domingo, maio 28, 2023

«24/7», de Jonathan Crary

 

Antígona, 2018. Tradução de Nuno Quintas
O título do livro de Jonathan Crary, professor de História de Arte na Universidade da Columbia e editor da Zone Books, tem um significado: é o objectivo do capitalismo, dos muitos que tem, em apoderar-se de que ainda não foi capaz - não por incompetência, mas por falta de mais tempo que entretanto já domina - a saber o nosso sono. Aliás, o sub-título é revelador: «O capitalismo tardio e os fins do sono». A partir daqui entendemos que 24/7 refere-se a 24 horas, a 7 dias da semana. O trabalho transformar-se-á num continuum absoluto, não desligável de qualquer aparelho tecnológico, a lógica da separação relativamente ao Outro torna-se inquestionável, a luz permanece em todos os lugares (o silêncio já não mora aqui no planeta, já que se assenhoreou completamente de espaços públicos e privados, como sabemos), a paz e o bem-estar é a novilíngua orwelliana, enquanto as massas clamam por guerra «defensiva», a pobreza alastra para zonas nunca antes afectadas e a crise climática vende-se com ainda mais extractivismo que nos leva, radiosos, para o fim de uma era inigualável e irrepetível por exaustão. 

As previsões distópicas de Joanathan Crary não são improváveis de se verificarem num futuro próximo. Provavelmente poderemos classificá-las como muito pessimistas, até porque no decorrer do seu ensaio transmite-nos a sua perplexidade face aos optimistas que acham sempre que o capitalismo superará a queda anunciada do planeta sempre com novas tecnologias. Até falharem ou serem de todo inúteis. Mas se analisarmos bem a história deste sistema, desde o século XIX até hoje, vemos que este tem tido êxitos sobre êxitos ao ganhar o ar, a água, a terra, os corpos, as florestas, as trocas, as comunidades, com uma violência que só os mais distraídos, ou os indefectíveis, não observam. Ora, Jonathan Crary parte do princípio muito aceitável que este sistema chegará a um patamar não reformável. O autor explica melhor ao que vem na última Electra 20 em entrevista a Afonso Dias Ramos. Vale a pena lê-la até porque se perfila a continuidade da sequela iniciada com 24/7 com «Terra Queimada» ainda não traduzido entre nós. Vejamos alguns trechos de 24/7:

«Quem tenha vivido na costa oeste da América do Norte talvez saiba que, todos os anos, centenas de espécies de aves fazem a migração sazonal para norte e para sul, percorrendo várias distâncias ao longo dessa plataforma continental. Uma dessas espécies é o pardal-de-coroa-branca. No Outono, a sua rota leva-o do Alasca ao Norte do México e, na Primavera, de regresso ao Norte. Ao contrário da maioria das aves, este pardal tem uma capacidade altamente invulgar, durante as migrações, de ficar acordado durante sete dias. Tal comportamento sazonal permite-lhe voar e navegar à noite e procurar alimento durante o dia sem descansar. Nos últimos cinco anos, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América gastou copiosas somas no estudo destas criaturas. Em diferentes universidades, sobretudo em Madison, no Wisconsin, investigadores com financiamento público têm estudado a actividade cerebral das aves durante os longos períodos em que não dormem, na esperança de ganharem conhecimento que possa aplicar-se aos seres humanos. O intuito é descobrir como as pessoas podem não dormir e, além disso, funcionar com produtividade e eficiência. O objectivo primordial é, pura e simplesmente, criar o soldado insone, e o projecto de estudo do pardal-de-coroa-branca é só pequena parte de um grande esforço militar para conseguir um domínio, mesmo que estrito, do sono humano.(...)» Págs. 9 e 10. Devo aqui apontar o departamento de que fala o autor: é o DARPA, acrónimo inglês de Agência de Projectos Avançados de Investigação em Defesa,

