domingo, outubro 29, 2023

"Tchétchénie, An III", Jonathan Littell

 

Gallimard, Folio documents, 2009
Jonathan Littell não é propriamente conhecido por ser um repórter de guerra, mas é sem dúvida um dos melhores escritores contemporâneos desde o seu "As Benevolentes" um dos livros mais crus sobre a guerra e os seus protagonistas, ocupantes e ocupados, algozes e vítimas, que alguma vez li. Não exagero. Reparei neste livrinho em Agosto e, por impulso, comprei-o num alfarrabista. Nem sequer sabia que existia, mas compreendi desde logo que a literatura escrita por Littell não é seguida por acaso. Ele sabe do que fala, isto é, do horror da guerra e das redes que a suportam. E são muitas: desde a corrupção gigantesca que lhe é associada a todos os níveis, até aos "desaparecimentos" selectivos, à tortura institucionalizada, às vinganças, aos raptos, à morte. Aqui o caso descrito, com alguma loucura dos repórteres, é a Chéchenia em guerra e a normalização e reconstrução que foi imposta por Kadyrov filho, talvez bem pior que a guerra de 2006 e 2009. Por outro lado, há questões que são pertinentes e levantadas por Littell fora da violência de Estado, mas ligada e este: trata-se da islamização forçada das instituições e particularmente sobre as mulheres nas repúblicas ex-soviéticas do Cáucaso. Este tipo de submissão é tanto mais grave quanto estas mulheres estavam há gerações afastadas de qualquer tipo de charia na antiga URSS. Mesmo que esse tipo de normalidade seja uma forma de estrangular o islamismo radical da jihad e aceitada pela Rússia de Putin. Trata-se de um jogo perigoso. Mas desses jogos estamos nós esclarecidos há muito. Desde o apoio de Bush e dos americanos a Bin Laden. E, por mais cínico que isso seja, eles sabem que nós sabemos. O povo do Cáucaso está claramente entalado entre duas escolhas más: os déspotas corruptos por um lado e o radicalismo islâmico do outro. Resta a resistência, sabendo que o preço dessa escolha é altíssimo. 

quinta-feira, outubro 26, 2023

«Europa Medieval», Chris Wickham

 

Edições 70, 2019, Tradução de Marian Toldy e Teresa Toldy
Sendo uma história generalista da Europa, não deixa de ser um livro muito interessante e até certo ponto imprescindível se nos ativermos às questões novas que nos coloca. Chris Wickham, professor medievalista em Oxford, não entra numa ruptura completa com a História do século XX, citando várias vezes os trabalhos fundamentais de Marc Bloch, Le Roy Ladurie ou Georges Duby para só falar de alguns referidos por ele. A sua proposta é outra: a partir desses dados e das fontes utilizadas, portanto sérias, ele parte para outras conclusões que não deixam de nos surpreender pela lógica dos grandes movimentos estruturais da História da Europa. Não sendo taxativo nas afirmações, questiona, recompõe, critica, inova no sentido de se basear em novas fontes e na arqueologia. A interpretação que faz ao nível da cultura e das mentalidades medievais é onde reside o seu principal foco científico, mesmo que essa transmissão seja essencialmente baseada nos escritos das elites. 

