentes em Portugal já não necessitam da democracia. Querem uma outra coisa que não tardará a conhecermos. Contudo, o que fica daqueles anos inesquecíveis de 74/75 foi a enorme energia de quem nada tinha a perder e tudo a ganhar. As coisas eram diferentes, tornaram-se outras, o entusiasmo e alegria invadiram as ruas, as assembleias, os cafés, os clubes, as empresas, os campos e as casas. A raiva que eles ainda demonstram possuir é directamente proporcional a esta alegria inscrita na genética revolucionária que ainda existe em nós e muito bem expressa neste livro.

alc

segunda-feira, outubro 20, 2025

«A Consciência de Zeno», Italo Svevo

 

Penguin, 2022. Introdução de Gonçalo M. Tavares. Tradução de Ana Cláudia Santos

Um dos motivos que me levam ao modernismo (e tão depressa não sairei dele, embora de uma forma intermitente, é certo) é o seu gosto pelo inconsequente, pela ruptura com a normalidade, embora hoje nos pareça um pouco ingénua, tal a forma abrupta como as sociedades e as mentalidades se transformaram. Nada hoje importa. Svevo escreveu este romance em 1923, entre as duas guerras e está subjacente a derrocada dos valores burgueses: o casamento como mentira, a mulher como objecto que se pode usar e abusar porque efectivamente é explorada pelo trabalho ou pelo género, o comércio como obtenção especulativa do lucro e da usura (aproximava-se 1929 e a crise capitalista que levou milhões à miséria e ao desemprego), a mentira como alfa e ómega de toda a relação, o individualismo exacerbado e explicativo de todas as atitudes sejam elas danosas ou não para os outros, e, principalmente, a anomia social, característico da época a que se deu o nome de modernismo que abarca, ele próprio, outras modalidades e expressões literárias e artísticas. O Outro não existe e essa indiferença só é ultrapassada quando a consciência se obriga a actos pusilânimes, teatrais, algo burlescos, até beneméritos mas desde logo, repentinamente esquecidos e até lamentados pela atracção de fazer o bem.

Italo Svevo tem uma particularidade que admiro num romancista: é íntegro. No meio da tempestade que foram o anos 20, os chamados «roaring twenties» dos Fitzgerald e companhias, ele consegue ver o essencial: a queda. Não que os jovens ricos não a pressentissem, mas esses, na sua maior parte escolheram a guerra e o autoritarismo. Svevo presume o que aí vem, não augura nada de bom e tem razão: a queda dos valores mais sólidos dão lugar à festa terrífica da ditadura, do totalitarismo onde tudo é possível dentro da orgia dos possidentes. A psicanálise, a sua eventual doença, o acaso como um fim que tudo justifica porque já não decide nada é a forma que procura para uma salvação que nunca virá. Digamos que ele será aquilo que Shaw chamou de um «socialista insociável».

Zeno não se enquadra na época, se bem que aqui e ali tergiverse e se encontre com ela. É essencialmente um tipo bom, que aceita e, simultaneamente, recusa a psicanálise e o positivismo, nessa altura em plena expansão. Escreve por ordem de um médico suíço que odeia, mas que cumpre, com este mesmo livro, o que ele lhe exige. Embora longe de um mero diário ou literatura epistolar, coloca-se como um observador na primeira pessoa. Que experimenta, que age e analisa os resultados da sua acção. A parte final do livro é comovedora pela incompreensão da guerra que se lhe atravessa em 1915, em Trieste. E ser triestino é mais que do um mero nacional, é estar num limbo entre ser austro-húngaro (o nome verdadeiro de Italo Svevo é Aron Hector Schmitz) e italiano. Não escolhe um ou outro. É como ser alsaciano, bascos ou catalães franceses. É nascer em Trier, na Alsácia, como Marx, e ser-lhe dito que afinal a cidade é Trèves. Já velho, custa-lhe não conseguir beber o seu café com leite porque uma brigada alemã marcou-lhe a fronteira da sua terra: «zurük!», palavra espúria que se recusa a aceitar. A guerra, em 1915, coincide igualmente com a sua decadência física. Quantas vezes me lembrei, nessa tristeza entranhada de um velho, a «Morte em Veneza»: 