Depois de nos apresentar casos concretos da viabilidade deste estudo ainda somente aplicado à Defesa, começamos a entender que o capitalismo, desde sempre, não se contentou em trilhos para aumentar a produtividade contínua. isso sempre o fez. O projecto mais louco de todos parece ser o que juntou os EUA, Rússia, China e Europa na construção de um enorme satélite cujo fim seria enviar a luz do sol para a parte coberta pela noite no planeta, de modo a ser possível «poupar» na electricidade! Até agora todas as tentativas falharam, mas mostram bem que estão longe de desistirem no desejo de nos fazerem zombies. O que agora se pretende é exercer um domínio totalitário sobre o sono humano de modo a estarmos psicologicamente e fisicamente disponíveis para o trabalho contínuo a todas as horas do dia e da semana. Até poderemos ter os quatro dias de trabalho semanal, porque, paradoxalmente, antes de ser implantado já está obsolescente! No final, Jonathan Crary observa em 24/7:

«Hoje, no século XXI, o desassossego no sono apresenta uma relação mais conturbada com o futuro. Situado algures no limiar entre o social e o natural, o sono assegura a presença nos padrões faseados e cíclicos essenciais à vida e incompatíveis com o capitalismo. É preciso ler a sua persistência anómala numa relação com a destruição em curso dos processos que sustentam a existência no planeta. Não podendo o capitalismo restringir-se a si próprio, a ideia de preservação ou conservação é uma possibilidade sistémica. É neste contexto que a inércia restauradora do sono contraria a imortalidade de toda a acumulação, financeirização e desperdício que arrasou tudo aquilo que se tinha por comum. Hoje só um sonho suplanta todos os outros: o de um mundo partilhado cujo destino não é terminal, um mundo sem multimilionários, com um futuro que não o do barbarismo ou do pós-humano, e no qual a história possa assumir formas outras, para lá dos pesadelos reificados da catástrofe.(...)». Págs. 132 e 133.

sábado, maio 27, 2023

Estudos 8, Céline

 

Trabalho em progresso: Louis-Ferdinand Céline. Tinta-da-china e aguarela

"Viagem ao Fim da Noite", Louis-Ferdinand Céline


Edição da Ulisseia, Babel. Tradução de Aníbal Fernandes. Capa de Henrique Cayatte 2014. 6' edição 

Voltar sempre a Céline, pois.

« - Tens assim tanto medo?
- Mais do que isso, Lola. Tanto medo, vê bem, que se eu morrer mais tarde de morte natural, o que acima de tudo não quero é que me queimem! Gostaria que me deixassem na terra, a apodrecer no cemitério tranquilamente e pronto a reviver talvez. nunca se sabe! Ao passo que queimado até às cinzas, Lola, tudo está acabado e bem acabado, compreendes?... Apesar de tudo um esqueleto ainda se parece alguma coisa com um homem...Está sempre mais apto a reviver do que as cinzas...As cinzas...acabou-se O que dizes tu?...E nesse caso a guerra...
- Oh! És de facto um grande cobarde, Ferdinand! Tão repugnante como um rato...
- Sim, de facto um grande cobarde, Lola, recuso a guerra e tudo o que tem dentro...Não a lamento...Não me resigno...Não choramingo por minha causa...Recuso-a por inteiro, com todos os homens que ela contém, não quero nada com eles nem com ela. Fossem novecentos e noventa e cinco milhões de um lado e eu do outro, não teriam razão, Lola, quem tem razão sou eu porque só eu sei o que quero: não quero morrer.
- Mas é impossível recusar a guerra, Ferdinand! Só os loucos e os cobardes recusam a guerra quando a sua Pátria está em perigo...
- Então vivam os loucos e os cobardes! Ou antes, sobrevivam os loucos e os cobardes! Recordas um só nome, Lola, de um dos soldados mortos durante a Guerra dos Cem Anos?...Alguma vez tentaste conhecer um só desses nomes?...Não, por certo...Nunca tentaste? Para ti também são anónimos, indiferentes e mais desconhecidos do que o último átomo deste pisa-papéis aqui à nossa frente, ou a tua torrada matinal...Vê lá tu como morreram para nada, Lola! Para absolutamente nada, esses cretinos! Afirmo-o! A prova está tirada! Só a vida conta. Aposto que esta guerra, tão importante como nos parece, daqui a dez mil anos estará completamente esquecida...Haverá uma dúzia de eruditos, quando muito, a brigarem aqui e além por causa dela e a propósito das datas das principais hecatombes que a ilustraram...E é tudo o que os homens até este momento conseguiram encontrar de memorável a respeito dos outros, a alguns séculos, a alguns anos e até a algumas horas de distância...Não acredito no futuro, Lola...»
Págs. 72 e 73

