domingo, maio 28, 2023

«24/7», de Jonathan Crary

 

Antígona, 2018. Tradução de Nuno Quintas
O título do livro de Jonathan Crary, professor de História de Arte na Universidade da Columbia e editor da Zone Books, tem um significado: é o objectivo do capitalismo, dos muitos que tem, em apoderar-se de que ainda não foi capaz - não por incompetência, mas por falta de mais tempo que entretanto já domina - a saber o nosso sono. Aliás, o sub-título é revelador: «O capitalismo tardio e os fins do sono». A partir daqui entendemos que 24/7 refere-se a 24 horas, a 7 dias da semana. O trabalho transformar-se-á num continuum absoluto, não desligável de qualquer aparelho tecnológico, a lógica da separação relativamente ao Outro torna-se inquestionável, a luz permanece em todos os lugares (o silêncio já não mora aqui no planeta, já que se assenhoreou completamente de espaços públicos e privados, como sabemos), a paz e o bem-estar é a novilíngua orwelliana, enquanto as massas clamam por guerra «defensiva», a pobreza alastra para zonas nunca antes afectadas e a crise climática vende-se com ainda mais extractivismo que nos leva, radiosos, para o fim de uma era inigualável e irrepetível por exaustão. 

As previsões distópicas de Joanathan Crary não são improváveis de se verificarem num futuro próximo. Provavelmente poderemos classificá-las como muito pessimistas, até porque no decorrer do seu ensaio transmite-nos a sua perplexidade face aos optimistas que acham sempre que o capitalismo superará a queda anunciada do planeta sempre com novas tecnologias. Até falharem ou serem de todo inúteis. Mas se analisarmos bem a história deste sistema, desde o século XIX até hoje, vemos que este tem tido êxitos sobre êxitos ao ganhar o ar, a água, a terra, os corpos, as florestas, as trocas, as comunidades, com uma violência que só os mais distraídos, ou os indefectíveis, não observam. Ora, Jonathan Crary parte do princípio muito aceitável que este sistema chegará a um patamar não reformável. O autor explica melhor ao que vem na última Electra 20 em entrevista a Afonso Dias Ramos. Vale a pena lê-la até porque se perfila a continuidade da sequela iniciada com 24/7 com «Terra Queimada» ainda não traduzido entre nós. Vejamos alguns trechos de 24/7:

«Quem tenha vivido na costa oeste da América do Norte talvez saiba que, todos os anos, centenas de espécies de aves fazem a migração sazonal para norte e para sul, percorrendo várias distâncias ao longo dessa plataforma continental. Uma dessas espécies é o pardal-de-coroa-branca. No Outono, a sua rota leva-o do Alasca ao Norte do México e, na Primavera, de regresso ao Norte. Ao contrário da maioria das aves, este pardal tem uma capacidade altamente invulgar, durante as migrações, de ficar acordado durante sete dias. Tal comportamento sazonal permite-lhe voar e navegar à noite e procurar alimento durante o dia sem descansar. Nos últimos cinco anos, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América gastou copiosas somas no estudo destas criaturas. Em diferentes universidades, sobretudo em Madison, no Wisconsin, investigadores com financiamento público têm estudado a actividade cerebral das aves durante os longos períodos em que não dormem, na esperança de ganharem conhecimento que possa aplicar-se aos seres humanos. O intuito é descobrir como as pessoas podem não dormir e, além disso, funcionar com produtividade e eficiência. O objectivo primordial é, pura e simplesmente, criar o soldado insone, e o projecto de estudo do pardal-de-coroa-branca é só pequena parte de um grande esforço militar para conseguir um domínio, mesmo que estrito, do sono humano.(...)» Págs. 9 e 10. Devo aqui apontar o departamento de que fala o autor: é o DARPA, acrónimo inglês de Agência de Projectos Avançados de Investigação em Defesa,

Depois de nos apresentar casos concretos da viabilidade deste estudo ainda somente aplicado à Defesa, começamos a entender que o capitalismo, desde sempre, não se contentou em trilhos para aumentar a produtividade contínua. isso sempre o fez. O projecto mais louco de todos parece ser o que juntou os EUA, Rússia, China e Europa na construção de um enorme satélite cujo fim seria enviar a luz do sol para a parte coberta pela noite no planeta, de modo a ser possível «poupar» na electricidade! Até agora todas as tentativas falharam, mas mostram bem que estão longe de desistirem no desejo de nos fazerem zombies. O que agora se pretende é exercer um domínio totalitário sobre o sono humano de modo a estarmos psicologicamente e fisicamente disponíveis para o trabalho contínuo a todas as horas do dia e da semana. Até poderemos ter os quatro dias de trabalho semanal, porque, paradoxalmente, antes de ser implantado já está obsolescente! No final, Jonathan Crary observa em 24/7:

«Hoje, no século XXI, o desassossego no sono apresenta uma relação mais conturbada com o futuro. Situado algures no limiar entre o social e o natural, o sono assegura a presença nos padrões faseados e cíclicos essenciais à vida e incompatíveis com o capitalismo. É preciso ler a sua persistência anómala numa relação com a destruição em curso dos processos que sustentam a existência no planeta. Não podendo o capitalismo restringir-se a si próprio, a ideia de preservação ou conservação é uma possibilidade sistémica. É neste contexto que a inércia restauradora do sono contraria a imortalidade de toda a acumulação, financeirização e desperdício que arrasou tudo aquilo que se tinha por comum. Hoje só um sonho suplanta todos os outros: o de um mundo partilhado cujo destino não é terminal, um mundo sem multimilionários, com um futuro que não o do barbarismo ou do pós-humano, e no qual a história possa assumir formas outras, para lá dos pesadelos reificados da catástrofe.(...)». Págs. 132 e 133.