Investigação em Humanidades e Ciências Sociais à beira de
uma hecatombe
O Inverno da investigação
Diogo Ramada Curto
Uma enorme desorientação e escolhas políticas erradas
puseram a investigação em Humanidades e Ciências Sociais à beira de uma
hecatombe que corre o risco de desperdiçar uma geração promissora
Este ano o
Inverno chegou à investigação das Humanidades e Ciências Sociais com a força de
uma hecatombe. Um autêntico desastre, de consequências imprevisíveis, a revelar
uma total desorientação por parte de quem nos governa! A Fundação para a
Ciência e Tecnologia (FCT), sob tutela do Ministério da Educação e Ciência, com
responsabilidades no financiamento da pesquisa em Portugal, perdeu o controlo
sobre o processo de atribuição de contratos de investigação por cinco anos. E,
apesar de ser obrigatório reconhecer que o número de contratos a concurso até
aumentou, passando de centena e meia para duas centenas, a contestação está por
todo o lado. Porquê?
Mariano
Gago, em entrevista ao Expresso do passado dia 14, pôs o dedo na ferida, e
denunciou a política errada de falta de confiança nas instituições
universitárias e de pesquisa. Na mesma linha, poder-se-á argumentar que a
responsabilidade na criação de concursos altamente contestados denuncia falta
de autoridade, mais propriamente científica, por parte de quem decide, governa
e torna obscuros os meandros de um processo que não tinha, até agora, sido
objecto de tanta discussão. Muito concretamente, em todas as áreas se torna
evidente que não foram contempladas candidaturas de excelência. Qualquer que se
seja o sentido que se atribua à putativa “excelência”, irmã gémea do
“empreendedorismo” — um chavão a pretexto do qual se reduzem custos para
aumentar produtividade.
No que
respeita às ciências sociais e humanas, há dois aspectos interligados que podem
ajudar a perceber as referidas faltas de autonomia e autoridade. Refiro-me à
remodelação do Conselho Científico na mesma área, que se politizou
partidariamente e para o qual o ministro da tutela começou por nomear a sua
própria mulher e um amigo de juventude, director de um centro de investigação
sempre mal classificado pela própria FCT. Bem mais importante ainda é mencionar
que o número de contratos foi reduzido para metade. Ou seja, se em 2012 foram
dados cerca de 20% do total dos contratos às ciências sociais, este ano os
mesmos passaram para quase 10%.
Pertenci ao
anterior Conselho Científico das Ciências Sociais e Humanidades da FCT e
assisti a tentativas do mesmo género para reduzir a importância da área. Por
isso mesmo, percebo bem que só graças a um novo Conselho — com menos autonomia,
autoridade e experiência — foi mais fácil fazer gato-sapato. Mais. Com a
redução do número de contratos atribuídos à área em causa, é normal que tenham
vindo ao de cima possíveis escolhas arbitrárias, algumas distorções parciais e,
sobretudo, uma enorme incapacidade para fazer reconhecer como legítimos
critérios de avaliação que não são uniformes.
2. A
ausência de reconhecimento que suscita uma instituição como a FCT, ou seja, o
pôr em causa de uma instituição do sistema de investigação em Portugal, está
presente em muitas outras escalas do frágil edifício científico que caracteriza
as humanidades e as ciências sociais. Um inventário, mesmo que incompleto, das
debilidades deste edifício não implica que tivesse existido uma qualquer época
dourada, do passado recente ou longínquo.
Arrisco
mesmo traçar um diagnóstico das debilidades em causa, a partir de cinco grandes
linhas, sem preocupações de as apresentar por ordem. Antes de mais, o modo como
as carreiras se organizam favorece a figura do professor transformado em
administrador, aspirando a um poder de direcção, mas totalmente separado da
figura carismática do professor reconhecido pelas suas investigações, criações
e capacidades de inovação. Num quadro dominado pelos administradores
burocratas, os que investigam raras vezes têm capacidade para impor as suas
escolhas, sobretudo quando se trata da nomeação dos mais jovens e brilhantes
investigadores. Logo, as nomeações dos mais jovens acabam por ser decididas
quer por meros critérios de gestão, quer por parte dos que chegaram ao poder
por via administrativa.
