quinta-feira, dezembro 26, 2024

«Os Desarçonados», Pascal Quignard

 

Cutelo Edições, 2024. Tradução de Diogo Paiva

Que dizer de Pascal Quignard que não terá sido dito antes? Subjectivo, mas tenho-o de dizer de um modo claro: Quignard é, sem dúvida, um dos melhores escritores actuais. Para além do prazer da leitura que fruímos (e não é isto o que leva um leitor a ter um livro nas suas mãos?), estamos diante de um autor que nos leva ao pensamento crítico, por vezes incómodo, mas igualmente ao conhecimento de um passado que nos reaviva a memória de uma humanidade que hoje terá perdido o seu rumo, ou que, de um modo subterrâneo, acumula energias para a mudança, talvez a última hipótese milenarista de que nunca se apartou. Quignard apresenta-nos tanto as impossibilidades, como as conquistas que nos levarão à conquista dos céus. Daqueles que, desarçonados, foram retirados, por combate ou por acidente, do seu arção, da sela protectora e prostrados sobre a terra. Destes, sabemos que foram igualmente vitoriosos, mesmo que não o viessem a saber. De Gilgamesh à Bíblia, da conversão de Saulo de Tarso em Paulo (desarçonado do seu cavalo a caminho de Damasco) a Platão e Aristóteles, de Luciano de Samósata ao Duque de Bourbon e a La Palisse,  de Louise Michel a Blanqui, de Freud a Nietzsche e a Georges Sand, tudo em Quignard nos é novo, escrito contidamente, numa síntese notável de beleza formal e de sabedoria antiga, em pequenos trechos que nos convidam à sua guarda, ao registo para sempre, ao sublinhado como tentativa de eternizar aquilo que acabámos de absorver. Que escrita!

No capítulo XVIII, ''Rousseau em Ménilmontant'' a experiência de quase morte que o filósofo sentiu ao vir a si é descrita deste modo: «(...) A noite avançava. Observei o céu, algumas estrelas e um pouco de vegetação. Essa primeira sensação foi um momento delicioso. Era ainda apenas isso que sentia. Nascia nesse instante para a vida e parecia-me preencher com a minha existência todos os objectos de que me apercebia. Totalmente no momento presente, não me recordava de nada; não tinha qualquer noção distinta da minha individualidade, a menor ideia do que acabava de me acontecer; não sabia nem quem era nem donde estava; não sentia nem dores nem receio nem inquietação. Via escorrer o meu sangue como teria visto correr um riacho, sem pensar que esse sangue de alguma forma me pertencia. Sentia em todo o meu ser uma calma maravilhosa à qual, cada vez que me recordo dela, nada encontro de comparável em toda a actividade dos prazeres conhecidos.
    O fundo da alma arrebatada é desprovido de identidade.
    O fundo da autobiografia é desprovido de 'autós'.
    O fundo da leitura é esse mesmo sentimento de esquecimento de si. Esse júbilo de esquecimento de si. ''Não sentia aflição nem por mim nem por outrem'', escreve Montaigne. ''Não sabia nem quem eu era nem onde estava'', escreve Rousseau.
    O homem a morrer é aquele que já não experimenta o instante que o consuma, tal como o concebido não experimenta a origem da forma.
    Embora o homem não tenha nunca a possibilidade de 'experimentar' o seu fim, ele é o único dos animais no qual toda a vida é orientada pela 'imaginação' da sua morte. (...)» (pág.50,51)

E no capítulo XXXVIII, ''Política de Henri Michaux'': «A contribuição apaixonada para o esforço de guerra, o elogio do sacrifício de cada um para a sobrevivência do conjunto, o estímulo vigoroso das razões para combater, o narcótico do ódio, isto é, do sentido, isto é, da orientação, isto é, do futuro, é a tarefa que se incumbe aos magistrados, aos filósofos, aos padres, aos historiadores, aos políticos, a todos os homens ''de Estado''. Alistem-se! Sacrifiquem-se! Dêem-nos razões para ter esperança! Motivem a vossa morte, fundem o vosso sacrifício, argumentem a vossa eliminação!» (pág.101)

