Cutelo Edições, 2024. Tradução de Diogo Paiva
Que dizer de Pascal Quignard que não terá sido dito antes? Subjectivo, mas tenho-o de dizer de um modo claro: Quignard é, sem dúvida, um dos melhores escritores actuais. Para além do prazer da leitura que fruímos (e não é isto o que leva um leitor a ter um livro nas suas mãos?), estamos diante de um autor que nos leva ao pensamento crítico, por vezes incómodo, mas igualmente ao conhecimento de um passado que nos reaviva a memória de uma humanidade que hoje terá perdido o seu rumo, ou que, de um modo subterrâneo, acumula energias para a mudança, talvez a última hipótese milenarista de que nunca se apartou. Quignard apresenta-nos tanto as impossibilidades, como as conquistas que nos levarão à conquista dos céus. Daqueles que, desarçonados, foram retirados, por combate ou por acidente, do seu arção, da sela protectora e prostrados sobre a terra. Destes, sabemos que foram igualmente vitoriosos, mesmo que não o viessem a saber. De Gilgamesh à Bíblia, da conversão de Saulo de Tarso em Paulo (desarçonado do seu cavalo a caminho de Damasco) a Platão e Aristóteles, de Luciano de Samósata ao Duque de Bourbon e a La Palisse, de Louise Michel a Blanqui, de Freud a Nietzsche e a Georges Sand, tudo em Quignard nos é novo, escrito contidamente, numa síntese notável de beleza formal e de sabedoria antiga, em pequenos trechos que nos convidam à sua guarda, ao registo para sempre, ao sublinhado como tentativa de eternizar aquilo que acabámos de absorver. Que escrita!
No capítulo XVIII, ''Rousseau em Ménilmontant'' a experiência de quase morte que o filósofo sentiu ao vir a si é descrita deste modo: «(...) A noite avançava. Observei o céu, algumas estrelas e um pouco de vegetação. Essa primeira sensação foi um momento delicioso. Era ainda apenas isso que sentia. Nascia nesse instante para a vida e parecia-me preencher com a minha existência todos os objectos de que me apercebia. Totalmente no momento presente, não me recordava de nada; não tinha qualquer noção distinta da minha individualidade, a menor ideia do que acabava de me acontecer; não sabia nem quem era nem donde estava; não sentia nem dores nem receio nem inquietação. Via escorrer o meu sangue como teria visto correr um riacho, sem pensar que esse sangue de alguma forma me pertencia. Sentia em todo o meu ser uma calma maravilhosa à qual, cada vez que me recordo dela, nada encontro de comparável em toda a actividade dos prazeres conhecidos.
O fundo da alma arrebatada é desprovido de identidade.
O fundo da autobiografia é desprovido de 'autós'.
O fundo da leitura é esse mesmo sentimento de esquecimento de si. Esse júbilo de esquecimento de si. ''Não sentia aflição nem por mim nem por outrem'', escreve Montaigne. ''Não sabia nem quem eu era nem onde estava'', escreve Rousseau.
O homem a morrer é aquele que já não experimenta o instante que o consuma, tal como o concebido não experimenta a origem da forma.
Embora o homem não tenha nunca a possibilidade de 'experimentar' o seu fim, ele é o único dos animais no qual toda a vida é orientada pela 'imaginação' da sua morte. (...)» (pág.50,51)
E no capítulo XXXVIII, ''Política de Henri Michaux'': «A contribuição apaixonada para o esforço de guerra, o elogio do sacrifício de cada um para a sobrevivência do conjunto, o estímulo vigoroso das razões para combater, o narcótico do ódio, isto é, do sentido, isto é, da orientação, isto é, do futuro, é a tarefa que se incumbe aos magistrados, aos filósofos, aos padres, aos historiadores, aos políticos, a todos os homens ''de Estado''. Alistem-se! Sacrifiquem-se! Dêem-nos razões para ter esperança! Motivem a vossa morte, fundem o vosso sacrifício, argumentem a vossa eliminação!» (pág.101)
Em XLV, ''O cavalo do tempo'': «No amplexo que une os corpos no instante do acto sexual, a alma da mulher e a do homem experimentam uma crise de identidade de cada um deles. Ambos sentem uma impressão pungente, extraordinária e sem remédio. É uma partilha animal não verdadeiramente partilhável no interior da partilha linguística que, essa, é um verdadeiro diálogo onde todas as singularidades anatómicas desaparecem. A partilha linguística opõe um eu e um tu inteiramente intercambiável com o sexo do outro no desejo que anima a reprodução.
Ambos se agarram. Ambos querem que a sua excitação dure. Ambos querem o fim da excitação. Ambos querem unir-se na explosão de volúpia, enlaçam-se, envolvem-se, abraçam-se, apressam-se para a atingir. É claro, fazendo de tudo para acabar, não querem o fim enquanto 'tristitia', enquanto destensão, enquanto destumefacção, enquanto desgosto. Contudo, querem o fim enquanto volúpia, provocam essa incrível distensão, esse desdobramento, esse vazamento, esse vazio assimbólico, esse langor que abrem diante de si. (...)» (pág.118)
''Estação de Lyon'', capítulo XCIV sobre o que é ser estrangeiro: «No átrio da estação de Lyon, no cais de Chiffres, com destino a Sens, os pobres, os mendigos os 'Apolis', os Estrangeiros, os Sem-Abrigo, os Vagabundos sentados eram espancados à bastonada, eram arrastados por terra pelas axilas, eram levados para dentro de furgões por homens armados com bastões pretos e fardados de azul-eléctrico. Onde estão os contos em que os malditos penetravam nos palácios dizendo simplesmente aos guardas: ''Sou um estrangeiro''? Estrangeiro era então a palavra mais bela e abria portas. A hospitalidade era um dever, nem sequer uma virtude. O estrangeiro sentava-se no melhor lugar junto ao rei, à sua direita, semelhante a um sol que aparece no mundo, comia e bebia até se fartar. Depois, virava-se para o rei e perguntava:
- Sire, quereis saber porque tenho o queixo rapado e um olho a menos?
E o rei prosternava-se diante dele e dizia:
- Dizei-me! Dizei-me, meu amigo! Quais foram as vossas aventuras?» (pág.260)
E não deixava de mostrar-vos exemplos de uma escrita belíssima e de pensamentos aparentemente soltos de Pascal Quignard, registados neste livro inesquecível. Este autor é já um clássico por direito próprio. Impossível de contornar pela apresentação limpa do novo, mas igualmente do passado, do belo e do horror, das peças com que se faz o quotidiano e do que é acalentado na história, na filosofia ou na linguagem. Nem sempre o desarçonado é o que cai do cavalo. Muitos há cuja queda estrepitosa aconteceu com outras causas. para nós, portugueses, pode ser o cavalo de Afonso Henriques em Badajoz que o inutilizou até ao fim da sua vida, ou a cadeira de S. Julião da Barra que desarçonou, tarde demais, em 1969, Salazar. Pouco importa. O mais importante é pensar sempre em todas as hipóteses de futuro, mesmo com o pessimismo inerente ao mundo tal como ele é e como Pascal Quignard no-lo apresenta.
A tradução, creio que extremamente difícil, é excelente pela mão de Diogo Paiva.
O livro não segue, felizmente, o AO90.
alc