Num quadro
de cinzentismo e de depreciação do valor dos mais carismáticos
professores-investigadores, alguns dos critérios de excelência e de
internacionalização — duas das palavras mágicas dos diplomas que organizam a
investigação em Portugal — assumem carácter meramente formal. Por exemplo,
conheço quem por ter passado umas semanas ou uns meses com o cartão de uma
qualquer biblioteca universitária norte-americana exiba os galões de “visiting
scholar” ou mesmo de “visiting professor” desta ou daquela universidade da Ivy
League. O mesmo se passa em relação à participação em colóquios ou em redes
ditas internacionais. É que são sobretudo dignos de pacóvios muitos dos casos
de puro exibicionismo de sinais exteriores de internacionalização.
Curiosamente, são os professores-administradores os que mais ufanos se mostram
na acumulação de tais títulos de internacionalização — que fazem sorrir uma
nova geração de investigadores que, apesar de precária, se tem mostrado muito
mais capaz de se internacionalizar.
Atribuo à
obsessão pelos critérios bibliométricos o mesmo peso que um
professor-administrador incapaz de distinguir entre níveis aprofundados de
fazer ciência e as meras obras de divulgação. Claro que, pelo menos nas
humanidades e ciências sociais, a bibliometria tem dois tipos de utilidade. Por
um lado, serve para encontrar um critério de aparente objectividade que esconda
situações de inegável arbitrariedade quando se trata de escolher, classificar e
nomear. Por outro lado, permite que as escolhas meramente administrativas se
baseiem em indicadores de produtividade e de boa gestão. Aqui bate, talvez, um
dos pontos de maior dissolução de todo o edifício: a incapacidade de impor
verdadeiros critérios de inovação científica baseados numa cultura crítica,
analítica e problematizadora.
Não é,
aliás, por acaso que os maiores defensores da bibliometria quantitativista são
os que mais facilmente definem a investigação a partir de temas — não de
problemas — com falsas preocupações de exaustividade. É que as listas de temas,
tal como em muitos casos a exibição de teorias, modelos e metodologias, a cargo
dos que já foram denominados como os seus cães de guarda, servem para
demonstrar uma espécie de poder e para criar a ilusão da existência de escolas.
Ora, estas últimas vão ao encontro da valorizada noção de grandes projectos,
com financiamentos avultados, exibidos à maneira dos velhos troféus de caça,
mas que raras vezes se encontram ligados à inovação criativa.
Última das
debilidades do edifício das humanidades e ciências sociais: são poucas ou
nenhumas as condições que favorecem a investigação e o ensino universitário que
delas deveria resultar. Por exemplo, não existem bibliotecas em construção, com
colecções pensadas de forma integrada — um processo lento que não é
substituível pelo acesso a bases de dados, ainda por cima truncadas e
desactualizadas. Ora, a existência de uma boa biblioteca — conforme disse, há
muito, Marc Bloch a propósito da história comparada — fará mais pela
interdisciplinaridade do que todos os discursos programáticos a seu respeito. É
aqui que será necessário uma maior concentração de esforços, para que os gastos
em pessoal e na sua formação sejam devidamente rentabilizados. Por exemplo, não
seria mais razoável evitar a dispersão de recursos em Lisboa, num raio de dois
quilómetros, por pequenas bibliotecas de centros e universidades, e
simplesmente dotar de meios a Biblioteca Nacional?
3. Com a
chegada do Inverno, imagino que o edifício a que me refiro poderia ser bem
diferente. A esperança que ainda tenho talvez seja resultado de trabalhar e
escrever diariamente na Biblioteca Nacional, uma instituição onde, apesar de
todos os cortes e da falta de meios, o acolhimento aos leitores é caloroso. Mas
o que mais me determina resulta de me cruzar, no meu quotidiano, com colegas
mais novos, investigadores de uma geração que trabalha em posições precárias, mas
com rasgo e capacidade crítica e problematizadora. O respeito que tenho por
essa nova geração, que não beneficiou das condições privilegiadas de
estabilidade e segurança de emprego que usufruí desde os meus 22 anos, é
imenso. Não resisto, por isso, a evocar aqui três casos que apontam para
caminhos muito diferentes.