Em XLV, ''O cavalo do tempo'': «No amplexo que une os corpos no instante do acto sexual, a alma da mulher e a do homem experimentam uma crise de identidade de cada um deles. Ambos sentem uma impressão pungente, extraordinária e sem remédio. É uma partilha animal não verdadeiramente partilhável no interior da partilha linguística que, essa, é um verdadeiro diálogo onde todas as singularidades anatómicas desaparecem. A partilha linguística opõe um eu e um tu inteiramente intercambiável com o sexo do outro no desejo que anima a reprodução.
    Ambos se agarram. Ambos querem que a sua excitação dure. Ambos querem o fim da excitação. Ambos querem unir-se na explosão de volúpia, enlaçam-se, envolvem-se, abraçam-se, apressam-se para a atingir. É claro, fazendo de tudo para acabar, não querem o fim enquanto 'tristitia', enquanto destensão, enquanto destumefacção, enquanto desgosto. Contudo, querem o fim enquanto volúpia, provocam essa incrível distensão, esse desdobramento, esse vazamento, esse vazio assimbólico, esse langor que abrem diante de si. (...)» (pág.118)

''Estação de Lyon'', capítulo XCIV sobre o que é ser estrangeiro: «No átrio da estação de Lyon, no cais de Chiffres, com destino a Sens, os pobres, os mendigos os 'Apolis', os Estrangeiros, os Sem-Abrigo, os Vagabundos sentados eram espancados à bastonada, eram arrastados por terra pelas axilas, eram levados para dentro de furgões por homens armados com bastões pretos e fardados de azul-eléctrico. Onde estão os contos em que os malditos penetravam nos palácios dizendo simplesmente aos guardas: ''Sou um estrangeiro''? Estrangeiro era então a palavra mais bela e abria portas. A hospitalidade era um dever, nem sequer uma virtude. O estrangeiro sentava-se no melhor lugar junto ao rei, à sua direita, semelhante a um sol que aparece no mundo, comia e bebia até se fartar. Depois, virava-se para o rei e perguntava:
    - Sire, quereis saber porque tenho o queixo rapado e um olho a menos?
E o rei prosternava-se diante dele e dizia:
    - Dizei-me! Dizei-me, meu amigo! Quais foram as vossas aventuras?» (pág.260)

E não deixava de mostrar-vos exemplos de uma escrita belíssima e de pensamentos aparentemente soltos de Pascal Quignard, registados neste livro inesquecível. Este autor é já um clássico por direito próprio. Impossível de contornar pela apresentação limpa do novo, mas igualmente do passado, do belo e do horror, das peças com que se faz o quotidiano e do que é acalentado na história, na filosofia ou na linguagem. Nem sempre o desarçonado é o que cai do cavalo. Muitos há cuja queda estrepitosa aconteceu com outras causas. para nós, portugueses, pode ser o cavalo de Afonso Henriques em Badajoz que o inutilizou até ao fim da sua vida, ou a cadeira de S. Julião da Barra que desarçonou, tarde demais, em 1969, Salazar. Pouco importa. O mais importante é pensar sempre em todas as hipóteses de futuro, mesmo com o pessimismo inerente ao mundo tal como ele é e como Pascal Quignard no-lo apresenta. 

A tradução, creio que extremamente difícil, é excelente pela mão de Diogo Paiva. 
O livro não segue, felizmente, o AO90.

alc

segunda-feira, dezembro 23, 2024

«Como numa História de William Irish», Ana Teresa Pereira

 

Relógio D'Água, Julho de 2024
Uma revisitação aos filmes policiais pelo texto literário muito particular de Ana Teresa Pereira que teimamos em ler. Comecemos pelo título: William Irish é um escritor americano de policiais «pulp» e que, segundo sei, tem só um livro publicado em Portugal pela Vampiro - «A Dama Fantasma». Foi também antologiado num livro de contos. Escusam de procurar nas livrarias porque só o encontrarão em alfarrabistas. Ana Teresa Pereira continua, como sabemos de outros livros anteriores de que já falámos aqui, no registo muito próximo do policial, mas igualmente no onírico, num mundo só dela, extremamente cinematográfico. Alfred Hitchcock, e os seus filmes mais emblemáticos, digamos que é o marco sempre presente no decorrer das cenas que compõem o livro, embora as personagens que são apresentadas sejam elas próprias o centro que faz desenvolver a história.

