domingo, dezembro 31, 2023

«Um Homem muito Procurado», John Le Carré

 

D. Quixote, 2008. Tradução de Isabel Veríssimo
Uma longa e complicada teia de interesses entre vários departamentos policiais antiterroristas ingleses e americanos que passam por Hamburgo e a Síria. John Le Carré lembra que foi nesta cidade alemã que permitiu a organização e preparação do ataque às Torre Gémeas de Nova Iorque no 11 de Setembro de 2001 o que não deixa de ser significativo. De resto, entram banqueiros suíços, uma advogada idealista de apoio aos refugiados, antigos membros do Exército Vermelho da ex-URSS e a forma maquiavélica como se podem utilizar os fanáticos e moderados islâmicos para, através de uma chantagem completamente imoral, para reforçar o estado policial nas democracias ocidentais. Lá aparecem o Hamas e o Hezbollah, os mercenários sírios, como peões no tabuleiro de xadrez que se movem consoante os objectivos dos governos.

Um bom 2024

 


sexta-feira, dezembro 22, 2023

Luta pelo Clima - Isto ainda vai acabar mal

 


Entre 1972 e 1974 os liceus deste país, pelo menos nas três cidades maiores de então, fervilhavam entre a raiva, o combate à incorporação na guerra colonial e a um governo cada vez mais violento e senil. Começávamos uma aprendizagem política a ferros. Está a acontecer, neste momento, uma exposição em Lisboa que lembra as lutas do Maesl e dos estudantes do secundário. A partir das "eleições" fraudulentas de 73 foram criadas as Cde, ou seja a Cdel, Cdep e em Coimbra a Cdec, Comissão Democrática de Estudantes de Coimbra. A UEC e o PCP decidiram que havia condições para aumentar as reivindicações estudantis no âmbito da criação de associações livres do fascismo. Foi então criada a Cpraac e nos liceus a Cpael (Comissão Pró-Associação de Estudantes Liceais). E atenção: alguns de nós já saíamos da caixa, éramos incontroláveis, uma espécie de "enragés" que nada tinham a ver com os objectivos programáticos dos universitários ou do partido. Tinham alguma razão. Muitos acabaram desirmanados. Mas esta história ainda não está feita.
Porque estou a lembrar isto? As comparações são perigosas e talvez pequem por extemporâneas, mas não é a primeira vez que refiro aqui a repressão completamente desproporcionada e criminosa contra os jovens estudantes que lutam decidida e corajosamente por um planeta melhor e mais limpo, lutando contra a Cop28, organizada, como sabemos, pela Opep. A polícia e a população motorizada reprimem juntos (!!) estes jovens de ambos os sexos, arrastando-os pelos cabelos, agredindo-os violentamente à vista de todos e das fotos como se a razão fosse a deles. Mas de relatórios a denunciar a nossa polícia sobre violência e tortura já conhecemos o suficiente.
Mais: nos artigos de opinião e na generalidade dos media e de jornais de referência, surgem juízes que, à pala da opinião, elaboram autênticos guiões para a acusação destes jovens, propondo até a pena para mais de 5 anos o que permitiria a prisão efectiva. Força! A polícia e a população (essa entidade esquisita) agradecem. Metê-los a todos na prisão depois de um enxurro de porrada é que é democrático e pedagógico. Quanto ao planeta, já vimos que apostam na Opep para, daqui a 20 anos, assinarem um acordo de viagens tipo Ryanair para Marte e botijas de oxigénio grátis, porque já não se poderá fazer nada aqui.
Esquecem contudo: que tal como em 73/74 o movimento não pára. Tende a crescer, tende a radicalizar-se, tende a fazer asneiras também, mas essencialmente a ganhar os avós, os pais e familiares, os amigos destes miúdos violentados por terem razão. Ou seja, dentro de 10 anos, ou menos, tendem a ter o poder. Ou a lutarem com violência contra ele.

