quarta-feira, julho 30, 2025

"O Sentido do Fim", Julian Barnes

Quetzal, 2011. Tradução de Helena Cardoso
Este é dos tais livros que me convidavam a lê-lo desde há muito, não sei ainda hoje porquê. Uma extrema desilusão. Barnes sabe do negócio da literatura levezinha, pós-moderna, caduca desde que apareceu nos anos 80 e que não saiu desse registo. Se vende bem é para continuar. A fórmula, tão eficaz, quanto desonesta aí está: uma grupo de amigos em Cambridge que mantêm contacto. Desses quatro, um suicida-se quando estava com uma ex-namorada da personagem principal, um tal Tony. O suicidado era Adrian. A culpa, porque há sempre culpados, ou a percepção da culpa, vá-se lá saber, foi dessa namorada meia louca. Mas veio a lembrar-se de uma carta tramada que lhes mandou a vingar-se da traição. Depois, é a descrição dos pais de cada um deles, quase todos alcoólicos. Sexo, cancros a esmo, drogas que prescreveram, aproximação da morte, sem que a finitude seja de facto uma constante do livro. Solidão, expulsões, indiferenças, filosofias baratas daquelas que não cansam muito a cabeça e Cambridge lá tão longe... A reforma vazia de sentido, uma olhadela ao tempo que se esvai numa biblioteca pública, para o solitário se entreter porque a vida é mesmo assim. Um tédio igual ao do livro.

Julian Barnes é, contudo um vencedor de prémios. Ganhou tudo (menos o Nobel, mas ainda vai a tempo) e casou-se com uma agente literária que lhe vai informando, certezinha, qual o gosto do público hodierno (o Saramago também casado com uma agente literária, nada tem a ver com isto, entenda-se. A comparação morre aqui!). Também a Quetzal sabe da poda. E o «crítico» José Mário Silva idem, idem, aspas, aspas, que diz da sua escrita, na própria capa do livro, que «raia o sublime». O sublime foi o aviso do sentido do fim: não me parece voltar a ler Barnes. Fim.

alc

sexta-feira, julho 25, 2025

"Cossacos", Lev Tolstói

 

Relógio D'Água, 2010. Tradução e notas de Nina Guerra e Filipe Guerra
Continuo no registo de Tolstói sobre o Caúcaso e, ao mesmo tempo, assinalar um apontamento sobre a tradução de Filipe Guerra, muito recentemente falecido e que, juntamente com Nina Guerra fizeram um trabalho notável directamente do russo.
É um lugar-comum dizer-se que a literatura de Tolstói é universal, sendo que este parte de uma dada realidade, aparentemente localizada, para descrever todas as misérias, vaidades e realizações humanas (sejam elas boas ou más). Daí que George Steiner tenha comparado «Cossacos» às obras de Homero. Não me choca a afirmação, sinceramente. Depois de o lerem, caso o não tenham feito ainda, terão o mesmo sentimento de uma humanidade registada nas letras inconfundíveis de Tolstói. E, sim, lembrei-me várias vezes de episódios da Odisseia, pelo desregramento, abusos de todos o tipo, assassinatos cruéis, liberdade total das acções humanas que sabendo da ira de deuses castigadores, tentavam ser maiores do que eles. 

Tolstói escreveu «Cossacos» em 1952. Ora, foi um ano antes que se juntou ao exército russo contra todas as opiniões de amigos e familiares (não por integrar o exército, mas por causa da fama do Caúcaso). Sendo que, para um junker como ele, a comissão era de quatro anos, podemos afirmar, com alguma segurança, que Lev Tolstói, o escreveu ainda durante a comissão militar, mesmo que tenha acabado este romance, dez anos depois. É importante fazer estas contas para entender as descrições muito vívidas do Cáucaso e da «sua» Tchetchénia enxameada de guerreiros independentistas, cossacos que lutavam com os russos e os desprezavam simultaneamente, mulheres que tinham um poder efectivo nas aúns (aldeias) vazias de jovens e homens em permanente guerra, caçadas ou negociações tribais, bebendo vinho quente, vodka e infligindo ao inimigo castigos cruéis. Podemos supôr que o jovem Tolstói, saído da Moscovo cosmopolita e de amizades fictícias, se tenha apaixonado vivamente por esta «verdade» tão real, como atractiva pela liberdade que demonstrava. As relações humanas eram nítidas, vivazes, sem pinga de fingimentos, frontais. Por vezes, violentas. A personagem central tomou o nome de Olénin, certamente o alter ego do escritor.