Narrativa essa que se divide em duas partes essenciais: a primeira, aquela que julgamos ser o decorrer de uma acção, ainda não policial mas psicologicamente densa, entre um homem e uma mulher. Durante a leitura, a habilidade literária de Ana Teresa Pereira, remete-nos para uma sensação de «dejá-vu», de cenas que nós já vimos em alguma parte, nalgum lugar. Sem termos a certeza, ou seja, na dúvida clara, lembramo-nos dos filmes entre os anos 30 a 50 do século passado. Todo o ambiente criado leva-nos a isso, a uma espécie de procura das razões que movem a mulher e o homem, e estamos ainda na primeira parte. E sabemos como Ana Teresa Pereira sabe impor-nos um ambiente de um parque, de uma casa, de cheiros particulares, de flores ou de vestuário. Na segunda parte do livro, virá a descoberta de que estamos dentro de um filme, que as personagens são actores e actrizes que embora não confundindo o seu papel com os seus próprios desejos ou objectivos têm de seguir o guião traçado por Hitchcok. É uma trama que se torna complexa, porque, segundo julgo, as características dos actores chocam, por vezes, na impressão psicológica das personagens vincada pelo realizador. É esta a tensão que percorre todo o livro.

«Vertigo», principalmente este filme, veio-me à memória (se lerem o livro, logo no início, perceberão porquê) durante a leitura e pelo seguimento do seu guião, mas «Rebeca», «Sabotagem», «Psycho» ou «Os Pássaros» também lá estão marcados, seja pelo decorrer do romance, seja pela referência múltipla a realizadores, filmes e a actores e actrizes que todos nós conhecemos e que se transformaram numa memória que a autora soube emergir para cada um de nós. 

alc

sábado, dezembro 21, 2024

«O Melhor Duplo», Paulo Bugalho

Língua Morta, Setembro de 2024
Um dos maiores enxertos de porrada velha que vi dar à Psicanálise e a Freud. A primeira que li, já lá vão anos muitos e à qual aderi completamente, foi a leitura ainda muito incipiente, porque quase adolescente, do «Anti-Édipo» de Deleuze e Guattari. Mas deixem a pancadaria em paz e desculpem o vernáculo; esta esfrega é feita com uma elegância e mestria raros num livro que se debruça sobre a matéria de que são feitos o sono e o sonho. É como se a poesia de Herberto Helder se aliasse a um monge japonês de artes marciais personificado num filme de Tarantino. Paulo Bugalho lê-se com agrado e entusiasmo crescentes, acreditem.

Do sono REM (Rapid Eye Movements) e ao NREM durante o sono, até aos variados tipos de sonhos que temos, lembrando-nos ou não deles (ai a culpa! ai o charuto!, ai o triângulo papá e a mamã, 'mais eu'!, como analisaria o doutor austríaco) até à literatura, ao cinema, à filosofia e à história clássica, entramos como convidados para um livro que educadamente nos demonstra a possibilidade de o sonho ser parte integrante e tangível de nós próprios, mesmo com a presença incontornável do onírico. E isto por quem sabe muito bem do que fala e que o leitor pressente, pois claro. Não é para todos, porque Paulo Bugalho sabe escrever bem, afastando-se da parafernália académica. Isso só o faz quem sabe, quem pode, quem se está para as tintas para o escudo protector universitário, comum nos dias de hoje e que muitas vezes é usado para esconder fragilidades várias. 

E sim, entre muitos outros vossos conhecidos e que vos acompanham, há Rilke, Allen, Zweig, Mann, Helder, Cesariny, Tsvietaieva (dela eu só conhecia «O Poeta e o Tempo», publicado pela Hiena), Tolstoi, Montaigne, Shakespeare, Proust (com uma referência privada às madalenas), Ariosto, Guimarães Rosa. Facto que vos trago aqui é a estória que é descrita sobre a relação que adivinharíamos entusiasmante entre Freud e os Surrealistas cujas artes segui com interesse e que se apoiaram nas teses do monstro da psicanálise: deram-se mal, como é mais que óbvio. A coisa acabou em divórcio entre Breton e mais tarde com Dali. Não deu a junção do automatismo da escrita poética com a análise doutoral. E aparecem todos juntos? É evidente que não, pelas razões que já apresentei atrás que, repito-o, são chamados por Paulo Bugalho com critério e em capítulos que demonstram uma síntese notável do autor. Deixo-vos, só para levantar o véu, com um pequeno trecho do capítulo «O Melhor Duplo» que deu o título ao livro:

«A verdade última, leitor, é que, para aquele que somos na vigília, o futuro do sonho é esquecimento. Ficamos alarmados com as imagens que nos chegam ao acordar, confusos com a certeira bizarria dessas histórias, fascinados com esse descarnar da ligação entre o mundo mental e a existência terrena, entre a vida que é vivida e a vida que é pensada. Colocamos o sonho no altar, adoramo-lo como a um deus que nós próprios fôssemos, imaginamos a nossa figura multiplicada por dimensões incalculáveis, expandida e nessa expansão tornada por completo, amavelmente, indecifrável. (...)» Queremos uma resposta? Pois é: o problema (se é que o chega a ser) é que temos de contar com a amnésia, diz Paulo Bugalho. E essa amnésia, frustrante porque impossível e óbvia de ser estudada, é que «das oito horas de sono que compõem uma noite, quase cinco contêm sonhos. Contudo, o total de que um bom sonhador se lembrará num ano será apenas de dezoito horas.» 

Que este livro vos dê bons sonos, sonhos e, já agora, boas vigílias.

alc

quarta-feira, dezembro 18, 2024

Desenho a carvão sobre papel. Dezembro de 2024

 

Carvão sobre papel, a partir de uma fotografia de Andy Warhol
Dezembro de 2024
Na Galeria / Atelier Ícone

segunda-feira, dezembro 09, 2024

«Melancolia em Tempos de Perturbação», Joke J. Hermsen


Melancolia 1, Albrecht Dürer, 1514
Livro interessante que versa uma pequena história da melancolia a que hoje chamamos erradamente de depressão. Isto porque o estado melancólico passou por tantas fases e teve tantas interpretações que temos muita dificuldade em acertarmos o passo num conceito minimamente comum e geral. Talvez assim até seja melhor. Ainda hoje se pode entender a melancolia como um estado de felicidade interior que busca na arte, na música, na literatura, no teatro e na poesia uma referência e uma experiência intensa, sem que para isso seja imediatamente considerado um estado patológico grave. Lá chegaremos, mas agora ainda não. A holandesa Joke Hermsen consegue, com êxito, construir a história da melancolia desde Platão até aos nossos dias. E tem interesse saber, ou especular, como passámos de um dito estado melancólico desde os tempos medievais ao romantismo e ao spleen de Baudelaire até aos escuros tempos de hoje. Pois é, mais uma vez o capitalismo e a evecção do tempo que gera dinheiro, consumo exacerbado e despersonalização do indivíduo não sai daqui incólume. Como se sabe, o sistema capitalista apropriando-se do nosso corpo e  teleguiando os nossos desejos, não é de somenos a autora atirar-lhe com as culpas para cima devido ao aumento exponencial de estados depressivos no mundo actual. Da alegria e felicidade melancólicas até à depressão generalizada foi um pequeno passo de poucos séculos. A «melan chole» aristotélica que quer dizer, traduzido à letra, «bílis negra» e que fez nascer a palavra «melancolia» que era teorizada como «inspiradora de ideias geniais», embora fosse exigido que não estivesse «demasiado fria, nem demasiado quente». Deixo-vos com «Melancolia 1», de Albrecht Dürer e a análise interessantíssima que Joke Hermsen faz deste quadro de uma época, a Renascença, que talvez tenha sido a que maior importância deu, elevando-o aos píncaros, o feliz estado melancólico (talvez clicando na gravura vejam melhor):