Wickham provoca o leitor de uma forma responsável avançando com questões que nos incomodam pela novidade e mesmo pela sua verosimilhança. Só darei poucos exemplos, mas resume-se alguns deles: «Se o Império Romano não tivesse caído? Se o Império, que não caiu do lado oriental até ao século XV, tivesse igualmente permanecido com as suas instituições reformadas e pequenas mudanças ou retraimentos na Europa Ocidental cimentando-se no direito romano e canónico?»; «E se a tomada (e destruição) de Constantinopla do Império Otomano na Quarta Cruzada não foi um retrocesso grave no desenvolvimento global da Europa Ocidental?»; «E se a tributação fiscal e centralização do poder no Império Bizantino, juntando-se a um comércio de longo curso fosse adoptado pelos reinos belicosos da Europa Ocidental o protocapitalismo não teria chegado mais cedo obrigando a uma necessária revolução industrial, mesmo que incipiente?»; «E se o chamado desenvolvimento económico do século XII na Europa Ocidental não o foi assim tanto, tendo predominado muito mais as trocas directas entre as pequenas cidades e o campo, muito mais dinâmico que o comércio externo das ligas hanseáticas, das feiras de Champanhe ou das cidades italianas, sobrevalorizadas pelos historiadores até agora?»; «E, retirando o cinismo inerente à hipótese, se a Peste Negra de 1348-50 fosse antes um alívio face ao aumento demográfico exponencial do século XII e XIII, sem que houvesse tecnologias para aumentar a produção agrícola ou a desflorestação que teve necessariamente de se pôr cobro devido ao esgotamento de recursos disponíveis?»; e continua as suas «provocações» sendo que há uma delas que não posso deixar de citar. Trata-se de muitas vezes olharmos para as cidades como sendo um espaço de liberdade para os camponeses e artesãos face à extrema exploração tributária dos senhores da terra nos campos. Ora se olharmos para as leis municipais veremos uma elite burguesa muito associada à aristocracia terratenente com leis e práticas dominantes nada simpáticas aos migrantes internos sujeitos a leis brutais. A circulação de moeda, principalmente de prata, ao contrário do Império Bizantino que a cunhava em ouro e de circulação abundante, continuou a perpetuar a troca directa em detrimento do propalado «desenvolvimento» deste século.

O interesse deste livro tem a ver, igualmente, com a visão global que temos de uma Europa Ocidental que permaneceu tempo demais com instituições e economias cuja necessária transformação não acompanhou estados e regiões que seriam muito mais dinâmicos durante a Alta e Baixa Idade Média, como a China, a Índia ou o próprio Império Bizantino este último muito mais sólido cultural, política e economicamente falando. A perspectiva eurocêntrica é assim abandonada e não deixa de ser curiosa a posição de Chris Wickham sobre a expansão do século XVI (data limite do estudo) iniciada por portugueses e espanhóis cuja contribuição para o desenvolvimento do capitalismo comercial foi claramente sobrevalorizada, ajudando mais à riqueza dos seus próprios reis o que para o crescimento mundial. Ou seja, esse desenvolvimento já estava em marcha desde há um ou dois séculos antes da expansão marítima ibérica que fez baixar os preços dos produtos orientais transaccionados desde há muito.

Essa visão global da História da Europa Ocidental na Idade Média é dada pelo autor pela descrição detalhada sobre os pequenos ou grande estados que a formavam, com fronteiras sistematicamente elásticas consoante as guerras permanentes que aconteciam desde os impérios de Rus, Kiev e Novgorod, pela junção e separação dos estados balcânicos, da Bulgária, da Boémia, do Sacro Império Romano, do Reino da Lituânia e Polónia ou do Francês e Inglês sempre em conflito. Também Portugal e Castela não são esquecidos, comparando, com alguma ironia, a nossa relação com o poderoso vizinho com a Escócia e Irlanda com a Inglaterra. 

quarta-feira, outubro 25, 2023

Artes Breves: Traço Viagem Insular Memória


AB: Traço Viagem Insular Memória: o quinto título do p...:   Algumas palavras (iniciais), escritas no fim de um processo de produção Desde o seu início,  o projecto de livro Traço Viagem Insular ...

terça-feira, outubro 24, 2023

«Le Silence de la mer», Vercors

 

Albin Michel, Le Livre de Poche, 1951
Pacifista em 1914, Jean Bruller deixa de ser somente ilustrador em 1940 e torna-se escritor na resistência francesa contra os nazis com o nome de Vercors. É evidente que ser pacifista perante Hitler não teria sentido e ele compreende-o rapidamente não hesitando em juntar-se activamente à luta contra os alemães, abandonando as suas anteriores convicções. Por isso mesmo, este livro de contos editado pela igualmente clandestina Éditions de Minuit tem um cunho político muito particular.