«Eu tinha o hábito e até mesmo o gosto destas íntimas e meticulosas observações. Por exemplo, quando nos detemos no modo como são formadas ou proferidas as palavras, as nossas frases não resistem lá muito ao desastre do seu cenário baboso. Mais complicado e aflitivo do que a defecação é o esforço mecânico da conversa. A corola de carne entumecida, a boca que se convulsiona a soprar aspira e debate-se expele toda a espécie de sons viscosos através da barragem pestilenta da cárie dentária, que castigo! No entanto, aí está o que nos exortam a transpor em ideal. É difícil. Como não passamos de recintos com tripas mornas e quase apodrecidas, havemos sempre de ter dificuldades com o sentimento. Estarmos apaixonados não é nada, mantermo-nos os dois juntos é que é difícil. A imundície, essa, não procura resistir nem desenvolver-se. Aqui, neste ponto, somos bem mais infelizes do que a merda; no nosso estado, a fúria de preservação constitui uma tortura incrível.
Decididamente, não adoramos nada mais divino do que o nosso cheiro. Toda a nossa infelicidade resulta de termos de continuar a ser Jean, Pierre ou Gaston, custe o que custar e durante um ror de anos. Este corpo, fantasia carnavalesca de moléculas excitadas e banais, a todo o instante se revolta contra a farsa atroz da sobrevivência. As nossas moléculas, essas queridas, querem dispersar-se o mais possível pelo universo! Sofrem por só terem de ser «nós», cornos de infinito. Explodiríamos se tivéssemos coragem, apenas falhamos, dia após dia. Atómica, a nossa adorada tortura encerra-se com o orgulho ali, na nossa própria pele.»
Págs. 311 e 312


terça-feira, maio 23, 2023

Helena

 


Helena Topa deu-me a conhecer a austríaca Elfriede Jelinek e, por sua sugestão e de Bruno Monteiro, vim a editar pela Deriva, em 2014, «Manual de Sabotagem», hoje esgotado. Foi uma edição bilingue e revista aqui e ali por si, visto que era uma extraordinária tradutora da língua alemã. Faleceu ontem, de doença não tão prolongada assim, visto que surpreendeu muita gente que a conhecia e que de algum modo contactou com ela. Ficou a sua vasta obra em inúmeras traduções tais como de Thomas Mann, Peter Handke, Giorg Simmel, Stephan Zweig, Anne Weber, Günther Grass, Herta Müller, Ingeborg Bachmann e a já citada Elfriede Jelinek, entre muitos outros. Ainda mal refeito da morte de uma autora maior, esta notícia pairou sobre mim como um choque difícil de ultrapassar. Fará muita falta o seu rigor profissional e o seu empenho nas lutas cívicas LGBT que protagonizava. As sementes ficaram.

Eduarda

 

A Eduarda empreendeu a viagem que nunca esperamos. No caso dela, sinto a sua morte como um choque tremendo que noutros casos de amigos não senti, assim, tão violento. Acho injusto. Quase inverosímil e, provavelmente é-o, para pessoas que deixaram o rasto que ela deixou nas lutas que empreendeu e no que escreveu ou pintou. Prometi não fazer epitáfios, mas exige-o neste momento de dor, incompreensão pela finitude, mesmo que saibamos todos ser inevitável e por uma questão de ser impossível a sua substituição. A Diana, a menina reguila que conheci como criança vai levar adiante o trabalho da mãe, tal como o do avô. É gente de fibra.