Isto vai acabar muito mal. Primeiro com uma tragédia. Depois, a longo prazo, com uma radicalização para onde o Estado repressivo os está a empurrar, para esconder a sua própria incompetência e inconsciência climática. E é isto: as fotos de cabeças ensanguentadas de jovens manifestantes são retiradas à pressa daqui para fora. Tal como a censura fazia em 73 e 74. Acreditem, vai acabar mal.

segunda-feira, dezembro 18, 2023

«Linha da Frente» - Arturo Pérez-Reverte

 

Asa, 2022, Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. 624pp
Não é qualquer um que escreve sobre guerra. Principalmente, sobre a Guerra Civil de Espanha e mantendo uma auréola de neutralidade absolutamente incongruente e incómoda para quem lê e que espera uma outra narrativa que não um insípido distanciamento sobre o confronto entre fascistas e republicanos, fossem estes últimos das várias tendências que na ocasião existiram. Os fascistas também tinham as suas, mas isso era questão de pormenor. Para eles Pátria, Deus e Família chegava como programa e matarem todos os vermelhos e anarquistas que lhes aparecessem pela frente, também. Mas a neutralidade de Reverte possivelmente deu-lhe o Prémio da Crítica Espanhola por este livro Parabéns ao homem, porque o livro não o merecia.

Falemos da guerra em si, desse estertor humano, o pior que a Humanidade pode mostrar de si própria. Pois bem, não exigimos que quem se propõe a descrevê-la e editar um livro sobre ela seja um Tolstoi, mas o mínimo dos mínimos é que tenha uma noção clara ou aproximada dos mecanismos psicológicos de quem participa nela. Do terror, do medo permanente, da vingança e da entreajuda, da luta entre os oficiais e dos soldados, dos soldados entre si, ou seja, tudo o que leve à desgraçada opção da vida e da morte. Toda a descrição da guerra, neste caso numa povoação catalã, numa margem do Ebro onde se deu uma das maiores batalhas da Guerra Civil, pode ser mantida numa toada que terá de tudo menos leveza. Aquilo que me parece é que lhe falta densidade psicológica às personagens, enquanto é reproduzido um gigantesco catálogo de armas, tanques, aviões, morteiros, toda uma panóplia de artefactos de morte, acompanhada das respectivas onomatopeias quando explodem ou são disparadas. Os diálogos são profícuos, talvez para dar esse cunho de leveza à leitura que poderiam ser perfeitamente dispensados. Alguns deles nem se compreendem porque lá estão. Não explicam, não projectam nada de novo, não reflectem o passado sequer. Tudo aqui é mecânico. Não são só os diálogos, mas as próprias personagens. Poderia ser a Inteligência Artificial a criá-las e os leitores mascarem uma chiclete que ia dar tudo ao mesmo.

Por outro lado, não creio que a neutralidade seja chamada para aqui. A Guerra Civil de Espanha é ainda demasiado recente, para nos esquecermos, ou fingirmos esquecer, quem foram os criminosos, os que se sublevaram contra uma república democrática, que embora não tenha conseguido sequer cumprir o seu programa social, foi eleita democraticamente. A neutralidade de que falo aqui é, possivelmente, o resultado de um jornalista de guerra que foi Reverte, mas na literatura não é assim que funciona. Queremos uma realidade, que pode até doer, mas uma experiência viva de um dos lados. Se assim não for, cai-se no risco, que acontece várias vezes neste livro, de fugir a narrativa para o deslumbramento de um «Arriba Espanha!» devido à «coragem» dos falangistas, do Tércio, ou dos legionários. Esses, ao menos, rezavam antes das batalhas, tinham farda, eram disciplinados e sabiam porque morriam, enquanto os «vermelhos», esse bando de mal-arranjados, poeirentos e sujos, vestindo à civil ou pondo sempre em causa as decisões do comando-geral republicano, consequência nefasta da luta de classes, claro, morriam para escavacar a ordem social estabelecida. Pois é. A neutralidade cai pela base e fica o rabo de fora. Mais a mais, essa disciplina nestes últimos, aparece por obra e graça de comissários políticos russos, de olhos azuis «frios como os olhos de um peixe», que metralham os que tivessem a ousadia de recuar do campo de batalha. A IV Brigada do Ebro, é tratada como um covil de marxistas, trotskistas, poumistas e anarquistas sem disciplina e quase sempre derrotadas por culpa própria. As Brigadas Internacionais idem. Conclusão de Reverte: os espanhóis, sejam fascistas ou comunistas, sabem lutar e não seria preciso um Hemingway «vir aqui, com arrogância, ensinar os espanhóis a combater». 