Tolstói percebeu, no século XIX, que não se pode subjugar o Cáucaso. E, a menos que o consigam, os custos seriam enormes para o agressor. Os russos entenderam-no só em parte e, pelo que lemos em «Cossacos», só com um enorme tabuleiro de xadrez, em que as peças eram mudadas constantemente, se poderia permanecer como ocupante numa Tchetchénia ou em todo o Cáucaso. O que percebemos é que os exércitos russos sabiam ao que vinham e ao assinar tratados, muitas vezes só a palavra bastava, tinham a percepção que seria por pouco tempo. Mas mantinham-se apesar do desprezo enorme que Tolstói reservava para com o Estado-maior, príncipes e o próprio Czar Nicolau I, que reverteu a abolição parcial da servidão de Alexandre I. O retrato que dá dele é uma peça literária inesquecível. 

Foi com amargura que Olénin (Tolstói) pediu a transferência de local, abandonando a sua aldeia cossaca e a mulher tchetchena por quem se tinha apaixonado sem que houvesse qualquer correspondência da parte dela. Tarde, percebeu que não sendo um deles, apesar de provas reais de amizade de alguns dos seus habitantes, se tornaria um viajante, um nómada que em breve sairia do território livre das montanhas e das estepes. Acredito que lendo o final deste «Cossacos», nunca mais o esquecerão.

alc

quarta-feira, julho 23, 2025

"Khadji-Murat", Lev Tolstoi

 

Cavalo de Ferro, 2014. Tradução de Olga Solovova 
«Khadji-Murat» chega-nos do Cáucaso onde Tolstói esteve quatro anos a cumprir serviço militar como junker, após ter desistido da vida «dissoluta», como gostam de afirmar os seus biógrafos, que mantinha em Moscovo. É evidente que não vou classificar esta novela, porque seria de uma arrogância extraordinária tentar falar de Tolstói literariamente. É, tão-só, um dos maiores da literatura que escreve sobre um povo e com ele, um dos chefes carismáticos que se vê enredado em valores familiares e tribais que irão chocar com os motivos independentistas que o fazem lutar pela liberdade face aos russos. Ou, talvez, pelo que entende ser a liberdade e continuidade dos seus costumes ancestrais de um povo guerreiro da montanha. Tolstói, como génio que é, não se compraz em dar a sua «opinião» sobre o que vê, sente ou observa com atenção peculiar. Simplesmente, descreve o comportamento altivo de um homem que aparentemente trai um outro chefe que lutava contra os ocupantes e se passa para o outro lado - o dos russos. Isto é o que vemos, objectivamente. Mas, para lá, desta história, há uma outra e outra e outra. Tal como sucessivas camadas vemos que Murat é fruto de de uma situação que não tem saída e, como se comprova no final que escuso de desvendar aqui, nem a Rússia constitui qualquer liberdade, nem qualquer dos chefes tribais da Tchetchénia consentem que tenha acesso à sua e à dos seus. A Rússia oitocentista estava longe de o entender, mesmo que o tenha usado. O mundo de Hadji-Murat soçobra com ele, mantendo a sua altivez e orgulho intactas.

alc

sábado, julho 19, 2025

«Criador de Estrelas», Olaf Stapledon

 