Falo por mim, mas não achei particularmente entusiasmante a leitura dos contos que compõem o livro, mas o conto homónimo que lhe dá o título, Le Silence de la mer é um caso diferente. Quando foi publicado nos finais de 1941 houve alguns equívocos relacionados com a sua publicação, oriundos da própria resistência, que se perguntava sobre a identidade do autor, isto é, de Vercors que não poderia usar o seu nome, obviamente, até porque o seu trabalho político era vigiado de perto pela Gestapo. A trama passa-se numa casa de uma pequena vila onde vive um francês e a sua sobrinha e que é requisitada por um oficial alemão. Militar esse que reconhece a «superioridade» da cultura francesa e que, sendo compositor na vida civil, a conhece bem. Tenta, então, estabelecer um diálogo com as duas personagens sobre a possibilidade real de juntar as duas culturas, a alemã e a francesa, como um projecto plausível que o leva, embora levemente, a criticar toda e qualquer violência para com os ocupados. Está implícita uma descolagem ao plano paranóico dos nazis por parte do oficial alemão. A resposta que tem, contudo, é um silêncio determinado pelo tio e sobrinha franceses. Quando o oficial parte é para a frente russa. Morte certa, portanto. Assim acaba o conto.

A questão que se levanta é universal, ou seja, o de saber qual deverá ser a intensidade da resistência perante um ocupante que utiliza a violência como razão última para a guerra e genocídio de povos. E essa universalidade é colocada, infelizmente e ainda hoje, no planeta em convulsão. Vercors conheceu essa violência de bem perto, visto que viu muitos companheiros serem fuzilados como Politzer ou Decour e outros que lutaram nos maquis abandonando a clandestinidade das cidades como Pierre de Lescure, seu amigo e que foi substituído na resistência literária e panfletária por Paul Éluard nas Éditions de Minuit. O que sobressai nas críticas que então foram arremessadas a Vercors, em plena II guerra, foi exactamente o factor «silêncio». Segundo alguns, quem poderia defender o silêncio como arma contra o ocupante só poderia ser um colaboracionista! Ora, se analisarmos bem o papel da resistência francesa sabemos que muitos dos escritores resistentes só o foram de facto a partir de finais de 1943 e em 1944, quando a derrota alemã já era inevitável. Antes, muitos deles mantiveram-se, ironicamente, em silêncio que a não existir acção era quase confundida com neutralidade, essa sim criminosa! É isto que afirma Yves Beigbeder no posfácio de Silence de la mer que ataca um deles, Arthur Koestler, que no cómodo exílio de Londres tem a ousadia de «demonstrar» o colaboracionismo do conto de Vercors defendendo que o silêncio não seria a táctica a utilizar mesmo que o opositor fosse um oficial alemão antinazi. 

Não deixa de ser impressionante, ao ler o conto de Vercors, como se pode inverter toda uma interpretação (explicada nesta edição por um prefácio do autor bem esclarecedor!) e a mensagem constante em Silence de la mer. Mas isso pouco importa, visto que os tempos eram outros, bem difíceis onde a vida e a morte caminhavam juntas não se sabendo se se estaria vivo no dia seguinte. O que importa é que estamos perante um conto notável, seguido de outro, Le Songe, com laivos claramente surrealistas, embora tenhamos por certo que já se denunciava o horror dos campos de concentração e das marchas da morte no final da guerra. Afinal, sabia-se.

Existe uma publicação em português na Editorial Presença datado de 1986 e reeditado este ano. O site da editora não informa da tradução. Também existe um filme homónimo de Jean-Pierre Melville, datado de 1949.

sábado, outubro 21, 2023

As acções dos activistas climáticos são necessárias e urgentes

 

Lisboa, Maio de 2019, 2ª greve climática estudantil
Não subestimem as acções climáticas que se propagam cada vez mais na Europa e particularmente em Portugal. Quase sempre muito jovens, estudantes, portadores de uma cultura própria, são determinados a levar até ao fim os objectivos a que se propõem, mesmo com consequências legais graves para a sua vida futura. Levem-nos a sério, porque nada têm a perder. Olham para o lado e para cima, neste último caso para as instituições que nos governam e é com um grande cansaço e revolta que ouvem as suas palavras vazias. Se reparam em nós é para nos acusarem de inércia e desprezo pelo planeta e pelo ambiente. No fundo deixámos-lhes «isto». E não é agradável o que deixámos, mesmo que desde os anos 80, no início dos movimentos ecologistas, tenhamos avisado o que eles agora denunciam. Nessa altura também ouvimos o que eles ouvem agora, mas numa dimensão nunca vista hoje. Não os subestimem.