«A ligação estabelecida, durante o Renascimento, entre a melancolia e a sabedoria está especialmente patente na gravura mais famosa daquela época, a alegoria de Albrecht Dürer intitulada Melancolia I, com data de 1514. Uma mulher alada, sentada numa atitude melancólica, aparece rodeada de atributos que remetem para o conhecimento e a sabedoria, como o compasso que tem na mão, as volumosas figuras geométricas que estão em seu redor e o tinteiro apoiado no chão, junto de um estojo para penas. No entanto, o que melhor define a gravura é que a figura protagonista não faz nada com nenhum desses atributos, limitando-se a contemplar o vazio, mergulhada nos seus pensamentos. Esta Melancolia afastou-se do mundo à espera de um momento de inspiração. Na parede, há um quadro mágico com números, cuja soma oferece o mesmo resultado na vertical, na horizontal e na diagonal, neste caso, trinta e quatro. (...) Por trás da angelical mulher alada, que leva na cabeça uma coroa de louros, há dois objectos que simbolizam duas vertentes distintas do tempo: a balança de Kairós, deus do momento oportuno, e a ampulheta Cronos, que marca a passagem do tempo, e, por meio disso, recorda-nos a transitoriedade da vida.
Por baixo da balança há um «putto», um anjinho, que simboliza o nascimento de uma ideia depois de se esperar pelo momento oportuno, examinar atentamente as circunstâncias e encontrar a justa medida.» (Pág. 31,32)

Importante é o destaque que a autora atribui ao trabalho determinante de Lou Andrea-Salomé sobre Nietzsche (e não só sobre ele), de Julia Kristeva e também de Hanna Arendt, principalmente no que respeita ao tempo, neste caso o Kairos e não Cronos, para o aparecimento da obra de arte, seja em que formas for. «Aqui, quero relacionar o tempo kairótico principalmente com a experiência estética e o possível efeito catártico da arte, numa tentativa de reflectir em mais profundidade sobre a importância da música, da literatura, do cinema, do teatro e das artes plásticas, para mantermos uma relação saudável com a nossa melancolia.» (pág.73)

Joke Hermsen não é poupada nos termos que dirige à extrema-direita europeia e americana, aos totalitarismos vários que se perfilam igualmente em todo o mundo, visto que são claramente responsáveis, tal como ao capitalismo, pela xenofobia e pela repressão dos sentidos, e são, ao fim ao cabo, inimigos do homem e mulheres biológicos (aqui entra o conceito de biopoder de Agamben, também referido no livro). A imposição do não conhecimento dos outros, impele ao pensamento único, à sociedade totalitária, à unicidade social e étnica; ou seja, à impossibilidade do 'momento único', oportuno, porque tudo é trabalhado para o seguimento do tempo, a linha do tempo do nascimento à morte, que é o controlo total da humanidade e o princípio primeiro do totalitário. Para sermos verdadeiramente humanos precisamos de contemplação e paragem do tempo. Um livro bastante interessante de ler.

«Melancolia em Tempos de Perturbação», de Joke. K. Hermsen
Quetzal, 2022
Tradução de Maria Antónia Vasconcelos

alc

sexta-feira, dezembro 06, 2024

Gaza, Palestina. Dezembro de 2024

 

Público, 5 de Dezembro de 2024 (pormenor)

Ontem, a abrir o Público, fiquei a olhar longamente a primeira página, cuja foto edito aqui um pormenor. No chão, jaz um cadáver que presumo ser de um familiar desta mulher. Este desespero terrível tenta ser consolado por uma sua companheira que não sei o que lhe poderá dizer. Em Gaza. Todos os dias estas imagens invadem a nossa sensibilidade, a nossa revolta, a impotência que sentimos perante um governo de genocidas, cuja prática hedionda, inumana, é de uma crueldade sem nome.
A Europa vai pagar caro estas lágrimas. Desta mulher e dos milhares de crianças e velhos que todos os dias, todos os dias, repito, são mortos às dezenas, às centenas em Gaza, no Líbano e na Cisjordânia. E a Europa, hoje rica e confortável, vai pagar mais cedo do que tarde. O Ocidente não quer ver, não percebe, finge, dissimula, apoia os fortes, calca os fracos. Humilha um povo, assinalando a sua vontade hipócrita de uma paz impossível, porque sabe bem que quem está no governo de Israel não a quer. Prefere a morte programada, a vingança bíblica. Os árabes de todo o mundo sentem-se assediados e humilhados perante os europeus. Imagina-se a sede que nos têm, tal como os africanos, tal como os chineses, tal como os indianos e os americanos do sul. Tal como os ameríndios. Escrevo, misturando as coisas? Não creio. Faço-o propositadamente. Não se perde o sentido, porque estas lágrimas, as desta mulher, juntam-se a muitas outras que a História nos atira à cara. Aos europeus que, desde sempre, utilizaram a violência e a discricionaridade contra os povos. Os americanos do norte? Fizemo-los igualmente nós. Se aqueles ainda não demonstraram totalmente a raiva, hoje ainda algo contida, estes últimos estão ciosos de nos deixarem sozinhos, resguardados por um chapéu nuclear que julgam protegê-los. Na onda de pagar as humilhações e violências perpetradas não existirá qualquer protecção que nos valha. Estas lágrimas doem a alguns de nós, mas eles, os que sofrem o horror, saberão disso?