Editora VS. 2024. Tradução de Carina Correia. Prefácio de Tiago Pires Marques

Na contracapa deste livro Jorge Luís Borges e Arthur C. Clarke avisam que se trata de «uma novela prodigiosa», escreveu o primeiro, e de «a mais poderosa obra de imaginação alguma vez escrita», afirmou o segundo. Assino por baixo, evidentemente. No entanto, devo dizer que tanta imaginação levou-me a prescrutar a net sobre a biografia deste homem procurando, em vão, algum fio condutor que me levasse à constatação, um pouco voyeurista, que terá abusado de drogas, mescal ou álcool em abundância. Nada disso. Olaf Stapledon, inglês bem-comportado, escreveu esta obra em 1937 e foi, pelo que observei, um tipo de gentleman admirador das ideias marxistas, adepto do materialismo histórico, não sem que transpareça nas suas páginas um certo incómodo pelas possibilidades de aparecimento de totalitarismos através das utopias bem intencionadas como foi a da construção da URSS. Se nos ativermos às datas da publicação de «Criador de Estrelas» observamos que foram escritas logo após os processo de Moscovo e, sem o referir explicitamente, ele dá-nos a percepção dessa incomodidade que atravessou toda a intelectualidade da esquerda inglesa dos anos 30. 

Essa incomodidade não se vislumbra no claro darwinismo de que foi absolutamente adepto. Ou pelo pacifismo que abraçou desde a objecção de consciência que proclamou na guerra de 1914/18 tendo servido o exército inglês no salvamento e tratamento dos feridos da frente. Em 1940, contudo, já não o encontramos envolto nos movimentos pacifistas e atacou claramente o nazismo e o fascismo. Morre em 1950 e ficou com o apodo de «pai da ficção científica» moderna e contemporânea. Este conhecimento da devastação que traz a guerra, por quem a viveu de perto, transparece em cada página.

Sobre o livro em si, será difícil descrever a sucessão de acontecimentos e viagens quer interplanetárias, ou mesmo intergalácticas. Tudo é possível em «Criador de Estrelas»: a possibilidade de viajar a uma velocidade superior à da luz, quer através do processo mental, quer de outras, muitas, viagens do próprio planeta com um sol artificial, irradiando a energia necessária para encontrar outros mundos, também eles inteligentes, ou puramente sencientes que ia encontrando, juntamente com um outro habitante de Outra Terra. A sua «imaginação prodigiosa» levou-o a prever aterradoras alterações climáticas na Terra (é evidente que é tudo imaginado!!) e a solução para o que observamos com a deslocação gradual do eixo da terra: nada como uns foguetões atómicos que seriam colocados nos pólos e, se ligados continuamente, colocariam o nosso planeta nos eixos, ou melhor, no eixo inicial. Sinceramente, adoptei este método como meu, se disso tivesse hipótese! Já com a eugenia, desgraçadamente em voga à época, Olaf Stapledon via-a como tendo uma marca positiva, como melhoramento da inteligência humana que levaria as sociedades ao entendimento e paz globais. Creio que sobre a «inteligência humana» e o seu desenvolvimento posterior a 1950, estamos conversados. Sobre a paz, idem. Sobre o fim do racismo, aspas, aspas!

Fiquei com um travo amargo após a leitura de «Criador de Estrelas». Em primeiro lugar, a própria imaginação do autor limita-me a esmo: não consigo idealizar um planeta inteligente submerso pelas águas de um oceano em que os seus habitantes tinham uma vela na crosta das suas costas, que se locomoviam com o vento e que comunicavam entre si através de sinais acústicos. Como se poderia ler Heidegger com estes sinais tão básicos? Olaf Stapledon não explica esse verdadeiro impedimento social. Vida inteligente nas plantas, sim, conheço muito bem e algumas delas existem na política portuguesa. São uma espécie em absoluto desenvolvimento até pelas lianas que se reproduzem em movimentos sexuais através do pólen e do perfume que lançam. Por que não? De resto e em segundo lugar, cada página, uma novidade, até ao cansaço final que nos tolhe o pensamento diminuído já pela impossibilidade manifesta em acompanhar o autor. Finalmente, a leitura era-me seguida de imagens contínuas de seres extraordinários, mas sómente nas gravuras e na banda desenhada dos anos 30 e 40 do século XX e que eram a maravilha dos miúdos dos anos 60 nas páginas de domingo de «O Primeiro de Janeiro», d'«O Século» e do «Diário de Notícias», com mulheres poderosas de revólver à cintura fina e de guerreiros «armários» de collants vestidos. Ambos os sexos em procura constante de glória eterna em planetas desconhecidos. Não se diga que não os amámos.