A repressão sobre eles é completamente desproporcionada por parte das forças policiais e da população. Vimo-los a serem barrados no direito de expressão pública, a serem presos e identificados, a serem denunciados por directores e reitores de instituições, a serem enxovalhados, agredidos e arrastados pelos cabelos na via pública quer por polícia, quer por público motorizado. 

Pior são os comentadores políticos. No dia 11 de Outubro, no Público, um juiz que é presidente de uma Associação Sindical dos Juízes Portugueses dá-se ao luxo de editar um artigo de «opinião» que não é mais do que um guia para a acusação destes jovens activistas.  O juiz-presidente-sindicalista afirma, sem qualquer problema de consciência sobre o que é a realidade, que as ações dos jovens que lutam por uma política ambiental que nos salve de um apocalipse anunciado, apresentam semelhanças com «atentados das organizações terroristas»; em ambos os casos, ou seja, das acções dos militantes ambientalistas e das organizações terroristas (ele não concretiza quais) tratam-se «de grupos organizados de pessoas unidas por uma ideologia comum, que planeiam e executam acções subversivas ilegais...», embora, mais à frente, declare que não é comparável uma «miúda partir a montra de um edifício» com um «bombista suicida»! Arrepende-se logo: «Mas o princípio é exactamente o mesmo...». Depois arrepende-se novamente e diz que os movimentos por um planeta melhor devem ser acarinhados e mete-se onde não deve que é a defesa de um mundo possível, ambientalmente são, mas «com aviões, automóveis e fábricas», coisas que os jovens querem erradicar da face da terra! Terra essa já em convulsão, mas o juiz-presidente-sindicalista quer a chuva no nabal e o sol na eira. Deixem a solução para a Ciência, diz ele.

O sr. juiz avança, lesto, após algumas considerações sobre esta coisa de pintar ministros de verde, a lista de crimes a que os jovens estão sujeitos não vá a polícia esquecer-se de os nomear nos relatórios. Cito: «Pintar montras e pintar fachadas é crime de dano. Interromper a circulação em estradas é crime de atentado à segurança de transporte rodoviário. Atirar tinta para cima de um ministro (sic) em exercício de funções é crime de ofensa à integridade física qualificada. Fundar, dirigir, ou pertencer a grupos ou organizações que se dediquem à criminalidade (sic) é crime de associação criminosa. Estes crimes são puníveis com penas de prisão elevadas (sic) e quem os pratica arrisca-se a consequências sérias.» Não subestimem igualmente o poder repressor dos tribunais, da polícia e dos comentadores como este juiz. Não se deixem levar pelas piadas jocosas dos ministros pintados de verde. Ninguém sabe das ordens dadas ao MAI por eles no segredo dos deuses. Mas essencialmente não deixem de levar a sério o activismo militante dos jovens ambientalistas pelo clima. Eles têm razão. E esperemos todos que levem a bom termo a denúncia das empresas com mãos sujas e de políticos que empurram os problemas para as calendas. Mesmo pintados de verde.

sexta-feira, outubro 20, 2023

«amarga ironia esta de um povo que está neste continente apenas há 235 anos recusar-se a reconhecer aqueles que vivem nesta terra há mais de 60 mil anos»

 