«Naquele momento, lembrei-me de que entre as muitas mentiras que eu impingira àquele observador penetrante que era o doutor S., estava também a de que eu não voltara a trair a minha mulher depois da partida de Ada. Também a respeito desta mentira fabricou as suas teorias. Mas ali, à beira daquele rio, de repente e com espanto, recordei que era verdade que há alguns dias, talvez desde que abandonara o tratamento, eu não tinha procurado a companhia de outras mulheres. Estaria curado, como defendia o doutor S.? Velho como sou, há algum tempo que as mulheres já não olham para mim. Se eu deixo de olhar para elas, ficam cortadas todas as relações entre nós.» (pág.420)

E sobrevoando um futuro da Humanidade:

«Talvez através de uma catástrofe inaudita, produzida pelos instrumentos, voltemos à saúde. Quando os gases venenosos já não bastarem, um homem como todos os outros, no segredo de um quarto deste mundo, inventará um explosivo incomparável, em relação ao qual os explosivos atualmente existentes serão considerados brinquedos inofensivos. E um outro homem, também como todos os outros, mas um pouco mais doente do que os outros, roubará esse explosivo e irá ao centro da Terra para o pôr no sítio onde o seu efeito possa ser maior. Haverá uma explosão enorme que ninguém ouvirá, e a Terra, restituída à forma nebulosa, errará nos céus livre de parasitas e de doenças.» (pág.438)

Italo Svevo morre em 1928 num desastre de automóvel, aos 66 anos. Sendo judeu, vivendo em Trieste, é possível que o mundo lhe tenha poupado ao horror que se seguiu em nova guerra.

A tradução de Ana Cláudia Santos é límpida, o mínimo que posso dizer. 

alc

quinta-feira, outubro 09, 2025

«Livres de Obedecer», Johann Chapoutot


Antígona, 2023.Tradução de Miguel Serras Pereira
«A gestão, do nazismo aos dias de hoje» é subtítulo de «Livres de Obedecer», de Johann Chapoutot. Sobre a «recuperação» dos nazis após 1945 na RFA, creio que já todos temos uma ideia aproximada. Perto de 200 mil de altos quadros do III Reich e das SS, que se mantiveram quietinhos no seu próprio país recusando a fuga que se lhes ofereceu, foram aproveitados para as novas tarefas administrativas que o «milagre alemão» fez surgir em contraponto ao «comunismo» de leste e em particular à RDA. Mesmo aqueles a quem eram imputados graves crimes de guerra e que tiveram penas pesadíssimas, seriam libertados 2 ou 3 anos depois. A «desnazificação» não saiu dos papéis dos Aliados. Mas, quanto a mim, não é esse o tema principal do livro, até porque, repete-se, já sabemos muito dessa triste história.

O que fez Johann Chapoutot de extraordinário, i.e., de verdadeiramente inovador, neste pequeno livro da Antígona? Principalmente, em dois factores: em primeiro lugar a análise da «filosofia» do nazismo, sustentada na trilogia «Ein Volk, ein Reich, ein Führer» onde observamos a estranha ausência de «ein Staat», numa Alemanha, pós-1933, que construiu aquilo que nos compêndios escolares ainda é definido como um «Estado totalitário». Não que não o fosse, mas o autor chama a atenção para a edificação de um estado completamente descentralizado, com várias «agências» e instituições em permanente emulação e até colidindo entre si, radicalizando-se ao ponto do absurdo e do paranóico para agradar e seguir o que eles entendiam ser a ideologia certa do chefe. Era a chamada «feudalidade administrativa» onde não se sabia bem quem mandava e de onde surgiam as ordens, quer no aspecto económico, funcional, da repressão política e racial, de gestão do seu «espaço vital a leste», ou mesmo da guerra. Não estamos perante um estado nazi centralizado, antes pelo contrário, sendo esta a inovação teórica de Chapoutot. O poder foi entregue à «comunidade racial» dos «bons alemães» que se comportavam com cidadãos obedientes em volta do seu führer e capazes de todos os sacrifícios... e atitudes repulsivas contra quem não fosse da «comunidade». Lembremos que a Alemanha de 1933-45 não teve uma Constituição escrita (nunca foi revogada a de Weimar) e a lei era a vontade de Hitler a quem os alemães juraram obediência.