alc

Annemarie Schwarzenbach. Estudos 5


Anne Marie Schwarzenbach. Estudos 5
com a Galeria/Atelier Ícone

segunda-feira, julho 14, 2025

"Abrandar ou Morrer - A economia do decrescimento", Timothée Parrique"

 

Livros Zigurate, tradução de José Mário Silva, Maio de 2025. O Público de 7 de Julho de 2025 publicou uma entrevista com Timothée Parrique.

A leitura deste livro fez-me recordar uma célebre frase de um ex-jogador de futebol que analisou a sua época ganhadora com «...estivemos à beira do abismo, mas demos um passo em frente!». Não estou a ironizar e esta frase vai direitinha para aqueles que pensam que o capitalismo pode renovar-se por si só, tornando-se «verde», «solidário», «amigo da natureza», «socialmente justo», «democrático», etc. Não, não vai, porque a o seu adn é o lucro acumulado e o crescimento contínuo até ao infinito, se possível fôra e existindo, ou não, um abismo à sua frente. Pouco lhes interessa, aos mais ricos do mundo inteiro (os tais 1%), que o planeta se exaure, que as alterações climáticas façam soçobrar povoações ou países inteiros, que a percentagem de pobres no mundo inteiro tenha aumentado exponencialmente, ou que o Sul ande afogado em dívidas impagáveis aos países do Norte desenvolvido, extractivista, imperialista, neocolonizador, que lhes impõe as emissões de carbono em deslocalizações de empresas tóxicas. Pouco lhes interessa, igualmente, que exista uma panóplia imensa de «trabalhos de merda» (David Graeber), inúteis e tóxicos, que não sem alguma lógica capitalista e especulativa, são os mais bem pagos.

«Abrandar ou Morrer - A economia do decrescimento», de Timothée Parrique, não é somente, um manifesto ecologista. Certamente ecossocialista, certamente anticapitalista, mas eivado de um optimismo que até nos pode irritar, pela apresentação tão desconcertante, como sustentadamente viável, dos pressupostos do decrescimento, movimento que tem vindo a alargar-se, cada vez mais, na opinião pública e desde os inícios dos anos 70. Podemos situá-lo num anticapitalismo, mas não deixa de ser sintomático, os ataques que lhe são arremetidos, quer pelos ecologistas, quer pela esquerda parlamentar europeia, ou que está em vias de o ser, que se recusam a apresentar aos seus eleitores propostas sólidas e congruentes de transição pelo decrescimento e reformulação dos itens do PIB, alfa e ómega do capitalismo e indicador de um crescimento enganoso.

Se o decrescimento, segundo os seus detractores, não resolveria nada, antes enterrando as pessoas na pobreza e na desregulação social, no desemprego, perguntar-nos-íamos por que razão o «crescimento» capitalista não teria já resolvido a equação da desigualdade e, pelo contrário, a tenha aumentado exponencialmente, com o aparecimento de fortunas colossais nunca antes visto, mesmo no liberalismo puro e duro do século XIX. As críticas ao decrescimento são de tal modo desproporcionadas e violentas que chego a admitir que talvez Timothée Parrique tenha razão na apresentação deste livro/manifesto. Sólido nos argumentos e dados no ponto de vista económico e social, é contudo, no plano político onde alguma hesitação se faz sentir. É evidente que o processo de decrescimento (volta-se a sublinhar o aumento de pessoas que investem no «ter menos, para ganhar mais vida») está ligado ao aumento da democracia e do movimento cooperativo e autónomo, municipal até, reconfigurando as empresas, tornando-as não lucrativas e proibindo e criminalizando, por exemplo, a obsolescência, entre perto de 380 itens que se cruzariam na proposta ecossocialista. Sintomática foi a resposta de Michel Rocard um peso-pesado do «socialismo» francês que ao ouvir, pela primeira vez, estas propostas, imaginou de imediato uma «guerra civil», como se essa realidade não existisse já e promovida pelos mais ricos e pelos estados que desmantelam os serviços públicos e descartam qualquer hipótese séria de uma economia socialmente útil. 

