Munique, 16 de Agosto
Sim, as praças são poderosas; nas igrejas, imponentes, os polícias do decoro controlam as entradas como em Roma, ou não fosse esta uma terra de católicos. A Marienplatz exibe a Nova Câmara, orgulhosa das suas flores vermelhas plantadas nas janelas e do carrilhão de espantar meninos, onde tem início pelas cinco um torneio a cavalo e depois uma dança de toneleiros bávaros. Ouve-se, ao longe, Mozart e a praça é cosmopolita, movimentada, quase febril, sobretudo à hora em que a luz do dia se prepara para morrer. As casas têm um ar digno e próspero, tal como as avenidas e edifícios históricos mandados construir pelos Wittelsbach, sobretudo por Maximiliano I e, mais tarde, por Ludwig I. Mas, junto aos Propileus e aos grandes monumentos oitocentistas de inspiração helénica, Hitler discursou e os nazis desfilaram com garbo assassino. A poucas centenas de quilómetros daqui, em Nuremberga, nasceu o Partido Nazi que fez de Munique um dos seus palcos favoritos. A aura da avenida oprime e o difícil é não ler os sinais de uma pulsão militarista e imperial, em muita arquitectura do passado.
Resta a consolação do segundo Ludwig, belo e louco, que gostava de rapazes bem parecidos e se apaixonou pela música de Wagner, pelos contos de fadas e pelo seu próprio delírio romântico. Repousa hoje, na cripta da Igreja de S. Miguel, mas Visconti e Helmut Berger ressuscitaram-no.
Por tudo isto, que me apraz levar de Munique? — O sol das praças e as pernas das mulheres. Pois, Truffaut o diz, «les jambes des femmes sont des compas qui arpentent le globe terrestre en tout sens, lui donnant son équilibre et son harmonie». Basta meio litro de cerveja no Mercado das Vitualhas para ajudar a reinstalar a harmonia, equilibrada nas pernas destas vigorosas bávaras que caminham ao sol ou pedalam junto à Theatinerkirche. Se dermos um salto à Alte Pinakothek e lhes juntarmos os Reis Magos de Van der Weyden, o auto-retrato de Dürer, as madonas de Rafael e Leonardo, a Isabella Brant de Rubens e ainda Tintoretto, Tiziano e Rembrandt, o mundo atingirá a perfeição.
Colónia, 18 de Agosto
Mal posso acreditar que aqui estive, pela primeira vez, há quase três décadas (rumando para a Holanda com um pequeno coração ferido). O périplo termina nas margens do Reno — adeus, Lorelei, perdição de marinheiros, de Heine e dos turistas japoneses — após uma manhã em Stuttgart, no dia de ontem, e de uma tarde e noite em Heidelberg, onde há anos me deixei encantar por uma caixa de música. (Noite de pesadelo: o ar condicionado não existe na maioria dos hotéis; num país frio como este, preparam os edifícios para enfrentar baixas temperaturas mas não o calor, que fica retido paredes adentro como convém; no verão são como contentores à torreira.)
A Scloßplatz de Stuttgart, junto aos Palácios dos séculos XVI e XVIII, exibe proporções imensas. Numa pracinha ao lado, e do alto da sua estátua, Schiller — vindo ao mundo não longe daqui — observa a nossa pequenez com um ar quase severo. Paladino da liberdade, talvez aprecie a proximidade dos grandes cubos negros que compõem o monumento às vítimas do nazismo juntamente com o texto de Ernst Bloch. Mas Schiller e Hölderlin abençoam, por certo, o poeta negro de rabo-de-cavalo que olha o mundo em volta e rabisca versos, na casa de hamburguers onde nos instalamos por força do tempo disponível.
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Stuttgart
As asas brancas de Hölderlin protegem decerto este poeta negro, de negro vestido, que a negro escreve em folhas brancas. Com o grosso marcador negro entre os dedos, olha em redor antes de cada metáfora. A hamburgueria, como todas, é sórdida e fede. Mas sentado à mesa, entre a multidão que entra e come e sai em frenesi, o poeta põe a navegar no seu rio de papel uma musa febril, ainda jovem. É de facto o lugar certo para desfrutar o espectáculo da vulgaridade humana.
Ouve-se então o apelo de Hölderlin: «sê-lhe propícia, feliz Suttgart, acolhendo cordialmente este teu forasteiro».
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Regresso a Heidelberg
Sobe-se ao castelo no funicular, não longe do local onde Ginsberg escreveu um poema que falava dos cisnes, dos edifícios cor-de-tijolo e dos reactores nucleares do vale do Reno. Come-se apfelstrudel e bebe-se café na esplanada da Marktplatz. Pelas cinco, o céu cobre-se de nuvens cinzentas e o calor castiga o corpo. Atravessa-se a Ponte Velha a olhar as águas do Neckar. Primeiras luzes, primeiras gotas. A paisagem satura-se de abismados olhos e, ao primeiro relâmpago, dilui-se num lençol de chuva.
(A quebrar a melancolia deste húmido fim de viagem só a memória da passagem de Mark Twain pela cidade e a lembrança dos imperdíveis textos que escreveu sobre a Alemanha e a língua alemã.)
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