E aqui entra o segundo factor interessante que deduz, exemplificando, o que acabámos de escrever: o acompanhamento da vida de um general das SS e doutorado em Direito: Reinhard Höhn, aluno de Carl Schmit, embora mais tarde este o repudiasse como jurista emérito. No entanto, isso não impediu Höhn de subir na difícil, quanto perigosa, escada hierárquica do nazismo através da protecção de Himmler e Heydrich dois tipos «exemplares» que não sobreviveram a 45, como sabemos. Mas sobreviveu Reinhard Höhn, sem que tivesse tentado a fuga e tendo permanecido sempre na Alemanha apenas mudando o nome durante dois anos. Retomou a sua actividade pondo em prática as suas ideias de administração nazi, agora para as empresas. Tendo claramente a ideia que os tempos mudaram, mas não ao ponto de encararem a descentralização administrativa como um mal, aplica os temas mais caros do nazismo agora para as empresas, cheias de vitalidade e dinheiro com o Plano Marshall. Fundou a Bad Harzburg, uma escola de gestão, onde impôs às centenas de milhares de novos e ávidos aprendizes da democracia, as suas ideias: «gestão por objectivos» , «flexibilidade», «liberalização e diálogo» (!!!), «delegação de responsabilidades», «autonomia», etc... ou seja, todo um programa liberal, mas completamente assente nos pressupostos do estado nazi e na sua teoria militar de «cumprir objectivos» e responsabilização e coacção de quem não o conseguir. Claro que premiar o mérito, era igualmente um importante pressuposto, tal como recusar qualquer «luta de classes» dentro das empresas e substituir o termo «trabalhador» por «colaborador». Um visionário, portanto.

Hhön morreu em 2000. Perto de 4 dezenas de obras sobre gestão foram editadas após 45, sendo muitas delas escritas durante o nazismo, revistas cuidadosamente, retirando os aspectos mais escabrosos da «comunidade racial» e de «espaço vital» que, paradoxalmente, o afastou de Carl Schmit que defendia uma «comunidade alemã» e um «grande espaço». Não é só semântica: ambos eram nazis empedernidos, mas talvez Schmit visse que o Direito, entre eles o Internacional, ainda era para seguir. Nunca esteve preso, mesmo que contra ele, o acusassem de preparar uma reunião em Berlim, em 1941, para «resolver o problema judaico» a leste. 

Valha uma última nota: este general nazi, teve ensejo de continuar, nos seus escritos em democracia a execrar o nome de Rousseau (em primeiro lugar), de Marx e de Proudhon. Ele saberia porquê.

alc

Reinhard Höhn, o general nazi que abraçou a gestão empresarial alemã pós-45

segunda-feira, outubro 06, 2025

Sobre Gaza

 

Não deixa de ser sintomático as análises de alguns, poucos, sectores da esquerda sobre as últimas manifestações contra a política sionista e criminosa de Israel face à ação levada a cabo pela flotilha que rumava à Palestina, como forma solidária de apelar ao mundo que acabe com o genocídio à vista de todos. Da direita e da sua extrema sabemos ao que vêm. Nada de novo e a petição para manter presa, em Israel, Mariana Mortágua só a alguns surpreende. Verdadeiramente, o único ponto do programa que de lá sai que seja real é a necessidade de prender todos os opositores em prisões políticas. Meter todos em prisões, após escrutínios de uma nova polícia política é o objetivo real do projeto securitário da direita e, nesse campo, o governo português não se afasta muito desse desejo.