Bruno
Monteiro, um jovem sociólogo do Porto que não tem 30 anos, e cujo primeiro
grande livro aguarda publicação, representa bem essa nova geração de
investigadores em que valeu a pena investir. Herdeiro de uma tradição de
pesquisa sedimentada por várias gerações de cientistas sociais do Porto, de
Madureira Pinto a Virgílio Borges Pereira, tem demonstrado nos seus trabalhos
um conhecimento aprofundado, crítico e analítico, do Porto e do Vale do Ave.
Utilizando este território como uma base, Monteiro, graças às condições de
estabilidade que a Universidade do Porto lhe tem sabido proporcionar, tem
conseguido multiplicar as suas áreas de interesse e cruzar saberes. Entre as
suas actividades, os seus estudos publicados por uma pequena editora
independente, Deriva, e traduções por ele coordenadas, merecem ser destacados,
enquanto propostas originais em que os conhecimentos disciplinares se cruzam em
função da colocação de problemas, Ricardo Jorge, A peste bubónica do Porto
(2010); Ludwig Wittgenstein, Observações sobre “O Ramo Dourado” de Frazer
(2011); História Social do Porto (2011); Michael Pialoux e Christian Corouge,
Crónicas Peugeot (2013).
Porém, as
condições, os resultados e as expectativas sugeridos pelo caso de Bruno
Monteiro quase parecem excepcionais no confronto com dois outros casos. Por um
lado, o de uma brilhante investigadora, doutorada há três anos, que tem agora
40 anos. Doutorou-se tarde, por ter tido sempre de trabalhar ao mesmo tempo que
investigava. A estabilidade do trabalho de professora num liceu de província
constituiu-se como uma prioridade, quando vieram os filhos e depois o divórcio.
Neste momento, a necessidade de assistência à família leva-a a angariar outros
trabalhos — como tradutora, ghostwriter e tarefeira de projectos científicos —
para suplementar o seu ordenado. Seria um devaneio arriscar tudo numa bolsa.
Porém, sem esta a sua disponibilidade para se dedicar à escrita,
necessariamente morosa, de artigos para poder ser avaliada afigura-se como uma
quimera. O seu potencial, no qual irei continuar a acreditar, está pois
comprometido neste círculo vicioso do qual dificilmente conseguirá fugir. E só
por hipocrisia com todos os que se confrontam com situações precárias se poderá
argumentar que a necessidade aguça o engenho...
Último caso:
um aluno que conheço por se ter licenciado na faculdade onde ensino, onde
acabou por se doutorar com bolsa da FCT, vai interromper a sua bolsa de
pós-doutoramento que lhe foi concedida também pela FCT. Concorreu à bolsa de
uma prestigiada fundação de pesquisa brasileira e foi escolhido como um dos
quatro investigadores em mais de uma centena de candidatos. Partirá em Janeiro.
Suspenderá a bolsa, na certeza de que o seu futuro em Portugal é muito incerto.
Felicitei-o, como mandam as regras, mas guardei para mim a ideia de que não irá
voltar.
4. Como em
qualquer edifício, são vários os que têm responsabilidades sobre o estado em
que se encontra a construção. A FCT, as universidades e centros de pesquisa e,
sem dúvida mais limitados, os próprios investigadores situam-se em patamares
diferentes de escolhas e execução. Porém, neste Inverno que agora começa, a
hecatombe vinda de cima — suscitada por uma enorme desorientação e por erradas
escolhas políticas — tem consequências difíceis de admitir. Sobretudo quando se
trata de sacrificar o elo mais fraco e de transformar em vítimas os
investigadores de uma nova e promissora geração.