A Eduarda tinha tanto de afável como de mau feitio e isto é sempre um elogio para as fortes convicções que ela apresentava. Este último, nos anos 90, quando tentávamos no PSR organizar a luta por um sindicalismo docente renovado, fora da modorra política, que os burocratas lhe imprimiam na Fenprof, era o que mais se fazia sentir. Acredito que lhe faltava a paciência para a negociação de listas de oposição sindical ou participar em jogos palacianos. Interessava-lhe muito mais a base, as decisões de base, legitimadas por assembleias livres. Aconteceu isso em 93 no encontro alternativo de Buarcos mas com êxito relativo, por falta de constituição de uma corrente revolucionária na classe docente. Quanto à literatura e pintura, a  Eduarda transformava-se e entusiasmo transbordava nela e quantos a rodeavam. Não concebia qualquer elitismo literário ou artístico, tão comum nos meios da cultura. Ela era assim. Só uma única vez a vi irritada quando lhe dissemos que os seus livros, que líamos sempre, retratavam de facto uma geração e que necessariamente influenciariam outras que viessem. Na ocasião, rebateu ponto por ponto os elogios (não eram somente elogios) falando do comércio livreiro e editorial como um empecilho que estava, já no final dos anos 80 e, depois, nos 90, a vender-se à cultura anglo-saxónica, em detrimento da nossa. A normalização ocidental, europeia, em marcha, pois. Que ela não deixou de registar e denunciar. A Revolução em ponto morto até fazer marcha atrás com o cavaquismo. Aprendi muito com a Eduarda.

Nestas ocasiões uma pessoa não deve falar de si. Mas, subitamente, a morte de Eduarda Dionísio veio calar fundo. Com força. Lembrei-me da Rua da Palma, do PSR e da força da esquerda alternativa em crescimento no início dos anos 90. A luta contra os skinheads que assassinaram cobardemente José Carvalho. A importância crescente do jornal Combate onde a Eduarda Dionísio participou activamente. E cada vez que, por motivos políticos e partidários, eu chegava a Lisboa, lá se juntava um grupo inteiramente informal onde pontificava o Carlos Prazeres Ferreira, a Guida, o Juba, o Zuzarte, a Eduarda e o Maçarico, seu companheiro. As noites, então, prolongavam-se. Nas férias grandes, em Melides, lá íamos à casa do Prazeres Ferreira ou do Zuzarte e repetiam-se as longas conversas, o desfilar de memórias, os projetos individuais e colectivos, os almoços magníficos e intermináveis. 

Penso, com esta viagem inesperada da Eduarda, que nenhum destes amigos que referi neste grupo se encontra já entre nós. Por isso, hoje, sinto-me bastante sozinho. A Eduarda Dionísio tornar-se-á uma referência para qualquer inconformista que ainda pense que a transformação social e cultural se fará sempre por revoluções cada vez mais prementes. Ela deixou um caminho válido e isso é que importa.

Até breve, Eduarda Dionísio.

sexta-feira, maio 12, 2023

«Guerra», Louis-Ferdinand Céline

 

