terça-feira, outubro 29, 2024

«Em tudo havia Beleza», Manuel Vilas

 

Alfaguara, 2019. Tradução de Vasco Gato
Por vezes, pergunto-me o que leva um escritor a escrever um livro assim. Bem escrito quanto baste não faz necessariamente um livro interessante. Eu, eu, e só eu, mais a minha família em 400 páginas repetitivas, longas, embora com o recurso a 157 capítulos que permitem uma leitura aparentemente levezinha. Manuel Vilas não o conseguiu de todo, assim como falhou na fotografia de uma Espanha autoritária, de uma região esquecida ou de uma família supostamente disfuncional. A narrativa arrasta-se interminavelmente e conclui-se com uns «poemas» do autor mais que sofríveis. 

Fica aí um registo para que conste de um pedaço da vida de Manuel Vilas em que foi professor do ensino médio: 
«(...) Passear, olhar as nuvens, ler, estar sentado, estar consigo mesmo num grande silêncio, foi esse o proveito.
    E no dia seguinte já não madruguei. Deixei de dar aulas no ensino médio. Penso agora que aquele não era um trabalho aceitável, como em tempos julguei, mas que era só outro trabalho alienante, de uma alienação talvez menos evidente. A alienação laboral camufla-se, mas continua a estar aí, como no século XIX. Escolas, liceus, hospitais, universidade, prisões, quartéis, gigantescos edifícios de escritórios, esquadras da polícia, o Congresso dos Deputados, centros de saúde, centros comerciais, igrejas, conventos, bancos, embaixadas, sedes de organismos internacionais, redacções de jornais, cinemas, praças de touros, estádios de futebol, todos esses lugares de celebração da vida nacional, o que são? São lugares onde se cria a realidade, o sentido da colectividade, o sentido da História, a celebração do mito de que somos uma civilização. [Afinal em que é que ficamos, Manuel Vilas? A alienação são lugares onde se cria o sentido da colectividade e o sentido da História? De celebração da vida nacional?] Todos os rapazes e raparigas a quem dei aulas, que será feito deles? Alguns talvez tenham partido para sempre. [Para sempre? Não fazes o caso por menos?] E aqueles colegas de trabalho com que coincidi também irão morrendo. [Vilas, quem nunca?] Os seus rostos desvanecem-se na minha memória. Vão todos para a treva. [Sorte a deles, Manuel!] (...) Alguns colegas morreram assim que alcançaram a reforma. É um castigo do acaso. O acaso castiga os calculistas, quem calculou a sua reforma. Os liceus não guardam recordação daqueles corpos. [Isso são os cemitérios, carago!] Os estabelecimentos espanhóis do ensino médio eram edifícios sem graça, construções deficientes, com corredores anódinos, com salas frias no Inverno e tórridas logo na Primavera. Os gizes, os quadros, a sala de professores, as fotocópias, a campainha a tocar ao fim da aula, o café com os colegas, as comidinhas defeituosas, mal cozinhadas, os bares sujos.
    E tudo se decompõe. Não havia fotografias dos professores reformados nos corredores dos liceus. [Vá lá, Manuel Vilas, é isso que te incomoda verdadeiramente? A falta de um retrato num corredor?] Não havia memória, porque não havia nada para recordar. E esses colegas enlouqueciam de mediania e vulgaridade e humilhavam e desprezavam os seus alunos. Aqueles miúdos eram humilhados e ofendidos pelos professores, esses medíocres com rancor pela vida. (...)» 

E a coisa continua sem dó nem piedade. Um conselho: isto já foi suficientemente descrito, analisado, debatido até ao tutano nos anos 60 por via de um Foucault, de um Marcuse, ou de um Deleuze, por exemplo. Que é triste, é. De facto, é. Não me compete a mim dizer mais a não ser uma profunda compreensão por esta má experiência de Manuel Vilas. Se era necessário registá-la num diário público em que se transformou a sua narrativa, já é outra coisa.

alc

sexta-feira, outubro 25, 2024

Às voltas na FLUC

 