alc

domingo, dezembro 01, 2024

«Viagem no Proleterka», Fleur Jaeggy

 

Alfaguara, 2024. Tradução de Ana Cláudia Santos
Escrito em 2001 neste «Viagem no Proleterka», a suíça Fleur Jaeggy, que aqui já falámos longamente pela leitura do vigoroso «Felizes Anos de Castigo» (1989), mostra-se agora algo fatigada, não se saberá se fruto da sua quase reclusão em que vive ou, talvez, porque o tema do seu encontro com um pai ausente, estranho, doente, que a convida para uma viagem de catorze dias num cruzeiro «para se conhecerem melhor» terá sido um fiasco. Aliás, todos os temas que Fleur Jaeggy tenta abordar falham. Essa possível relação com o pai não é minimamente conseguida. Se ele se mostra inacessível, a autora, os sentimentos e as acções que leva a cabo durante a viagem não se mostram mais do que pequenos e demasiado fugidios pensamentos para o leitor. Assim como as suas relações fortuitas com membros da tripulação são tão despidas de emoção que chegamos a pensar se chegaram a existir. Tudo é elaborado à pressa, como se a viagem pudesse acabar logo ali, acelerada. As descrições apresentam-se sem grande entusiasmo, como escrever um livro fosse igual a que se bebesse um copo de água e continuasse a escrever no capítulo seguinte. Um leitor, e reivindico para mim esse papel, não é um crítico: para isso, finalmente, já existem cursos universitários em algumas, poucas, universidades portuguesas. Mas no processo de leitura sente-se imediatamente, o estado de espírito de quem escreve. Há uma identificação clara, uma honestidade nossa que reivindicamos igualmente ao escritor. O que move um crítico é outra coisa. O recurso estilístico da autora nada tem a ver com o último, e creio que único, livro editado em Portugal, «Felizes Anos de Castigo». Repito que ali há um cansaço observável e que não é necessário sequer uma lupa para o verificar. 

A tradução de Ana Cláudia Santos, e não é a primeira vez que o digo, evitou que se tornasse quase impossível a leitura de «Viagem no Proleterka». Reparem no que eu digo, neste extracto que vos apresento, que se repete em toda a leitura em períodos tão curtos que interrompem o fluído necessário a uma leitura ou, sequer, a uma identificação mínima com a autora e a uma possível densidade psicológica de todas as personagens:

«(...) Era bonita e robusta. Houve vezes em que quis sair com ela. Não conhecia ninguém da minha idade. Ela fazia-se rogada. Tinha percebido logo que eu estava sozinha. Teria de pagar para ter a companhia dela. É possível que tenha sido ela a sugerir ao pai, o diretor, que nos expulsasse. A nós, os da pensão mensal.» (pá.109)

e continua na mesma página, e em todo o livro, esta toada:

«Por vezes, Johannes levava-me ao restaurante da Corporação. A entrada é pelas arcadas. No primeiro piso, silêncio, as pessoas distintas falam baixinho. Os talheres movem-se com leveza, quase sem tocar no prato. Lá fora, o rio corre. Os cisnes deslizam. Passa o elétrico. Carros. Quando morre um membro da Corporação, costuma fazer-se um banquete fúnebre. Johannes sente-se sozinho. (...)»

De resto, não costumo escrever sobre os livros de que não gosto e foram alguns, não muitos, é certo. Este não está nesse rol, mas devo a Fleur Jaeggy um dos melhores livros que li e que citei aqui, o «Felizes Anos de Castigo» sobre o regime de internato para jovens. Verdadeiramente ímpar. Esperemos que o próximo editado em Portugal seja diferente deste «Viagem no Proleterka» em que, por vezes, cheguei a pensar tratar-se de um conjunto de apontamentos livres da autora para a construção, isso sim, de um verdadeiro romance.

alc