Volta-se a referir que não escreve sobre guerra quem quer, mesmo tratando-se de um jornalista habituado a ela. É necessário mais do que isso. Está a quilómetros de distância de um Johnatan Littell, de um Victor Serge, de um Céline ou de um Vassili Grossman. Para só citar alguns de memória.

Só uma questão sobre a tradução: os «Paseos» são tristemente conhecidos durante a Guerra Civil de Espanha. Os fascistas iam de porta em porta nas pequenas aldeias e vilas à procura de republicanos e fuzilavam-nos depois do que chamavam um «paseo» pelas redondezas das casas. Na Galiza, usou-se mais esse crime do que guerra aberta. Não se pode traduzir assim, sem mais, pelo português «passeio» sem sequer uma nota. Por outro lado, aparecem muitas vezes em diálogos entre membros republicanos, homens do povo, portanto, a grafia «fachistas», sem itálico, como para realçar o analfabetismo inerente à condição social desses homens. Não resultou.

Perfeitamente dispensável.

quinta-feira, dezembro 14, 2023

«Pensar a Imagem, Olhar o Texto», Estela Rodrigues

 

Afrontamento, Março de 2019, 270pp.
Pode a poesia experimental e visual ser um instrumento de aprendizagem para as crianças? Pode. E a prova, mais que evidente, reside nas propostas descritas neste livro tão interessante, como imprescindível para quem tem contactos com crianças. A autora, Estela Rodrigues, terminou em 1978 o curso em Educação de Infância e em 1986 licencia-se em Estudos Portugueses pela FLUP. Em 2009 faz o mestrado com a dissertação «A Emergência da Literacia em contexto de Jardim de Infância», na área de Psicologia, na FPCEUP. Foi, durante 27 anos educadora, «intermediados por treze anos na formação de educadores de infância na Escola de Magistério Primário, na Escola Superior de Educação do Porto, nas Universidades do Minho e de Aveiro.» Envolveu-se desde 1983 na APEI, no Movimento Escola Moderna e no Instituto de Comunidades Educativas. Feita a apresentação passemos aos objectivos que podem ser bem resumidos nas suas palavras: 

«Os objetos de conhecimento/sentido estético e o carácter subversivo das Poéticas Experimentais são estranhos e, em certa medida, desconstrutores de estereótipos das culturas de pertença contagiadas por padrões veiculados por determinados estilos de vida e pelas indústrias de entretenimento. Assumo essa desconstrução como educadora que se demarca da tarefa de reprodução massificadora.»