Mais uma derrota do povo aborígene australiano hoje reduzido a 3,8% da população com perto de um milhão de pessoas, muitas delas vivendo em condições de pobreza de que não conseguem sair devido às políticas de discriminação social e de racismo oficiais. Ao contrário da Nova Zelândia e do Canadá que já reconhecem na Constituição os direitos dos povos autóctones (tarde piaram!), a aposta do primeiro-ministro Albanese na Austrália era criar um conselho consultivo dos Primeiros Povos (isso da deliberação ainda não é para os «primitivos»!) denominado A Voz. Em referendo os australianos foram a votos e em meados de Outubro de 2023 disseram «não». Nem deliberativo ou consultivo - nada! Torna-se evidente que um conselho daquele tipo nada mudaria, mas era um primeiro passo para a necessária, quanto desejada, forma de verem o povo aborígene como mereceria ser visto: portador de uma cultura ancestral, ligada fortemente à Natureza, que nos daria lições de vida a uma civilização no seu estertor - a nossa. Como disse um dos principais representantes dos aborígenes após a vitória do «não»: «amarga ironia esta de um povo que está neste continente apenas há 235 anos recusar-se a reconhecer aqueles que vivem nesta terra há mais de 60 mil anos».

Mas há um caso que se passou comigo que ilustra bem a violência latente neste «não» ao referendo para, ao menos, se considerar a existência do povo aborígene australiano, primeiro passo para reconhecer a infindável lista de horrores por que passou este povo levado à escravatura e a todo o tipo de torturas psicológicas e físicas. Encontrei-me em Junho deste ano, por motivos familiares, num almoço que juntava toda uma diáspora dos seus membros. Durante o almoço, e à minha frente, estava presente um casal australiano. Ela de origem irlandesa (há seis gerações na Austrália) e ele indiano de Goa. Ambos falavam inglês e encontravam-se em Portugal, percorrendo em turismo a Europa. Em junho, preparava-se então o referendo. Reproduzo o diálogo que ia dando para o torto, não fosse ainda a prevalência do que se chama a boa convivência familiar:

- It's a madness, the fucking referendum! - afirmou algo revoltado o australiano goês (a partir de agora traduzo) 

- O que é que é loucura? Não entendo, desculpe - afirmei eu honestamente, visto que não sabia nada do referendo.

- Como é possível que uma minoria da população possa ser ouvida sobre as leis de uma grande maioria. Os aborígenes não têm esse direito. Que façam partidos e concorram às legislativas!

- Desculpe, se é uma minoria e concorrerem às legislativas está à espera de uma maioria absoluta para governarem o que é seu por direito histórico?

- Que direito histórico? Se eles eles se portarem bem, se seguirem as regras da sociedade e cumprirem as leis, deixando o crime, a prostituição, o alcoolismo, então integram-se e a conversa é outra! Assim, como estão, it's a madness!

De repente reparei que estava a falar com uma irlandesa de seis gerações na Austrália (claro que os seus antepassados estavam livres de todos os crimes imputados na Irlanda, estava-se mesmo a ver!) e com um goês de origem indiana que, por casamento, estava no país e que tinha idade para ter conhecido a colonização portuguesa (também não entendia por que razão não falaria português tendo a minha idade, caraças!). Eram eles que se achavam no direito de ditar leis aos povos aborígenes e a ditarem as regras civilizacionais que acharam por bem imporem, desde o rapto de crianças para conventos católicos, os massacres em massa, as violações ou a escravatura generalizada como mostra a fotografia. É uma madness, sim. Acabei assim a conversa, deixando-o a ruminar alguma coisa contra mim que, evidentemente, não estava a par da realidade australiana! Quando lhe dei boleia no final, pediu-me para não ir pela autoestrada, antes por uma estrada nacional. Assim foi. Para o degelo se dar, ele entendeu dirigir-me uma palavra simpática sobre a paisagem de Portugal. Olhando para a mancha de eucaliptos que bordeava a estrada ele atirou-me com um «It's like Australia!». Não lhe dirigi mais a palavra.

quarta-feira, outubro 18, 2023

Pequena nota pessoal sobre Gaza aos amigos libertários e à esquerda radical

 

Getty Images
1. As palavras valem o que valem e nos tempos de chumbo em que vivemos a palavra terrorismo banalizou-se de tal maneira que «comentadores» de jornais e de tv's utilizam-na para atacar desde o PC, ao BE e aos libertários. Escondem o seu próprio ódio fascista, alardeando o ódio que dizem sermos portadores.