O decrescimento torna-se assim a única saída para uma fase de transição que espolete para uma realidade-outra que pode ser o que quisermos, desde que o capitalismo morra de vez. Exemplos de verdadeiras alternativas não faltam.

«Termino com o meu livro preferido, ''The Future is Degrowth: A Guide to a World beyond Capitalism'' (Junho de 2022), de Matthias Schmelzer, Andrea Vetter e Aaron Vansintjan. Verdadeira enciclopédia do decrescimento, encontramos nele a integralidade da literatura (quase uma centena de conceitos) cuidadosamente organizada em tipologias: ste críticas do crescimento económico (ecológica, socio-económica, cultural, anticapitalista, feminista, anti-industrialista e internacionalista), cinco correntes de decrescimento consideradas de diferentes ângulos (as instituições, a suficiência, as economias alternativas, o feminismo, tal como o pós-capitalismo e a alter-globalização), três princípios do decrescimento (justiça ecológica; justiça social; autodeterminação e a vida boa; independência em relação aos imperativos do crescimento) e seis famílias de propostas (democratização, economia solidária, e bens comuns; segurança social, redestribuição e limites quanto à acumulação de riqueza; tecnologias conviviais e democráticas; revalorização e redestribuição do trabalho; democratização do metabolismo social; solidariedade internacional). este livro, por si só, resume perfeitamente o vasto campo de estudos em que se tornou o decrescimento.» (pág.163)

alc

quarta-feira, julho 09, 2025

"Intelectuais Portugueses e a Ideia de Esquerda num Tempo de Transição (1968-1986)",João Moreira

 

Afrontamento, 2025
Um dos mais estimulantes ensaios sobre a Esquerda e o seu passado, não tão distante assim quanto o título supõe, tendo em conta que alguns dos pressupostos e ideias das três personagens, aqui retratados na capa do livro, ainda continuam vivos, mesmo com outras linguagens e propósitos. Deve-se isto a João Moreira que, antes, já tinha prefaciado um livro de João Martins Pereira «Portugal e a União Europeia» e que aqui demos conta ( Deriva das Palavras: Resultados da pesquisa para João Martins Pereira ); este estudo debruça-se sobre o caminho teórico e ideológico percorrido por Eduardo Prado Coelho, António José Saraiva e João Martins Pereira entre 1968, início da tão fugaz como enganadora «primavera marcelista», e 1986, data da nossa entrada na União Europeia, no fundo, o corolário da normalização capitalista e democrática. 

O que torna ainda mais interessante este estudo é propormo-nos, ao mesmo tempo da sua leitura, um exercício subjetivo e individual de  colocarmo-nos (a nós que vivemos na adolescência a revolução de 1974-75) sob o olhar de um jovem investigador que observa criticamente o percurso, nem sempre óbvio ou muito linear, das esquerdas a que estes pensadores deram forma e que, de uma certa maneira, pertenciam. Resultado deste teste: nós estamos todos lá e são centenas de milhares os que sentiram politicamente o tapete fugir-lhes debaixo dos pés, os que procuraram sofregamente alternativas que muitas vezes se transformaram em fugas para a frente ou becos sem saída. A(s) Esquerda(s) ainda hoje paga a tergiversações a que foi sujeita após os anos 80 proclamarem o «there is no alternative» de Thatcher e Reagan e o liberalismo subsequente. Dá vontade de dizer que nós somos eles, mesmo que por pouco tempo ou em alguma circunstância que vivemos intensamente e que já reservamos para nós próprios em memórias fugidias.