Livros do Brasil, 2023. Tradução de Diogo Paiva
Obra póstuma sob a responsabilidade de Pascal Fouché e prefaciada por François Gibault, saiu em 2022 pela Gallimard não sem algumas peripécias. Este manuscrito foi encontrado entre os papéis perdidos, ou melhor, confiscados pelas autoridades francesas no pós-libertação de 1945 e, ao que parece, seria a continuação do «Três em Pipa» que narra o ferimento grave que assolou o primeiro-sargento Louis Destouches (o nome verdadeiro de Céline) na frente de guerra de 1914-18 e posterior internamento no hospital militar de Hazebrouck. O manuscrito encontrava-se entre os papéis de Lucette Almansor, a segunda mulher de Céline, e bastante incompleto. Aliás, segundo aquela, o escritor tentou reaver a obra sem sucesso até desistir de o conseguir. Como sabemos, morre em 1961, sob o opróbrio geral sem que alguma vez tenha conseguido completá-lo. Não me cabe a mim afirmar o mérito ou demérito desta edição, ou mesmo da sua legitimidade, mas consegue-se vislumbrar um registo límpido do argot tão característico de Céline, a que se junta não só a ironia como a violência perante o horror da guerra e da ideia assassina de nação. Para além de tudo, o prefácio de Gibaut é, no mínimo, polémico quando parte do princípio que «Guerra» seria uma biografia e não um romance ou a continuação de um outro romance. Ou seja, se neste livro há elementos claros de um registo biográfico caro ao escritor, também é verdade que Céline utiliza as personagens que ele conheceu realmente para construir uma narrativa terrível onde o odor pestilento da guerra que transforma tudo e todos e que as levam a comportamentos bizarros e de algum modo decadentes. Daí, a afirmar que Céline mentiu, ou que foi injurioso para com elas, ou é má fé ou ignorância. Ainda não vi melhor prefácio sobre o autor do que aquele que foi escrito por Aníbal Fernandes para a 6ª edição portuguesa de «Viagem ao Fim da Noite», da Ulisseia, em 2014. Tirando estes factos, alguns burlescos, sobre a quem pertenceriam os direitos de herança dos manuscritos roubados a Céline e de que ele fez uma lista (este manuscrito estava listado por ele) quando da sua prisão numa fortaleza na Dinamarca entre 1945 e 1951, sabe-se que haverá mais talvez nas mãos de Lucette Almansor ou filhos e que isso o perturbava muito. Mas que poderia ele fazer quando se encontrava em pleno ostracismo numa espécie de prisão domiciliária na vila de Meuton a tratar dos seus cães e de um papagaio, sem sequer ter acesso aos seus netos e filha? «Rien...»

«Há que admitir que a partir desse momento [a atribuição de uma medalha por bravura em combate pelo General Joffre] as coisas ficaram bem porreiras e fantásticas. Em torno de nós soprou uma grande aragem imaginativa. Tive mesmo uma coragem suprema, deixei-me levar, posso dizê-lo. Não cedi à surpresa que me teria mantido tão imbecil como antes a mamar desgraças e apenas desgraças porque era só o que conhecia desde que fui educado pelos meus bons pais, e aliás desgraças bem penosas, bem estafantes, bem transpiradas. Não conseguia acreditar na feira inventiva na qual me pediam que montasse num cavalinho de madeira, todo equipado de mentiras e veludos. podia ter recusado. Não recusei.
Alto!, disse eu para mim, o vento sopra, Ferdinand, emparelha a tua galé, deixa os idiotas na merda, deixa-te levar, não acredites em mais nada. Estás todo partido em mais que dois terços, mas com o bocadinho que te sobra ainda vais espairecer, deixa que o aquilão favorável sopre sobre ti. Durmas ou não durmas, cambaleia, fornica, vacila, vomita, espuma-te, cobre-te de pústulas, põe-te febril, esmaga, trai, não te preocupes, é tudo uma questão de vento que sopra, nunca serás tão cruel e aldrabão como o resto do mundo. Em frente, é tudo o que te é pedido, tens medalha, és belo. Na batalha dos paspalhos estás finalmente a ganhar com grande avanço, tens a tua fanfarra particular na cabeça, tens a gangrena a meio, é claro que estás podre, mas viste o campo de batalha onde não se condecoram os cadáveres e tu, sim, foste condecorado, não o esqueças ou não passarás de um ingrato, o vomitado desnorteado, a escumalha de cu baboso, vales mais do que o papel com que te limpas.» (pág.78)

segunda-feira, maio 08, 2023

«Escritos Africanos», de Annemarie Schwarzenbach e «Revisitar Annemarie Schwarzenbach» de Gonçalo Vilas-Boas

 

Relógio D'Água, 2023. Selecção e prefácio de Gonçalo Vilas-Boas e tradução (do alemão) de Maria Antónia Amarante

Deriva Editores e Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (FLUP), 2015. Gonçalo Vilas-Boas. Ilustrações e capa de Rita Roque

