domingo, outubro 13, 2024

«Uma Nova Violência», Luhuna Carvalho

Língua Morta, 2024.
Há quem, encostado no sofá da sala, vendo a TV, consultando os jornais em telemóvel, perore continuamente contra o estado das coisas, principalmente o já muito batido «empobrecimento da classe média», repetido mil vezes por eleitos e por eleitores. Geralmente estes últimos são pessoas que, comparativamente aos que trabalham por menos que o ordenado mínimo, estão relativamente bem na vida, realmente empobrecidos, é certo, mas mantendo o status e gostos culturais que os formaram durante longos anos. Para eles a vida continua sem grandes sobressaltos na cidade grande, atafulhada de turistas, de impostos e taxas, de pedintes e de sem-abrigos.

Geralmente, os media escondem êxodos silenciosos. Não são notícia, nem garantem grandes audiências. Mas existem e são subterrâneos. Imaginem os filhos dessa classe média depauperada, farta de ser enganada por todos, ou tipos já entradotes que não aceitam mais as chantagens do Estado e das máfias organizadas a fazerem as malas para um interior cada vez mais abandonado, reconstruindo, ocupando e lançando mãos a pequenas utopias que, como nos mostra Luhuna Carvalho, apresentam uma diversidade e uma pluralidade de cores, de pensamentos ou de objectivos completamente novos, procurando a autonomia e a liberdade que nunca conseguirão a manter-se o tal estado de coisas de que falava ao princípio e que a única premissa que nos oferece é a depressão colectiva. A conquista dessa liberdade e autonomia nem sempre se compagina com a paz ou com um pacifismo serôdio. Existe muita confusão em neurónios já muito queimados pela ondas hertzianas que consomem a tal classe média: nem sempre esta gente que foge da cidade é composta por hippies coloridos que cantam continuamente o «tumbaiá» e fumam umas ganzas. O autor que escreveu este «Uma Nova Violência» mostra que não são só estes a povoarem um sistema incapaz de manter o território com a vida rural que ainda subsistia ainda há poucos anos. Essa «nova violência» é descrita assim por uma personagem do livro de Luhuna Carvalho: «A «nova violência que ele propunha [Duarte] não era uma forma de emancipação nem de resistência. essa seria a antiga violência, a violência da nova lei condenada a degenerar na velha lei. A sua violência era uma forma insurreccional de disciplina. Era a construção interna e laboriosa, mas também excessiva e ritual, de uma outra forma de ser, de uma outra forma de ser o ser. Se o capitalismo era o ser negado, a sua nova violência era o ser multiplicado.(...)» (pp.27,28)

Quem já experimentou o isolamento e a solidão de uma grande cidade, sabe que poderá existir uma aventura na construção de uma comuna, geralmente longe dos grandes ou pequenos meios, mesmo que essa aventura se torne igualmente fastidiosa e estar sujeito a contradições contínuas dos seus membros ou a sentir uma invasão não consentida na sua personalidade por via de uma vida necessariamente partilhada. O autor explica toda esse problema de um modo extremamente claro, não fugindo aos problemas internos que uma tal opção obriga. Não entra num maniqueísmo sem sentido.

«Uma Nova Violência» aponta-nos um apocalipse anunciado, principalmente nas suas páginas finais, em lugares que conhecemos demasiado bem. Geralmente ao passarmos lá algumas férias de verão aburguesadas e arrendadas, nunca pensaremos que, nas nossas costas, toda uma rede de células vivas comunais e colectivas se movem, interagem ou lutam entre si. Situações que são por vezes imaginadas, mas outras são bem reais e aconteceram na luta contra os promotores da destruição do planeta ou dos fascistas, também eles a organizarem-se em territórios delimitados. Em relação à luta destes miúdos e da violência que protagonizam nas cidades, já me referi nestas páginas, à repressão ultra violenta a que são sujeitos pela polícia e pela população, para além dos já estafados «bonzos» da esquerda que escreveram prosas completamente absurdas (por não perceberem nada do que lhes está a acontecer, nem conhecerem sequer quem age ou como se organizam nessas manifestações); são eles Daniel Oliveira, Raquel Varela, Pacheco Pereira ou Rui Tavares. À sua direita pontificaram Clara Ferreira Alves, João Miguel Tavares ou José Manuel Fernandes. Sinceramente, lendo o que escreveram contra os manifestantes, não mostraram grande diferença entre a esquerda e a direita.

