segunda-feira, maio 08, 2023

«Escritos Africanos», de Annemarie Schwarzenbach e «Revisitar Annemarie Schwarzenbach» de Gonçalo Vilas-Boas

 

Relógio D'Água, 2023. Selecção e prefácio de Gonçalo Vilas-Boas e tradução (do alemão) de Maria Antónia Amarante

Deriva Editores e Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (FLUP), 2015. Gonçalo Vilas-Boas. Ilustrações e capa de Rita Roque

«Conheci» Annemarie Schwarzenbach através de Gonçalo Vilas-Boas quando existia a parceria Deriva Editores/Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da FLUP, de que este era um dos responsáveis. Hoje, e antes de falar de uma autora que me prendeu, estão disponíveis na Relógio D'Água alguns livros dela traduzidos em grande parte por aquele professor. São eles: «Todos os Caminhos Estão Abertos» com tradução de Miguel Serras Pereira, «Inverno no Próximo Oriente», «Com Esta Chuva», «Ver Uma Mulher» e agora o interessantíssimo «Escritos Africanos», uma súmula de escritos que ela fez no Congo e com passagem por Portugal. Entretanto a Granito tinha editado «Novela Lírica» com prefácio de Vilas-Boas, tradução de Lídia Barros e revisão de Ana Luísa Amaral, isto em 2002; a Tinta-da-China editou-lhe, em 2008, «Morte na Pérsia», com tradução de Isabel Castro Silva. Esperemos outros que estejam a ser trabalhados para publicação.

Annemarie Schwarzenbach não é aquilo que chamamos vulgarmente como uma escritora fácil. Por vezes contraditória, introspectiva, algo frágil, violentamente teimosa para o que considerava essencial para a sua consciência, morfinómana, bissexual, «ovelha negra» de uma família suíça com simpatias nazis e muito rica, expulsa de casa pela mãe que quase a renegou, e, além disso, antifascista. Foi jornalista e fotógrafa tendo um espólio de perto de oitocentas fotografias que registou nas suas inúmeras viagens por todo o mundo.

Estes «Escritos Africanos» não vivem só de África, embora centrados no Congo ex-Belga, hoje Zaire. Para lá chegar em 1941, em plena II Guerra Mundial, teve de passar em Lisboa vinda dos EUA onde foi internada num hospital psiquiátrico e expulsa devido a uns chamados então «escândalos» com a não menos escandalosa menina von Opel. Vê-se, então, numa capital portuguesa que ela acha, nada menos, como idílica. Dê-se-lhe o devido desconto ao estarmos em plena guerra pois a cidade estava literalmente ocupada por espiões, oportunistas, milhares de refugiados em trânsito e em busca de um simples visto de saída, o que dava a Lisboa um ar de cosmopolitismo que de todo não tinha, se não fosse a situação política mundial. Além disso, também mal vista no seu país pela família e impedida de lá permanecer muito tempo, escolheu a «neutralidade» fictícia de Portugal. Teve tudo para ser bem recebida aqui. António Ferro conheceu-a e congratulou-se com a sua estadia por Lisboa, escrevendo então ao embaixador suíço (as nossas exportações para lá, quase decuplicaram em período de guerra, transformando igualmente os portos de Lisboa e Leixões como portos abertos suíços para todo o mundo) que o governo português veria com bons olhos que ela fosse a correspondente de jornais suíços por cá. Talvez seja essa a razão ao ver, com alguma surpresa para o comum dos portugueses, em alguns dos seus escritos jornalísticos, uma toada laudatória para com Salazar (que o não considera fascista, embora tenha referido a existência de violência por parte da polícia política ou a enorme pobreza das pessoas) ou para com o Mocidade Portuguesa, nomeadamente a feminina. No entanto, quando se debruça sobre a política do burgo, este registo literário não é o habitual nela. É pura propaganda política dir-se-ia saído directamente do gabinete de António Ferro. Teria sido propositado por parte da escritora? O que sabemos é que em viagem para o Congo era necessário um visto dado em Portugal e em conexão com a Bélgica entretanto ocupada pelos alemães, para além de uma escala obrigatória em Luanda para voltar num barco português.