Profusamente anotado e com transcrições de cartas e artigos de opinião de António José Saraiva, Eduardo Prado Coelho e João Martins Pereira, João Moreira consegue, de um modo notável e fruto de um trabalho meticuloso, dar-nos uma perspectiva clara de percursos extremamente difíceis de distinguir no campo da esquerda e que só revelados com citações e influências, muitas das vezes exteriores, como, aliás, é uma constante do intelectual português. A conjuntura sócio-política quer no mundo, quer em Portugal, também aqui não é esquecida o que esclarece, sem alguma dúvida, algumas das posições mais problemáticas assumidas por alguns dos protagonistas.

Não se pode imaginar a esquerda em Portugal sem o manto protetor da PCP. Em 1968, ainda pontificava a sua influência nos intelectuais portugueses, não sem que o maoísmo, o trotskismo, a onda libertária do Maio 68, ou a luta armada, lhe tivesse corroído os seus alicerces ideológicos. Quer António José Saraiva, quer Eduardo Prado Coelho foram militantes do PCP, embora em períodos diferentes, até pela diferença de idades entre um e outro. O primeiro foi, talvez, o que deu a maior volta na sua vida política, principiando na ortodoxia pura para um apoio tardio à política autoritária de Salazar. Pelo meio, atravessou várias fases, como João Moreira demonstra principalmente nas cartas ao seu amigo e militante comunista Óscar Lopes e na revista Raiz e Utopia, só para utilizar dois exemplos dos muitos que o livro nos dá. Eduardo Prado Coelho, inicia o seu militantismo no PCP já após a Revolução e mostra-se sempre anti-estalinista e heterodoxo, o que não deixa de criar alguns escolhos em camaradas de partido e mesmo no sector intelectual. Em 1976 já não se encontra militante do PCP, enveredando pela construção de uma alternativa entre o PC e o PS e levando-o ao MES, à FSP, ao GIS, à UEDS e, talvez já cansado, ao eanismo e, finalmente, ao PS. Não deixa de ser importante verificar que os quatro primeiros partidos referidos tiveram a coragem de se autodissolver pelas impossibilidades práticas de continuarem o seu caminho. No meio desta viagem, o debate e as ideias que eram uma constante dentro das esquerdas, foram apresentadas de uma maneira primorosa pelo trabalho de João Moreira. Verificamos, nesse estudo, o verdadeiro vigor intelectual das esquerdas e, paradoxalmente, a sua própria fraqueza organizativa. E é aqui que entra João Martins Pereira, o único que embora não pertencesse ao PCP e nunca tivesse sido seu militante, foi secretário de estado da economia do IV Governo Provisório, tendo-se demitido alguns meses após a experiência. É também ele que apresenta uma lucidez e uma crítica que o coloca entre os maiores intelectuais portugueses desde os seus escritos em «O Tempo e o Modo», passando pela redacção da «Gazeta da Semana» e «Gazeta do Mês» até à publicação do arrasador «No Reino dos Falsos Avestruzes» em 1986, data-limite deste ensaio. Nunca deixou de ser marxista crítico, a forma mais óbvia e honesta de ser «marxista». 

É notável igualmente, observar criticamente o percurso paralelo que muitos militantes da esquerda (hoje muito conhecidos nos media e na política) fizeram diretamente para a direita e para o poder, em pouquíssimo tempo e com os mesmos argumentos da chamada «nova direita» francesa que coincidia com as teses liberais da «nova esquerda» da revista «Risco»: «...a esquerda morreu e tem consigo o germe do totalitarismo». Talvez seja mesmo uma notícia de morte um pouco exagerada.