Imaginem, pois, que um dia entenderemos melhor este êxodo que há anos se vem materializando paulatinamente das cidades para o interior do país feito territórios escolhidos por um movimento comunal e talvez tenhamos melhor a noção exacta que estaremos já todos à beira do apocalipse. Ou, intuirmos que já é demasiado tarde para o evitar, se queremos de facto evitá-lo.

Um livro a ler. E demasiado verosímil, o que nos incomoda sobremaneira.

alc

terça-feira, outubro 08, 2024

«Infância, Adolescência e Juventude», Lev Tolstói

 

Relógio D'Água, 2012. Tradução de Nina e Filipe Guerra
Houve quem lhe chamasse «o espelho do povo russo». Não sei se o foi, ainda o será, ou, sendo-o, subsistirá como tal pelos tempos fora; ou, sequer, existir a possibilidade de um povo se ver ao espelho, coisa impossível de acontecer, mas por vezes bem necessário e aplicado para todos os povos, não só ao russo bem entendido. Nem sei se o que seria se o povo português se visse ao espelho e de que forma e qual o material que emergiria, não fosse este exercício um rol de abstracções que me dei ao luxo de apresentar-vos. No fundo, faço-o, porque isto é uma rede social. Está explicado por si.

Seja como for, até se aceita que um escritor possa ser um espelho privilegiado de uma época ou de costumes e de mentalidades. Então hoje!, cuja informação em catadupa e a mentira programada na informação e comunicação obriga aos historiadores um labor mais que suado para atingir a objectividade factual. No futuro, permanecerá somente a literatura. A Tolstói, eu venho de tempos a tempos, para saber como se escreve. E não só: para saber como construir frases que nos levam ao pormenor, ao ambiente partilhado, ao cheiro, ao tacto, aos sentimentos, sejam eles bondosos, maldosos ou indiferentes, mesmo que dentro de uma única personagem. Porque Tosltói sabe como nós somos. Está lá tudo e quase todas as hipóteses com que se executa um acto humano; para além de um espelho de um povo ele é essencialmente um espelho de nós próprios. É isto que faz um clássico ser um clássico. A obrigação de retornarmos sempre a ele e de nos vermos nele reflectidos.

Reparem no que ele escreve sobre a sua adolescência:

«Os pensamentos abstractos formam-se em consequência de que o ser humano tem capacidade de agarrar com a consciência, em certo momento, o estado de ânimo e de o transferir para a memória. A minha inclinação para raciocínios abstractos desenvolveu a minha consciência de modo tão antinatural que muitas vezes, começando a pensar numa coisa muito simples, entrava num ciclo vicioso de análise das minhas reflexões e, em vez de pensar no problema concreto, pensava no que estava a pensar. Perguntando a mim próprio: em que estou a pensar? - respondia: penso no que penso. E agora, em que estou a pensar? Penso que penso em que estou a pensar e assim por diante. Ficava tonto...» (pág.186)

Conde, portanto aristocrata, estudante brilhante e também dissoluto, religioso, frequentador de salões da elite russa do século XIX já em decadência, no início afastado do seu povo; nos meados e fim da sua vida, como sabemos, funda uma escola na sua aldeia com novos métodos pedagógicos (que ele bem conhecia), afastando-se definitivamente da Igreja e não vê necessidade da existência de um Estado. Obviamente, o Estado esquece-o e a Igreja ortodoxa excomunga-o. Sai de casa e torna-se um nómada caminhando incessantemente, de aldeia em aldeia, até falecer na sala de espera de uma estação. A escrever, dizem.

alc