Em fins de Setembro inscrevi-me numa disciplina na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Voltei à casa, seja, embora em outro curso. Casa que, nostálgica e evidentemente, está igual como há 40 anos e cujo nome «casa» era assim designada por alguns professores quando a queriam referir com a solenidade exigida: «Esta casa não permite tal...», ou «Esta casa assim se fez...», ou, ainda, «O prestígio desta casa faz-se assim e não assado...» e para nos calar, a nós estudantes das variadas comissões de curso, mandavam um altivo «Os regulamentos desta casa não prevêem tal...». Os móveis feitos de madeira das colónias lá estão ainda firmes, hirtos e eternos, as estantes dos corredores frios estranhamente vazias o que faz com que, por exemplo, olhemos para as estantes onde pontificam cartazes anunciando «literatura belga», ou «literatura italiana» sem nenhum livro, e o bar cuja única diferença é não poder receber em dinheiro o que pedimos. Todos visualizam, comunicam, usam, pesquisam nos telemóveis.

Dizia que estava tudo igual na faculdade. Não é bem assim: a matrícula tinha um regime que me era desconhecido até Setembro que era a estranha fórmula de «unidade curricular isolada»; só o nome me propunha a exclusão decisiva, visto que me encontrava na situação de não acompanhado e isto por não me ter inscrito num curso que me daria, se o tivesse escolhido, uma ideia de consistência que não almejei. Toma e embrulha! Só a propina me dá esse sentimento simultâneo de perda e inclusão. Por outro lado, permite-me inscrever-me futuramente noutras hipóteses e disciplinas continuando, contudo, no regime ubuesco de «unidade isolada». Não é mau de todo. Siga...
 
Depois das intervenções trauteadas nas aulas, com as hipóteses levantadas, os exemplos que os professores querem ilustrar para os mais novos, são dirigidas perguntas, preferencialmente, aos três elementos «seminovos» com que somos brindados pelo jovem professor. No caso, a necessidade em pedir exemplos concretos debruçava-se sobre a cultura salazarista! Como se nós tivéssemos sido amigos de António Ferro ou privássemos com João Gaspar Simões ou do folclorista Pedro Homem de Mello. Antigos mas nem tanto, caramba! A coisa continuava: «no vosso tempo, ouvia-se a canção francesa, não?» Eu, que ouvia, repetidamente, e nos anos 80 quando contava com os meus 20 anos, Jim Morrison, os Clash, os Velvet Underground, os Joy Division e os New Order, vejo-me, de uma só penada, remetido para o Georges Brassens, Piaf, Louis Armstrong ou ainda pior. Seja: não rebati nada. A verdade é que ninguém acreditaria que um tipo de casaco e bem-aprumado, como eu me julgo, tivesse sido um bardina do pior a clamar «No Future!» e a exigir o «kaos» contra a Tatcher e o Reagan, em grego que soa melhor. Seja, outra vez: calei-me. 

O estranho veio depois. Quando entrei  na sala senti-me algo desconfortável e não sabia porquê. Não era qualquer construção ideológica em volta do idadismo ou coisa parecida. Olhava para os meus dois colegas «seminovos» e nada via de estranho, embora a sensação esquisita continuasse. Somos 61 alunos e 30% são alunos estrangeiros, mas não, não era disso que se tratava. A esses não se pergunta nada, embora houvesse alunos ingleses que dissessem não conhecer D.H.Lawrence, ou italianos que sabiam lá quem era D'Annunzio! Mas todos sabiam quem era Pessoa e era possível, até, que tivessem no frigorífico um íman com a sua cara. Continuei a olhar e a investigar o porquê da sensação estranha no anfiteatro. A coisa foi descoberta quando começou a circular a folha de presenças: todos tinham computador e teclavam! Eu e os «seminovos» éramos os únicos que, armados com a sua Bic, tiravam apontamentos frenéticos, possivelmente com a língua de fora, de certeza com o calo crescendo no dedo médio, o «pai de todos»! Ninguém tinha uma esferográfica, nem uma simples Bic, essa invenção ligada aos testes da bomba atómica que substituiu a caneta de tinta permanente que estoirava nos aviões a grande altitude sem pressão atmosférica (estão a ver como a guerra é importante para o avanço da humanidade? Sem a bomba atómica não haveria nenhumas Bic de ponta fina ou grossa!) e cuja venda no Reino Unido obrigou o seu autor a mudar o seu nome francês de Marcel Bich, para Bic, porque era chato para os ingleses pedirem uma «caneta bicha»! É evidente que a minha esferográfica seguiu o seu caminho natural até à primeira fila do anfiteatro, perante o meu protesto surdo (o jovem professor falava e isto em Coimbra ainda tem peso!). Ninguém andava armado com esse objecto agora semi-conhecido a que se chama caneta. A partir dessa aula, levo duas bic's. Uma para mim e outra para as voltas ao anfiteatro. E ainda não repararam que escrevo como antes do AO.90! Miséria das misérias...