Maria Assunção Folque, na apresentação do trabalho de Estela Rodrigues, esclarece que estamos perante uma obra que «é um dos textos mais inspiradores e desafiantes que tenho lido sobre o conhecimento profissional de uma educadora de infância.» Partilho totalmente esta opinião e a minha leitura de «Pensar a Imagem, Olhar o Texto» com o subtítulo «Experimentos poéticos na educação de Infância» constituiu de facto uma rajada de ar fresco na secura do que para aí anda de obras de carácter pedagógico, seja para a infância ou para outras idades. Aliás, a proposta da autora é clara quanto a isso: se a partir de Bruner podemos garantir que toda a complexidade poética pode ser trabalhada honestamente com idades infantis (a experiência de Estela Rodrigues foi realizada com 25 alunas e alunos entre os 4 e os 6 anos, num Jardim Infantil Público do Porto), nada impedirá que o seja igualmente para todas as idades e ciclos de aprendizagens e de todos os níveis de ensino. Queiram os professores e os mestres, porque nas opiniões registadas por poetas experimentalistas da PO.EX ou brasileiros referidos por Estela Rodrigues e alvos do trabalho com as crianças, estas foram ganhas de imediato, sem que isso signifique não afastar alguma complexidade e dificuldade na construção - desconstrução - construção dos poemas visuais, experimentais, espaciais ou concretos apresentados às crianças. O livro em si é uma pesquisa constante. Obriga-nos à consulta e à marcação de páginas, principalmente ao Capítulo I, «Aproximação às Poéticas Experimentais», para mergulharmos em alguns autores incontornáveis desta forma poética como Melo e Castro (Pêndulo, de 1962), António Aragão com o seu provocador (Telegramando, de 1965), Salette Tavares (Aranha, de 1964 e com mais poemas neste livro cuja ideia subjacente ao Brincar está sempre presente nas suas propostas), António Barros (com o seu icónico Escravos, de 1977), Ana Hatherly (O Mar que se Quebra, 1998) e muitos outros, como Emerenciano, Eurico Gomes, Manuel Portela ou César Figueiredo. Não conseguindo, aqui nesta ficha de leitura, dar conta de todas as expressões que foram (ou que poderão vir a ser) trabalhadas por alunos e analisadas por Estela Rodrigues não deixarei de prestar a atenção devida à referência da «Land Poetry», principalmente de Fernando Aguiar, cujos recursos, utilidade e emergência poderão via a dar frutos nas nossas escolas sujeitas a programas completamente desajustados, ultrapassados e enfadonhos. Este livro não deixa de ser, igualmente, um interessantíssimo e útil trabalho enciclopédico.

Rui Torres, coordenador do arquivo digital da PO.EX., e também ele poeta, assina o prefácio a «Pensar a Imagem, Olhar o Texto». Vale a pena assinalar o que escreve sobre a já referida Salette Tavares : «(...) Aliás, Salette Tavares terá sido quem mais insistiu nesta pedagogia do olhar da poesia e da infância como a tomada de consciência em relação à componente lúdica da linguagem. Brincar, dizia, ''é um estado natural e permanente. (...) [e] com poucos brinquedos, tudo era brinquedo, folhas, frutos, gafanhotos, terra, lata e até nada. E este nada é importantíssimo. [carta a Ana Hatherly]''. Como mãe e educadora, transmitia aos seus filhos esta relação entre palavras e coisas, derivando dessa educação grande parte da sua ''produção poética'' que esteve, aliás, presente na exposição ''Brincar'': objectos que fizeram juntos na descoberta da linguagem. Ao recriar o mundo no convívio dos objectos, Salette Tavares testemunhava uma aprendizagem pelos sentidos. O seu aviso foi muito claro: ''É preciso que não separemos as crianças dos jardins e não as deixemos morrer atrofiadas pelas lojas de brinquedos que, como todas as lojas da civilização de agora, com as suas mon(s)tras, comem as infâncias das crianças, dos papás e dos avós''» Este «brincar» é igualmente teorizado por Maria Assunção Folque na apresentação: «Quero realçar que o lúdico, o brincar, não devem ser vistos apenas como processos naturais de quem ainda é criança mas antes, como capacidade humana sofisticada, em que este processo de construção-desconstrução-construção implica conhecer as regras para as poder perverter». Todo um programa para as sociedades que se exigem mais felizes ou que ainda ligadas intimamente à Natureza, onde ainda se sente «o riso que vem das entranhas da terra» como registou o antropólogo Tobias Schneebaum em «Onde os Espíritos Vivem» (Antígona, 1991) quando esteve na Nova Guiné. Estela Rodrigues, talvez por isso, não se limitou a um livro de pedagogia em sentido estrito, mas acrescentou-lhe uma aura poética e de intervenção  político-social que lhe está indissociável e que beneficia claramente a obra. 

