Relógio D'Água, 2010. Tradução e notas de Nina Guerra e Filipe Guerra
Continuo no registo de Tolstói sobre o Caúcaso e, ao mesmo tempo, assinalar um apontamento sobre a tradução de Filipe Guerra, muito recentemente falecido e que, juntamente com Nina Guerra fizeram um trabalho notável directamente do russo.
É um lugar-comum dizer-se que a literatura de Tolstói é universal, sendo que este parte de uma dada realidade, aparentemente localizada, para descrever todas as misérias, vaidades e realizações humanas (sejam elas boas ou más). Daí que George Steiner tenha comparado «Cossacos» às obras de Homero. Não me choca a afirmação, sinceramente. Depois de o lerem, caso o não tenham feito ainda, terão o mesmo sentimento de uma humanidade registada nas letras inconfundíveis de Tolstói. E, sim, lembrei-me várias vezes de episódios da Odisseia, pelo desregramento, abusos de todos o tipo, assassinatos cruéis, liberdade total das acções humanas que sabendo da ira de deuses castigadores, tentavam ser maiores do que eles.
Tolstói escreveu «Cossacos» em 1952. Ora, foi um ano antes que se juntou ao exército russo contra todas as opiniões de amigos e familiares (não por integrar o exército, mas por causa da fama do Caúcaso). Sendo que, para um junker como ele, a comissão era de quatro anos, podemos afirmar, com alguma segurança, que Lev Tolstói, o escreveu ainda durante a comissão militar, mesmo que tenha acabado este romance, dez anos depois. É importante fazer estas contas para entender as descrições muito vívidas do Cáucaso e da «sua» Tchetchénia enxameada de guerreiros independentistas, cossacos que lutavam com os russos e os desprezavam simultaneamente, mulheres que tinham um poder efectivo nas aúns (aldeias) vazias de jovens e homens em permanente guerra, caçadas ou negociações tribais, bebendo vinho quente, vodka e infligindo ao inimigo castigos cruéis. Podemos supôr que o jovem Tolstói, saído da Moscovo cosmopolita e de amizades fictícias, se tenha apaixonado vivamente por esta «verdade» tão real, como atractiva pela liberdade que demonstrava. As relações humanas eram nítidas, vivazes, sem pinga de fingimentos, frontais. Por vezes, violentas. A personagem central tomou o nome de Olénin, certamente o alter ego do escritor.
Tolstói percebeu, no século XIX, que não se pode subjugar o Cáucaso. E, a menos que o consigam, os custos seriam enormes para o agressor. Os russos entenderam-no só em parte e, pelo que lemos em «Cossacos», só com um enorme tabuleiro de xadrez, em que as peças eram mudadas constantemente, se poderia permanecer como ocupante numa Tchetchénia ou em todo o Cáucaso. O que percebemos é que os exércitos russos sabiam ao que vinham e ao assinar tratados, muitas vezes só a palavra bastava, tinham a percepção que seria por pouco tempo. Mas mantinham-se apesar do desprezo enorme que Tolstói reservava para com o Estado-maior, príncipes e o próprio Czar Nicolau I, que reverteu a abolição parcial da servidão de Alexandre I. O retrato que dá dele é uma peça literária inesquecível.
Foi com amargura que Olénin (Tolstói) pediu a transferência de local, abandonando a sua aldeia cossaca e a mulher tchetchena por quem se tinha apaixonado sem que houvesse qualquer correspondência da parte dela. Tarde, percebeu que não sendo um deles, apesar de provas reais de amizade de alguns dos seus habitantes, se tornaria um viajante, um nómada que em breve sairia do território livre das montanhas e das estepes. Acredito que lendo o final deste «Cossacos», nunca mais o esquecerão.
alc