2. Um desses comentadores chegou a referir, sem a mínima hesitação, que antes de se prolongar na sua pobre «análise» do massacre de Gaza que o «conceito de vida nos países árabes não era o mesmo que no ocidente»! (CNN, 11/10). Dizer isto é o mesmo que concordar implicitamente com o ministro de defesa de Israel quando afirmou que os israelitas estão a guerrear com «animais», portanto sub-humanos, tal como os nazis consideravam os judeus no genocídio dos campos da morte na II Guerra Mundial.

3. Sobre a violência, ela é legítima quando defende um povo cujo território não é só ocupado violentamente há décadas, como lhe retiraram todas as possibilidades de viverem dignamente ou, sequer, sonhar com elas. O que acontece com os palestinianos hoje. Não vejo nenhum libertário coerente ou pertencente à esquerda radical que encare o Hamas, o Hezbolah ou a Jihad Islâmica como representante legítimo do povo palestiniano, quer pela sua prática de matar civis indiscriminadamente, tal como faz o ocupante israelita, quer pela sua vertente religiosa e fanática que nos coloca nos seus antípodas. Tal acontece igualmente com o objectivo não declarado de Israel em tornar-se um estado teocrático, não necessitando de ter uma Constituição escrita, mas votando no Knesset, em sua substituição, uma Lei do Estado-Nação em 2018 que estabelece «a Terra de Israel como a pátria do povo judeu»! O objectivo do Grande Israel que está implícito desde 1948 compreende regiões da Síria, do Iraque o do Líbano.

4. Não há um «conflito israelo-palestiniano» como alguns amigos defendem. Existe uma ocupação violenta e genocida sobre o povo palestiniano, esse sim, desarmado perante todo o horror. Afirmar que em Israel existe luta de classes, tal como na Palestina, é uma meia-verdade que pode levar a confundirmos as duas realidades como sendo iguais em recursos e em riqueza produzidos. E não são. Basta saber o mínimo do genocídio para verificar a imbecilidade de tal defesa.

5. Quando durante anos, a maioria dos libertários e da esquerda radical denunciaram (e bem) o papel da ONU ao lado dos mais fortes e ignorando petulantemente os mais fracos e explorados do mundo, surgem agora alguns de uma maneira cómoda e hipócrita e defenderem as suas resoluções que nunca foram cumpridas pelo agressor israelita. Recusaram qualquer discussão sobre geopolítica, demonstrando a sua inconsequência devido à defesa teórica um mundo sem fronteiras, que neste caso não se coloca: é que não há «fronteiras» em Gaza. Há corredores com arame farpado e mar minado!

6. A esquerda e os libertários não devem permanecer numa posição defensiva e reaccionária, passando o pouco tempo disponível a afirmar que não se reveem nos grupos religiosos islâmicos, porque isso não tem sentido nenhum. Os «mas»... que se seguem à defesa do povo palestiniano não se compadecem com a urgência de uma resolução rápida para a ocupação assassina de Israel sobre Gaza. O que devemos exigir dos pobres comentadores e indivíduos ou grupos que defendem Israel é a clarificação total das suas posições genocidas, colocando-os ao lado dos mísseis sobre Gaza e das declarações racistas do governo israelita.

7. Não há possibilidade de outra defesa senão aquela de estarmos ao lado do povo palestiniano sem quaisquer hesitações. Não só por ser a parte mais fraca (dantes era um atributo da esquerda que, penso, ainda não estar esquecida!), mas porque se corre o risco de, mais uma vez, serem abandonados quer pelos seus congéneres árabes, quer pela indiferença criminosa e doentia do Ocidente. E estar «ao lado» do povo palestiniano significa exigir o cessar-fogo imediato (até agora a chamada «comunidade internacional» não o exigiu!) e início de um processo com interlocutores sérios que levem à existência de uma Palestina livre e independente de todos os autoritarismos.

terça-feira, outubro 17, 2023

«O Morcego», Jo Nesbo

 