Para além de tudo (e do pouco foi aqui dito), não percam o Capítulo 8 «Experimentos Poéticos e saberes partilhados» que se apresenta com guiões de exploração pedagógica, experiências, pormenores textuais, ilustrações e fotografias do trabalho no terreno que Estela Rodrigues desenvolveu com as crianças a partir dos poemas visuais. As recriações que vemos são autênticas maravilhas feitas por crianças entre, repete-se, os 4 e os 6 anos e os diálogos que se estabelecem entre a educadora e aluno/criador, ou recriador, são uma lição para o leitor, que sendo complexa está bem longe de ser majestática. Sei porque faço esta afirmação. Na mesma carta de Salette Tavares a Ana Hatherly já referida atrás e evidenciada por Rui Torres. Numa vivita de estudo a uma exposição de Alberto Carneiro na Galeria Quadrum, em 1979, Salette Tavares lembrou: 

«(...) Aconteceu mostrar eu episodicamente uma exposição a crianças com cerca de seis anos. Fui várias vezes interrompida pelas duas professoras que as acompanhavam. Achavam tudo difícil para crianças daquela idade. Eu disse: - Isto é uma espiral e uma espiral é... Não me deixaram acabar de dizer, só acabei o gesto. Ora espiral é uma palavra linda, uma criança ainda mais pequenina do que aquelas pode saber o que é uma espiral porque já deve saber o que é um caracol. As crianças percebem muito bem a exposição de Alberto Carneiro. Quem não percebeu mesmo nada foram as professoras, era ri al mente muito difícil.»

«Pensar a Imagem, Olhar o Texto», de Estela Rodrigues, não se conforma com o estabelecido, antes questiona, subverte, ensina. Pela imagem, pelo texto, por anagramas que convocam a inteligência, a dedução, a comparação ou a indução. Até mesmo o nada. Seja. Mas creio que nenhum educador pode prescindir deste livro.

quinta-feira, dezembro 07, 2023

«Fechada para o Inverno», Jorn Lier Horst


D. Quixote, 2016, Tradução: João Reis
Bom, o que vale é que Horst foi polícia na Divisão de Oslo o que dá um carácter de veracidade a tudo o que lemos dele. Não só a questão administrativa a que são obrigados os detectives (creio que ainda bem!), mas a sua relação com os procuradores e juízes e igualmente com os métodos de investigação, embora mais que ajudados pelos capitalismo de vigilância. Já aqui se disse que a dedução, a memória, a inteligência de um detective do século XX já nada tem a ver com os quilómetros de imagens, mails, contas bancárias, telemóveis e discos duros dos computadores a que hoje começa e acaba toda uma investigação criminal no século XXI. Os crimes hoje são essencialmente económicos e deixa-se para trás o tráfico de droga ou outros equivalentes, como os humanos. Não há mãos para tudo, caramba! O Estado assim o obriga e tudo corre às mil maravilhas.

A história do livro em si não é má de todo. Mas os liberais deviam seguir a narrativa de Horst quando este vai à Lituânia numa investigação criminal. Longe de ser um autor que aborde a política, não deixa, contudo, de exercer a sua visão sobre a sociedade lituana há poucos anos saída da União Soviética. Como disse, os liberais, depois de um dia de trabalho árduo no Parlamento ou nas suas empresas e nos seus unicórnios, depois de passarem no ginásio ou no spa, ou mesmo durante os mesmos, sei lá, deviam ler o que ele conta da Lituânia neste livro. O liberalismo selvagem produziu pobres a esmo, 25% de desemprego, riquezas fabulosas, crime mais organizado que o Estado, mercados negros tão grandes como os maiores bairros de Oslo onde tudo se consome e vende sem que se possa criar riqueza para o Estado, porque a exercer o fisco nesses mercados era pior do que as suas consequências sociais. Fixe, não é? Claro que quem paga isso, em parte, são os países ricos como a Noruega, a Suécia, a Finlândia e a Dinamarca, por exemplo. Mas nem tudo é mau: produz uma literatura policial profícua e lucrativa nestes países, em troca de umas casas assaltadas (geralmente as segundas ou terceiras casas de férias de famílias viquingues), uns televisores LCD a menos e uns carros desviados dos seus donos. Nada que preocupe a social-democracia em descida inclinada para a extrema-direita, igualmente favorecida para o seu discurso político. Todo um programa liberal em poucas centenas de páginas. 