«Conheci» Annemarie Schwarzenbach através de Gonçalo Vilas-Boas quando existia a parceria Deriva Editores/Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da FLUP, de que este era um dos responsáveis. Hoje, e antes de falar de uma autora que me prendeu, estão disponíveis na Relógio D'Água alguns livros dela traduzidos em grande parte por aquele professor. São eles: «Todos os Caminhos Estão Abertos» com tradução de Miguel Serras Pereira, «Inverno no Próximo Oriente», «Com Esta Chuva», «Ver Uma Mulher» e agora o interessantíssimo «Escritos Africanos», uma súmula de escritos que ela fez no Congo e com passagem por Portugal. Entretanto a Granito tinha editado «Novela Lírica» com prefácio de Vilas-Boas, tradução de Lídia Barros e revisão de Ana Luísa Amaral, isto em 2002; a Tinta-da-China editou-lhe, em 2008, «Morte na Pérsia», com tradução de Isabel Castro Silva. Esperemos outros que estejam a ser trabalhados para publicação.

Annemarie Schwarzenbach não é aquilo que chamamos vulgarmente como uma escritora fácil. Por vezes contraditória, introspectiva, algo frágil, violentamente teimosa para o que considerava essencial para a sua consciência, morfinómana, bissexual, «ovelha negra» de uma família suíça com simpatias nazis e muito rica, expulsa de casa pela mãe que quase a renegou, e, além disso, antifascista. Foi jornalista e fotógrafa tendo um espólio de perto de oitocentas fotografias que registou nas suas inúmeras viagens por todo o mundo.

Estes «Escritos Africanos» não vivem só de África, embora centrados no Congo ex-Belga, hoje Zaire. Para lá chegar em 1941, em plena II Guerra Mundial, teve de passar em Lisboa vinda dos EUA onde foi internada num hospital psiquiátrico e expulsa devido a uns chamados então «escândalos» com a não menos escandalosa menina von Opel. Vê-se, então, numa capital portuguesa que ela acha, nada menos, como idílica. Dê-se-lhe o devido desconto ao estarmos em plena guerra pois a cidade estava literalmente ocupada por espiões, oportunistas, milhares de refugiados em trânsito e em busca de um simples visto de saída, o que dava a Lisboa um ar de cosmopolitismo que de todo não tinha, se não fosse a situação política mundial. Além disso, também mal vista no seu país pela família e impedida de lá permanecer muito tempo, escolheu a «neutralidade» fictícia de Portugal. Teve tudo para ser bem recebida aqui. António Ferro conheceu-a e congratulou-se com a sua estadia por Lisboa, escrevendo então ao embaixador suíço (as nossas exportações para lá, quase decuplicaram em período de guerra, transformando igualmente os portos de Lisboa e Leixões como portos abertos suíços para todo o mundo) que o governo português veria com bons olhos que ela fosse a correspondente de jornais suíços por cá. Talvez seja essa a razão ao ver, com alguma surpresa para o comum dos portugueses, em alguns dos seus escritos jornalísticos, uma toada laudatória para com Salazar (que o não considera fascista, embora tenha referido a existência de violência por parte da polícia política ou a enorme pobreza das pessoas) ou para com o Mocidade Portuguesa, nomeadamente a feminina. No entanto, quando se debruça sobre a política do burgo, este registo literário não é o habitual nela. É pura propaganda política dir-se-ia saído directamente do gabinete de António Ferro. Teria sido propositado por parte da escritora? O que sabemos é que em viagem para o Congo era necessário um visto dado em Portugal e em conexão com a Bélgica entretanto ocupada pelos alemães, para além de uma escala obrigatória em Luanda para voltar num barco português.

Em 1941, Annemarie Schwarzenbach vê-se a partir de Lisboa rumo ao Congo fazendo escala na Madeira, nas Canárias e em S. Tomé num navio português: O Colonial. Chega ao Congo, na então Leopoldville e choca-se não só com o clima, mas com a população branca que lá está para extrair o máximo de lucro à custa de «dar» ao povo congolês uma miséria endémica e uma repressão brutal. Tem aqui em «Escritos Africanos» um libelo claro e violento para com o colonialismo. As autoridades fazem-lhe a folha: caluniam-na em privado e em público quer com a sua vida privada, quer com a sua vida pública (perdoe-se a repetição), dando a entender que seria uma espia ao serviço dos nazis devido ao seu estranho casamento com um diplomata francês de Vichy e de que ela se encontrava separada. Além disso, fala e escreve fluentemente alemão. O seu manuscrito de Das Wunder des Baums, ainda não editado em português, está nesta língua e em tempo de guerra, para mais com administração colonial de De Gaulle por parte da «França Livre», tudo serve para eclodir a desconfiança para com Schwarzenbach e, por fim, é convidada a sair do país levando o manuscrito considerado ainda assim injurioso para com os resistentes. Parte então, subindo o rio Congo (o principal livro de Conrad estará presente nesta aventura), para as montanhas e escreve isolada durante algum tempo. Tem apoio de poucos amigos e os que sempre estiveram com ela, como Klaus Mann, afastam-se devido à sua adição à morfina. No entanto, Ella Maillart continua sua amiga até ao fim escrevendo sobre ela (terá o nome de Christine) em «A Vida Cruel».

