sexta-feira, maio 12, 2023

«Guerra», Louis-Ferdinand Céline

 

Livros do Brasil, 2023. Tradução de Diogo Paiva
Obra póstuma sob a responsabilidade de Pascal Fouché e prefaciada por François Gibault, saiu em 2022 pela Gallimard não sem algumas peripécias. Este manuscrito foi encontrado entre os papéis perdidos, ou melhor, confiscados pelas autoridades francesas no pós-libertação de 1945 e, ao que parece, seria a continuação do «Três em Pipa» que narra o ferimento grave que assolou o primeiro-sargento Louis Destouches (o nome verdadeiro de Céline) na frente de guerra de 1914-18 e posterior internamento no hospital militar de Hazebrouck. O manuscrito encontrava-se entre os papéis de Lucette Almansor, a segunda mulher de Céline, e bastante incompleto. Aliás, segundo aquela, o escritor tentou reaver a obra sem sucesso até desistir de o conseguir. Como sabemos, morre em 1961, sob o opróbrio geral sem que alguma vez tenha conseguido completá-lo. Não me cabe a mim afirmar o mérito ou demérito desta edição, ou mesmo da sua legitimidade, mas consegue-se vislumbrar um registo límpido do argot tão característico de Céline, a que se junta não só a ironia como a violência perante o horror da guerra e da ideia assassina de nação. Para além de tudo, o prefácio de Gibaut é, no mínimo, polémico quando parte do princípio que «Guerra» seria uma biografia e não um romance ou a continuação de um outro romance. Ou seja, se neste livro há elementos claros de um registo biográfico caro ao escritor, também é verdade que Céline utiliza as personagens que ele conheceu realmente para construir uma narrativa terrível onde o odor pestilento da guerra que transforma tudo e todos e que as levam a comportamentos bizarros e de algum modo decadentes. Daí, a afirmar que Céline mentiu, ou que foi injurioso para com elas, ou é má fé ou ignorância. Ainda não vi melhor prefácio sobre o autor do que aquele que foi escrito por Aníbal Fernandes para a 6ª edição portuguesa de «Viagem ao Fim da Noite», da Ulisseia, em 2014. Tirando estes factos, alguns burlescos, sobre a quem pertenceriam os direitos de herança dos manuscritos roubados a Céline e de que ele fez uma lista (este manuscrito estava listado por ele) quando da sua prisão numa fortaleza na Dinamarca entre 1945 e 1951, sabe-se que haverá mais talvez nas mãos de Lucette Almansor ou filhos e que isso o perturbava muito. Mas que poderia ele fazer quando se encontrava em pleno ostracismo numa espécie de prisão domiciliária na vila de Meuton a tratar dos seus cães e de um papagaio, sem sequer ter acesso aos seus netos e filha? «Rien...»

«Há que admitir que a partir desse momento [a atribuição de uma medalha por bravura em combate pelo General Joffre] as coisas ficaram bem porreiras e fantásticas. Em torno de nós soprou uma grande aragem imaginativa. Tive mesmo uma coragem suprema, deixei-me levar, posso dizê-lo. Não cedi à surpresa que me teria mantido tão imbecil como antes a mamar desgraças e apenas desgraças porque era só o que conhecia desde que fui educado pelos meus bons pais, e aliás desgraças bem penosas, bem estafantes, bem transpiradas. Não conseguia acreditar na feira inventiva na qual me pediam que montasse num cavalinho de madeira, todo equipado de mentiras e veludos. podia ter recusado. Não recusei.
Alto!, disse eu para mim, o vento sopra, Ferdinand, emparelha a tua galé, deixa os idiotas na merda, deixa-te levar, não acredites em mais nada. Estás todo partido em mais que dois terços, mas com o bocadinho que te sobra ainda vais espairecer, deixa que o aquilão favorável sopre sobre ti. Durmas ou não durmas, cambaleia, fornica, vacila, vomita, espuma-te, cobre-te de pústulas, põe-te febril, esmaga, trai, não te preocupes, é tudo uma questão de vento que sopra, nunca serás tão cruel e aldrabão como o resto do mundo. Em frente, é tudo o que te é pedido, tens medalha, és belo. Na batalha dos paspalhos estás finalmente a ganhar com grande avanço, tens a tua fanfarra particular na cabeça, tens a gangrena a meio, é claro que estás podre, mas viste o campo de batalha onde não se condecoram os cadáveres e tu, sim, foste condecorado, não o esqueças ou não passarás de um ingrato, o vomitado desnorteado, a escumalha de cu baboso, vales mais do que o papel com que te limpas.» (pág.78)