BIS, Livro de Bolso, 2ª ed. 2019. Trad. (inglês) Maria Georgina Segurado
Primeiro livro da série do inspector norueguês Harry Hole é claramente uma aposta sofrível. Os acontecimentos não fluem, são colocados a camartelo para dar algum aspecto de verosimilhança, mas falha completamente. Um polícia que vem da Noruega à Austrália para se inteirar de um assassínio de uma rapariga norueguesa em Sidney, vítima de um assassino em série, dão-lhe uma arma que usa à fartazana, anda à porrada em bares, bebe que se farta, estampa carros, utiliza prostitutas para ter acesso a informações e pior que tudo, envia para a morte certa a sua namorada sueca, por quem diz ter-se apaixonado loucamente, para os braços do assassino que a mata sem rebuço, usando-a como isco! Isto sem haver inquéritos, expulsões da polícia, ou sequer uma advertenciazinha. Ou a polícia australiana anda a dedicar o seu tempo ao surf ou estamos perante uma piada ao país, repetida vezes sem conta no livro para com os australianos, pouco focados nas lides policiais. As drogas aparecem em todo o lado, tal como a prostituição generalizada nas ruas, tal como os hippies tardios, os gays são em maior número do que em S. Francisco o que o leva a declarar à namorada, ainda viva na ocasião, que se sente mal ao reparar que são o único par heterossexual na King's Cross de Sidney, tal como os aborígenes que são gente dada a crimes, pobreza, alcoolismo (ele que é alcoólico!), prostituição e disfuncionalidade familiar. Todavia, dados aos mais profundos segredos da Natureza.

E por falar em aborígenes, claro que o assassino em série será um deles. Só massacra e viola (por vezes a ordem inverte-se) mulheres louras sem filhos (requinte de malvadez) para que não possam procriar mais tarde e, assim mesmo, se vinga da forma como os brancos humilharam, maltrataram e torturaram o povo que vivia há 60 mil anos na Austrália. Mesmo que os estudos revelem que os assassinos em série são geralmente homens brancos, alguns com família constituída e perfeitamente integrados socialmente. Mas, para o livro de Nesbo, essa vingança sociopata só poderia vir de um aborígene que morre no aquário de Sidney engolido por um tubarão!! Claro que Harry Hole, antes, tenta matá-lo a tiro, por entre as pessoas que, com os filhos, visitavam calmamente o aquário e que tiveram como bónus ao bilhete adquirido, um tipo a ser comido aos safanões por um tubarão branco. Já antes, em capítulos anteriores, um palhaço tinha sido decapitado por uma guilhotina, expelindo rios de «sangue e medula» (sic), perante o entusiasmo da criançada! Se me contassem que isto era descrito num livro não acreditaria à primeira...

Mas as coisas estão assim: enquanto me dedico à História, principalmente de autores contemporâneos que obviamente não conheci na Faculdade e na leitura de autores malditos do século XX, tive necessidade de intervalar com alguns livros policiais que sempre gostei de ler, aliás. Não os conhecendo como deveria, levei este Nesbo, apodado, na capa do livro de bolso, de «autor nórdico do momento, best seller internacional» e que me custou 9,95 euros. Que fiquem pois com o seller que como best, estamos conversados. Grande banhada nórdica!

sexta-feira, outubro 13, 2023

«Uma Nova História do Mundo Clássico», de Tony Spawforth

Alma dos Livros, 2021. Tradução de Paulo Mendes
Título presunçoso tendo em conta ao que se propõe: uma «nova» história do mundo clássico! Sinceramente, nada encontrei de novo relativamente ao que se estudava há 45 anos. A saber: que o Linear A micénico ainda não foi decifrado (Done!); que Atenas e Esparta não se podiam ver (Done!); que, apesar de tudo, Esparta esteve a lutar ao lado de Atenas contra os Persas (Done!); que Homero era excepcional e que os seus poemas vieram até nós pela tradição oral (Done!); que os gregos eram requintadamente amantes da cultura, embora também fossem amantes entre homens (várias vezes realçado!) e as mulheres tivessem poucos direitos (Done!); que a Democracia não era benquista por Platão (Done!); e assim por diante... nada a declarar igualmente sobre Roma que é uma sucessão de lugares-comuns sem nada de verdadeiramente «novo» que instigue a aquisição da obra. 