Em 1941, Annemarie Schwarzenbach vê-se a partir de Lisboa rumo ao Congo fazendo escala na Madeira, nas Canárias e em S. Tomé num navio português: O Colonial. Chega ao Congo, na então Leopoldville e choca-se não só com o clima, mas com a população branca que lá está para extrair o máximo de lucro à custa de «dar» ao povo congolês uma miséria endémica e uma repressão brutal. Tem aqui em «Escritos Africanos» um libelo claro e violento para com o colonialismo. As autoridades fazem-lhe a folha: caluniam-na em privado e em público quer com a sua vida privada, quer com a sua vida pública (perdoe-se a repetição), dando a entender que seria uma espia ao serviço dos nazis devido ao seu estranho casamento com um diplomata francês de Vichy e de que ela se encontrava separada. Além disso, fala e escreve fluentemente alemão. O seu manuscrito de Das Wunder des Baums, ainda não editado em português, está nesta língua e em tempo de guerra, para mais com administração colonial de De Gaulle por parte da «França Livre», tudo serve para eclodir a desconfiança para com Schwarzenbach e, por fim, é convidada a sair do país levando o manuscrito considerado ainda assim injurioso para com os resistentes. Parte então, subindo o rio Congo (o principal livro de Conrad estará presente nesta aventura), para as montanhas e escreve isolada durante algum tempo. Tem apoio de poucos amigos e os que sempre estiveram com ela, como Klaus Mann, afastam-se devido à sua adição à morfina. No entanto, Ella Maillart continua sua amiga até ao fim escrevendo sobre ela (terá o nome de Christine) em «A Vida Cruel».

Annemarie Schwarzenbach tem uma vida extraordinária embora inconstante e errática e é isso que nos aproxima dela e das sua longas viagens. Em pleno estado de guerra, com perigos iminentes, vai juntamente com Ella Maillart a Cabul (ela encontra-se lá quando o conflito estala), passando por Teerão, Damasco e a Síria, Bagdade e Iraque, o Próximo Oriente, incluindo o Líbano e conhece a Turquia. Conheceu Moscovo em 1934 no Congresso de Escritores e criticou duramente aspectos sociais e o racismo nos EUA. Escreve pouco sobre a sua terra natal (aborda-a em O Vale Feliz) e muito sobre si e a sua relação com os outros e com o mundo. Quando se preparava para voltar a Portugal para assumir o cargo de correspondente de jornais suíços, e numa ida fugaz a Zurique, morre num acidente de bicicleta. Estávamos em 1942 e ainda faltavam alguns anos para ver as «forças do mal» serem derrotadas pelos Aliados que, provavelmente, nunca confiaram nela.

Depois de ter percorrido alguns passos de Annemarie Schwarzenbach, arrisco-me a apresentar-vos um extracto de um conto estranhíssimo (movido pela morfina e pelo isolamento nas montanhas do Congo?). Chama-se «A Cratera dos Animais»:

«Pensas, talvez, que o esqueci, pois dentro em breve terão passado quatro meses desde que me falaste do assunto e eu prometi trazer-te um casal dos teus animais favoritos. Acho que era uma espécie de pequenos leões-marinhos ou porcos-do-mar, e claro que se tratava apenas de uma brincadeira e de uma forma de me aligeirar a despedida. Mas já antes ouvira falar de porcos-do-mar, foi alguém que se queria deitar ao lado deles em bancos de areia, numa ilha com um sol de verão e um vento salgado, vindo do mar. Quando relembro isto, oiço sempre o sussurrar da palha e vejo a sua cabeleira amarela e um céu alto, magnífico. Aí a noite demorava a cair, mesmo depois de o sol se pôr e de uma leve neblina se espalhar sobre os prados; porém, o ar era azul-claro e límpido e a cor azul expandia-se para todo o lado. Ainda sei como era fácil respirar fundo, como se estivéssemos cheios de esperanças, e regressávamos ao luar pela larga estrada entre os recintos relvados, cada vez mais pequenos, e as casas brancas nos jardins cheios de roseiras bravas, e ficávamos ainda durante muito tempo sentados em redor da fogueira.
Aqui, em África, nunca se fala em estações do ano e, no entanto, também é verão, os dias despontam e desvanecem-se e é preciso sobreviver-lhes como em toda a parte do mundo. Mas só raramente se recorre à língua e se eu fizesse uma pergunta, por exemplo sobre a cratera dos animais, ninguém me entenderia. Às vezes, julgo que eu própria me modifiquei. Esqueci-me de muita coisa, perdi palavras e nomes, ou digo-os em voz alta e soam a oco. É como se no Congo se falasse de inverno e deverão em vez de chuva e seca. É como se se tivesse perdido o ouvido, como se se andasse cegamente às voltas de olhos abertos, como se já nada se soubesse de outras atmosferas e se lutasse apenas pelo próximo palmo de vida num círculo de sombras. (...)» Págs. 109,110.