IA no genocídio de Gaza. Inquietante e previsível

 

Desenho elaborado por Inteligência Artificial (sem identificação)
Provavelmente passou despercebido ou foi um trabalho jornalístico de Sofia Lorena que foi remetido para as notas de rodapé das guerras actuais. Isto é sobre Gaza. Do genocídio que decorre em Gaza sob a enormidade da resposta de Israel ao ataque do Hamas e que castiga a população palestiniana de um modo completamente demente. O desenho em cima foi elaborado, sem identificação, por Inteligência Artificial (IA) e escolhi-o para demonstrar os perigos que a ciência tem colocado a esta forma de capitalismo de vigilância ainda sem nenhuma regulação. 

O artigo de Sofia Lorena, no Público de 4 de Dezembro, explica-nos a estratégia das Forças de Defesa de Israel (IDF) na pretensão de acabar com o Hamas, mesmo que para isso tenha de perpetrar um genocídio ainda não declarado pelo TPI e pela ONU que tem evitado utilizar este termo. A IDF tem usado a Inteligência Artificial (IA) para procurar alvos. Alvos esses que já vão em 16000 mortos sendo 6000 (dados de 4/12) de crianças. Dizem que metade dos comandantes do Hamas estão já mortos, embora sem confirmação de fontes independentes. Como se faz esta escolha de «alvos» pela IDF? Através, segundo, Daniel Hagari porta-voz do IDF, da selecção desses mesmos alvos (sempre entre aspas) por um sistema denominado Habsora, desenvolvido a partir de 2019 e comandado numa sinistra Divisão Administrativa de Alvos que, segundo um importante ex-militar de Israel, Aviv Kovachi, «é uma máquina que, com a ajuda da IA, trata muitos dados muito mais depressa e melhor do que qualquer ser humano e traduz isso em alvos de ataque.» Segundo este mesmo ex-chefe do Estado-Maior israelita «a partir do momento em que esta máquina foi activada, gerou 100 alvos por dia, quando, no passado era possível criar 50 alvos por ano». Outro ex-oficial, agora da Mossad, diz de um modo terrífico que o Exército «gere uma fábrica de assassínios em massa» e mais à frente afirma «É mesmo como uma fábrica. Trabalhamos mais depressa e não há tempo para avaliar profundamente o alvo.» Mas deve-se sublinhar que a culpa do morticínio que se está a dar em Gaza pelo Exército israelita não é só da IA. Poderão dizer que esta nova ferramenta não tem culpa por si só, o que é claro, mas é uma notável aproximação ao fordismo ou à produção em série...de mortes por assassínio! Termino com uma afirmação de uma das fontes da revista +972 israelita que não quis dar o nome: «Nada acontece por acaso. (...) Quando uma menina de 3 anos é morta numa casa de Gaza, é porque alguém do exército decidiu que não era muito importante que ela fosse morta - que era o preço a pagar para atingir mais um alvo (...) Nós sabemos exactamente quantos danos colaterais há em cada casa.» A demência assassina em todo o seu fulgor.