Annemarie Schwarzenbach tem uma vida extraordinária embora inconstante e errática e é isso que nos aproxima dela e das sua longas viagens. Em pleno estado de guerra, com perigos iminentes, vai juntamente com Ella Maillart a Cabul (ela encontra-se lá quando o conflito estala), passando por Teerão, Damasco e a Síria, Bagdade e Iraque, o Próximo Oriente, incluindo o Líbano e conhece a Turquia. Conheceu Moscovo em 1934 no Congresso de Escritores e criticou duramente aspectos sociais e o racismo nos EUA. Escreve pouco sobre a sua terra natal (aborda-a em O Vale Feliz) e muito sobre si e a sua relação com os outros e com o mundo. Quando se preparava para voltar a Portugal para assumir o cargo de correspondente de jornais suíços, e numa ida fugaz a Zurique, morre num acidente de bicicleta. Estávamos em 1942 e ainda faltavam alguns anos para ver as «forças do mal» serem derrotadas pelos Aliados que, provavelmente, nunca confiaram nela.

Depois de ter percorrido alguns passos de Annemarie Schwarzenbach, arrisco-me a apresentar-vos um extracto de um conto estranhíssimo (movido pela morfina e pelo isolamento nas montanhas do Congo?). Chama-se «A Cratera dos Animais»:

«Pensas, talvez, que o esqueci, pois dentro em breve terão passado quatro meses desde que me falaste do assunto e eu prometi trazer-te um casal dos teus animais favoritos. Acho que era uma espécie de pequenos leões-marinhos ou porcos-do-mar, e claro que se tratava apenas de uma brincadeira e de uma forma de me aligeirar a despedida. Mas já antes ouvira falar de porcos-do-mar, foi alguém que se queria deitar ao lado deles em bancos de areia, numa ilha com um sol de verão e um vento salgado, vindo do mar. Quando relembro isto, oiço sempre o sussurrar da palha e vejo a sua cabeleira amarela e um céu alto, magnífico. Aí a noite demorava a cair, mesmo depois de o sol se pôr e de uma leve neblina se espalhar sobre os prados; porém, o ar era azul-claro e límpido e a cor azul expandia-se para todo o lado. Ainda sei como era fácil respirar fundo, como se estivéssemos cheios de esperanças, e regressávamos ao luar pela larga estrada entre os recintos relvados, cada vez mais pequenos, e as casas brancas nos jardins cheios de roseiras bravas, e ficávamos ainda durante muito tempo sentados em redor da fogueira.
Aqui, em África, nunca se fala em estações do ano e, no entanto, também é verão, os dias despontam e desvanecem-se e é preciso sobreviver-lhes como em toda a parte do mundo. Mas só raramente se recorre à língua e se eu fizesse uma pergunta, por exemplo sobre a cratera dos animais, ninguém me entenderia. Às vezes, julgo que eu própria me modifiquei. Esqueci-me de muita coisa, perdi palavras e nomes, ou digo-os em voz alta e soam a oco. É como se no Congo se falasse de inverno e deverão em vez de chuva e seca. É como se se tivesse perdido o ouvido, como se se andasse cegamente às voltas de olhos abertos, como se já nada se soubesse de outras atmosferas e se lutasse apenas pelo próximo palmo de vida num círculo de sombras. (...)» Págs. 109,110.