Mas de alguma esquerda também já nada me causa surpresa quando dizem e escrevem que estas manifestações vêm tarde, que vigorou tempo demais o silêncio sobre Gaza e a Palestina, que, as últimas manifestações são uma gota de água na luta por uma Palestina livre. Sinceramente, não sei o que querem mais (não) fazer. Estar presente em manifestações, ocupar a rua, responder a provocações por vezes fisicamente, aguentar o olhar de desprezo da polícia que não esconde a sua hostilidade transformada em milícias da extrema-direita, abraçar solidariamente amigos que não se vêm há muito, retomar aqui e ali a agenda revolucionária, não vejo outra possibilidade de tornar as vozes claramente internacionalistas. Mas a «análise» de alguns (já não sei se bem intencionados ou não, sinceramente) é isto: por mais que façamos, que ocupemos as ruas, a coisa já vai tarde, o silêncio impera há muito, é impossível lutar contra os dólares e os complexos militares industriais. Ou seja, o conformismo a par com o derrotismo. Talvez, também, cinismo.

Sair do sofá e do facebook é tarefa árdua para alguns, é certo. Mas enquanto estivermos na rua, enquanto se tornar a rua um forum de liberdade, a direita é inexistente, afunda-se na indignidade da sua ação no parlamento e nas instituições que ela quer destruir. Como me dizia um amigo meu na manifestação de Coimbra pela Palestina, bem pujante por sinal, o problema é se perdemos a rua. Acredito que não. Para outros, para os derrotistas, sim, já se perdeu a rua. Perdeu-se tudo. Nada vale a pena.

domingo, outubro 05, 2025

«Perto do Coração Selvagem», Clarice Lispector

 

Companhia das Letras, 2025

«Que façam harpas dos meus nervos quando eu morrer.» (pág.178)

Clarice Lispector escreveu «Perto do Coração Selvagem» com 23 anos. Só quem ler o livro e reler algumas passagens com o cuidado merecido é que pode relevar este facto aparentemente inócuo. Foi precoce na escrita e na morte, igualmente. É gelo, é cruel, é puro aço de um fio de lâmina que se atravessa em nós, sempre pronta a ferir-nos. Ou seja, cumpre-se mais uma vez literatura. Porque nos envolve emocionalmente, mesmo que Clarice Lispector se mostre extremamente distante e pouco interessada no que viermos a sentir pelo que lemos dela. Reparem nisto:

«Quem sou? Bem, isso já é demais. Lembro-me de um estudo cromático de Bach e perco a inteligência. Ele é frio e puro como gelo, no entanto pode-se dormir sobre ele. Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior serenidade na alucinação. É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro, nos lábios - na língua principalmente -, na superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu não sei dizer.» (pag.20) 

As palavras como traição, como armadilhas montadas para nos apanhar em teias com as quais não nos desenvencilhamos facilmente. Por isso, os indígenas acham que o homem branco fala demais, que esconde o seu sentir através das palavras enganadoras. Creio ser esse o alfa e ómega de um «coração selvagem» que dá título ao livro. As palavras sendo perigosas, possuem, contudo, beleza suficiente para nos levar a um fim, a um sentido traído. 
Como quando escreve em «aço franzindo e esfriando o meu corpo» verdadeiro verso de um poema em forma de aliteração, tal como este «Tudo desliza suave, em combinação muda. Já era no fim - fim de quê? da escadaria nobre e lânguida, inclinada, acenando o longo braço brilhante, o belo e orgulhoso, o fim da noite - (...)» (pág.159) 

A toada é esta, a de Clarice Lispector. Uma impressão que se nos impõe no processo de leitura em que o desapego e abandono é a forma verdadeiramente eficaz na aproximação (também ela erótica) que sentimos pela liberdade total da autora. No entanto, afirma que uma «liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.» (pág.72) Mas que não se pense que as barreiras são transponíveis. É matéria suficiente para construir um mistério a que Lispector deu forma, provavelmente sem um propósito que não seja o que escreveu e como escreveu. Talvez a proposta de um eterno adiamento «porque os últimos cubos de gelo haviam-se derretido e agora ela era tristemente uma mulher feliz.» (pág.116)

alc