sábado, dezembro 02, 2023

«As Personagens», Ana Teresa Pereira


Relógio D'Água, Julho de 2023, 156 pp
Não é a primeira vez que escrevo sobre Ana Teresa Pereira, nem será certamente a última. A atracção do seu mundo particular, arrisco-me a dizer, é uma constante para um leitor que saiba conjugar o fantástico, o conto breve, embora este seja uma estrutura de um romance com capítulos religados entre si, como é o caso de «As Personagens», e o mistério que envolve toda a trama de um encontro fortuito (ou preparado antecipadamente?) entre quatro pessoas que se encontram numa noite de tempestade, nebulosa, fria e que se refugiam numa casa cinzenta, em contraste com uma fogueira acolhedora. Contraste e negação que se encontram em permanência no livro. A partir daí conseguimos vislumbrar as características psicológicas e o erotismo suave e emergente de duas mulheres e dois homens que tentam fugir ao imposto pelas normas sociais em forma de guião cinematográfico que, ao que se julga, é abandonado. Considero a necessidade de «entrar» neste conto tão estranho, como belo, conhecendo antecipadamente os Nocturnos de Chopin (serão os de Maria João Pires em particular?), as névoas constantes das charnecas de Conan Doyle ou alguns dos filmes de Hitchcock. Inquietante? Claro que o é, e uma história de Ana Teresa Pereira remete-nos para o desconforto e dúvida, através de uma linguagem depurada e diálogos credíveis. Sem querer revelar muito deste primeiro conto, não há uma só casa, mas uma outra dentro dela. Mas a possibilidade que Ana Teresa Pereira nos apresenta a meio do conto e pela voz de Diana (talvez a personagem central, mas que desaparece nos capítulos seguintes) é verdadeiramente inquietante: «-Talvez o mundo interior seja formado por pousadas, com dois lados iguais, rodeadas pelo nevoeiro, isoladas umas das outras...». Pousadas, labirintos, quartos aparentemente inabitados somos todos nós. 
«Talvez...talvez ainda haja um lugar para onde ir.» (pág.31)

Neste livro de Ana Teresa Pereira coexistem labirintos físicos e psicológicos que permanecem em cada um de nós e na relação com os outros; são as máscaras (personas) que utilizamos quer na leitura de um livro, quer no escapismo a que nos propomos nas diversas personagens de um filme: 
«Ela gostava por vezes de ler um livro como quem faz amor., excluindo o pensamento, sem o pensar, quase não o compreendendo. Ler um livro apenas com o corpo. Sentir prazer físico ao ver um filme, ao ver a chuva caindo em latas velhas, sentir vontade de gemer alto. Seria ele capaz dessa forma de erotismo?» (pág.58). 
Sabemos que assim é na realidade vivida, mesmo que a irrealidade se imponha como as névoas, a chuva ininterrupta ou as tempestades constantes em toda a acção do livro. É esse o perímetro, a paisagem, que nos leva aos labirintos de nós próprios, alguns sem saída possível como sejam os jogos de sedução e de crueldade entre os homens e mulheres que povoam as narrativas soltas de «As Personagens». Essa crueldade que nos é mostrada não é feita de sangue, mas de ímpetos e aproximações em que as palavras têm um papel fundamental. Estas, cortam como facas: 
«Quando as palavras vêm cheias de fantasmas, elas metem medo. Quando as palavras abrem alçapões de subterrâneos repletos de fantasmas, quando escrever é ver-se ao espelho e não gostar...as palavras metem medo. Quando se aprendeu a ver no fundo das palavras o que elas escondem, escrever já não pode ser um acto inocente.
Escrever nunca é inocente.» (pág.52)

E quando esses labirintos a que nos atrevemos a entrar, carregados de erotismo e crueldade, são construídos por altas muralhas a que não vemos a percepção do fim, em nós ou nos outros, nos que amamos, Ana Teresa Pereira atira-nos com a violência inerente às personagens que povoam o livro com um «Rosebud», síntese possível de uma vida plasmada, a preto e branco, em Citizen Kane.

«- É um mundo estranho, o da minha imaginação. Por vezes parece-me que vivo duas vidas, e é terrível passar de uma para a outra. Quando deixo a caneta e venho para fora, sinto-me perdida durante muito tempo. É...uma sensação de irrealidade total.» (pág.105)

Qualquer leitor que leia os livros de Ana Teresa Pereira, intui (a intuição é um pressentimento da verdade, como é referido algures no livro), porque sim, que ela é extremamente genuína, verdadeira, o que a transforma numa grande escritora. Deixa-nos este livro com uma doce inquietação.