O título do livro sugere a tendência de hoje no campo da divulgação histórica. Essa presunção do «novo» não é só sobre este livro. Basta passear pelas estantes das livrarias dos centros comerciais para ver que o vocábulo «novo» se implanta em qualquer livro principalmente nesta disciplina. Mas a insolência do «neo» acaba aqui. De facto, há qualquer coisa de novo no ar e que lemos neste livro em particular (mas há outros, há outros!): o recurso à experiência pessoal do autor, isto é, sem que seja necessário, ele diz que esteve presente na escavação tal ou tal, de modo a dar uma certa verosimilhança ao «estudado» mesmo que a escavações referidas não tenham dado em nada ou acrescentado algo de diferente do que já se sabia; a islamofobia latente em cada linha da exposição - chega a referir o «vandalismo islâmico», como coisa assente; ainda que de mansinho, uma simpatia não escondida e desculpabilizadora da acção de autocratas e imperadores como Nero ou Calígula, vítimas segundo ele de exageros contemporâneos. visto que eram amados pelo povo; o recurso irritante a comparações de imperadores ou políticos gregos e romanos com (imaginem!) Thatcher ou Trump; comparar a derrocada do império de Alexandre com a «Guerra dos Tronos» da Netflix, ou «chamar» a Rowling de «Harry Potter» para exemplificar os augures ou as pitonisas de Delfos é um exercício sublime de estupidez ou de uma puerilidade confrangedora.

Estamos de volta à história anedótica, personalizada, sem uma corrente de ar fresco que nos faça reconhecer e avançar nos estudos das instituições, da sociedade, da cultura, ou da economia dos povos. É pouco para um presunçoso e insolente «neo»!

«Os Litigantes», John Grisham

 

Bertrand Ed., col. 11/17. Tradução de Ana Mendes Lopes
Para quem ache que o policial é uma literatura menor aconselho a ler as opiniões que sobre o tema escreveram os principais escritores portugueses, ou não; para o caso, as fronteiras de nada servem. Mas ler John Grisham é uma boa aposta. Mais ainda se ele, com o conhecimento de causa que se lhe reconhece (foi advogado litigante durante anos antes de se tornar uma «besta célere»), nos demonstrar a completa imoralidade e insensibilidade do sistema de saúde americano e dos lucros fabulosos das multinacionais farmacêuticas dos EUA. O livro «Os Litigantes» é igualmente um retrato bem vivo do sistema de justiça que acompanha bem de perto o sistema de saúde. Todos ganham, menos, obviamente, os que mais precisavam de apoio. Os doentes, com ou sem seguros de saúde, as pessoas usadas como cobaias dos países pobres do Sul americano, africano ou asiático e os pequenos advogados engolidos pelos grandes escritórios de autênticos tubarões sempre em busca de vítimas e dólares. Também há advogados especialistas  em acusar os advogados que perdem invocando negligência, como se, em tribunal, entre a defesa e a acusação, a matemática não obrigasse um a perder! Mas há também especialistas em procurar desastres de automóveis, brinquedos chineses à venda com níveis de chumbo não adequados, especialistas em pessoas obesas para litigar com farmacêuticas ou com restaurantes de comida rápida. Alguns nem chegam a tribunal. Um punhado de dólares em acordos e já está, só que o dinheiro nunca chega às «vítimas». 

O liberalismo no seu melhor. O mesmo é dizer que vale tudo e tudo está à venda, seja o corpo humano, seja a própria justiça com o seu cortejo de hipocrisias e nomeações. Aqui, quem manda é quem tem dinheiro. Tão simples como isso. Um livro que substitui as longas páginas de jornais (alguns com interesses inconfessáveis) sobre o assunto e que, por vezes, lhes cheiramos as conivências. Ler este livro vale mais do que ler intermináveis e laboriosos estudos sobre as virtudes do liberalismo.