Não se pense, contudo, que estamos perante datas estritamente limitadas. João Moreira consegue dar-nos uma visão geral do mundo cultural e intelectual envolvente a que Portugal esteve criminosamente alheio durante o salazarismo e o «volte face» do marcelismo optando pela continuação da guerra colonial e a chantagem da extrema-direita, saudosa dos velhos tempos da repressão e terror do salazarismo. Mais uma vez, no campo das ideias, Portugal chegou atrasado, tíbio. E a oposição democrática, a Esquerda e, mais tarde, o período da Revolução de 74/75 vai refletir as divisões, as incompreensões, as tragédias que as esquerdas conheceram até hoje. Talvez conhecer estes percursos nos deem mais uma ferramenta de análise para criar todas as utopias, mesmo que alguns de nós as tenham abandonado, porque a aceitação do real não será muito melhor opção. É isso que faz igualmente a atração pelas coisas novas, pelas tais «novas subjetividades» igualmente referidas neste livro notável de João Moreira.

alc

Heiner Müller. Estudos 5

 

Heiner Müller. Estudos 5. Tinta da china, acrílico e colagem. 
Com a Galeria / Atelier Ícone 

quinta-feira, julho 03, 2025

Camille Claudel. Uma nota sobre biografias


Camille Claudel (1864-1943)
Uma fotografia da jovem Camille Claudel faz-me introduzir uma tema que me é caro: o das biografias. Camille Claudel era uma mulher bonita e, além disso, uma escultora que teve como mestre e professor Auguste Rodin que exerceu sobre ela um poder pessoal e profissional bem comprovado pelos factos. Hoje, chamar-se-ia extrativismo intelectual e artístico a forma como Rodin tratou a sua jovem aluna. Não mostrarei aqui a fotografia, existente na nuvem digital, do estado em que se encontrava após 30 anos (!!) presa num hospício francês e depois de várias missivas a rogar pela sua liberdade. Paul Claudel, seu irmão e poeta católico, não sai bem nesta história. Aliás, sai mesmo muito mal e o filme «A Paixão de Camille Claudel», com Isabelle Adjani e Gérard Depardieu não é suave para com aquelas personagens masculinas. 

É, contudo, uma fuga à regra a que eu próprio me impus. Vi este filme, é certo, mais por curiosidade ocasional que crescia à medida que as imagens e as situações se sucediam, do que saber, através dele, a vida de Camille Claudel de que conhecia, em catálogo, já algumas obras e parte da sua vida coartada inutilmente pelos familiares e por Rodin que invejava o seu fulgor escultórico. 

Não leio biografias por sistema e menos ainda as chamas «cartas de amor» de artistas ou poetas que me foram importantes e, pelo que experimentei, nas poucas que li, souberam-me sempre a pouco, ou achei demasiado tendenciosas ou mesmo inverosímeis. Daí, ter lido com algum tédio misturado as cartas de Fernando Pessoa à Ofélia e nem sequer tive interesse, mínimo que fosse, em ler as cartas de amor entre Paul Celan e Ingeborg Bachmann, entre António José Forte e Amélia Bento, ou as de Proust, de Annemarie Schwarzenbach, de Virgina Woolf, de Oscar Wilde ou as de Nietzsche. 

Agora, surgem-me duas biografias de autores portugueses que requerem algum fôlego para as aceitar e que, por isso, nunca lerei, porque conheci as suas obras, os seus escritos, desde os anos 70. São elas as de Herberto Helder e Luiz Pacheco. Extratos que li, por aqui e ali nos media, dizem-me que será melhor nem iniciar a sua leitura. Não me interessam. Pouco acrescentam e, quando o fazem, é irrelevante para uma ideia, mesmo que irreal, do que deles li. Já antes, tomei conhecimento da existência de duas biografias de Fernando Pessoa me passaram completamente ao lado e assim vai continuar. Mas abro exceções evidentes: ler uma biografia de Camões por Aquilino Ribeiro é outra coisa, tal como as de autores que identificam a época e as geografias em que viveram e que não foi a minha. Aí, concedo o conhecimento dos escritos e tenho revisitado autores comparando a sua vida com o que escreveram sobre o mundo, o mundo dos próprios que, por motivos claros, nos quiseram transmitir, transformando aquilo que seriam meras autobiografias em peças literárias imprescindíveis.

alc