alc

sábado, outubro 19, 2024

Camões: Vidas e Obras

Camões no sofá da psicanálise ou no seu modesto catre a ser observado por todos. Nunca saberemos o diagnóstico, porque tudo o que nos falta conhecer sobre Camões é o que o faz maior, desconfio eu. Estes 500 anos do seu suposto nascimento a 1524 têm sido férteis em nada saber de mais. Toda a biografia do vate, bate no erro ou na suposição de que foi assim e não de outra maneira. Li uma biografia de Carlos Maria Bobone e outra de Isabel Rio Novo e não posso deixar de dizer que foi com algum gosto, mais por causa do poeta do que por eles. No entanto, nada de novo na costa. Reparo na muita genealogia, concedo que muita pesquisa, aceito a honestidade intelectual, desconfio da desconfiança nos pares, tolero pouco a pancada nos antigos biógrafos, admito ainda as suas interpretações sempre subjectivas aqui e ali temperadas com um nada saudável conservadorismo. Pelicano no frontispício da 1ª edição para a esquerda ou a contrafacção da publicação pirata com o pelicano para a direita, é-me indiferente. Camões irascível, gastador, libertino, tumultuoso, eterno insatisfeito estivesse onde estivesse, algo zangado com a sua condição social de nobre empobrecido, altivo para com os mecenas que o ajudaram, iroso para os poetas contemporâneos que, tais salieris lusos, o quiseram menorizar e prejudicar, alguns deles com sucesso mesquinho; preso e exilado, feito soldado à força, ferido numa refrega habitual nos fortes de Marrocos e administrador das heranças dos mortos da Índia, apontando, já nos anos 50 do século XVI, a decadência e inconsistência do Império. Voltarei, contudo e ainda no ano dos 500, bem-entendido, a Aquilino que escreveu admiráveis páginas sobre Camões e outro sobre o seu rei, mas este é uma outra coisa, que não falaremos aqui!

Felizmente, não fui dos que sofreu muito, no liceu, a prática da subordinação das frases de «Os Lusíadas», saídas inclusive nos exames do liceu e nosso particular terror, aumentado pela ansiedade acerca do canto que iria dessa vez sair. E não sofri muito, repito, porque, à excepção de um tipo completamente doido, fascista romântico daqueles que exigiam que a capital do Império fosse para Luanda e que lhe retiraram o brevet de aviação por ter voado sob a ponte de Vila Franca!, tive professores, dizia eu, muito bons de Português que sabiam compreender que a teima na gramática e na métrica dos versos da epopeia poderia afastar-nos irremediavelmente de Camões. Creio mesmo que, inteligentemente, nos compensavam com a lírica e com a proibida «Ilha dos Amores» que nos punha com as cabeças adolescentes em colégio interno completamente engalanadas de ninfas poderosas. Mesmo o nosso professor-aviador fascista romântico, conseguia, no seu entusiasmo exagerado pela viagem de Gama e dos feitos do Império, arremeter-nos para o ambiente marítimo e do distante exótico: no meio do estrado, esbracejava, gritava os versos, revirava os olhos, soltava os cabelos cheios de brilhantina, puxava as calças para cima da barriga proeminente, enquanto o borrão de um cigarro na mão livre lhe queimava a gravata. Ah, Camões! Sempre nos parecia que o poeta nada tinha a ver com estas figuras: sobrepunha-se a eles, alevantava-se em forma de miasma e observava de soslaio com o seu olho de condescendente ciclope a turma que, sob o terror disciplinado, bebia as palavras do sub-mestre. Mas a verdade que se diga: os melhores professores que me fizeram gostar de Camões eram de esquerda, contestavam o regime e ousavam tergiversar o programa da educação nacional, o que fez toda a diferença numa época rica de mitos de um país pobre. Tenho essa certeza que ainda permanece até hoje. Então a lírica, as rimas e redondilhas não me largaram através desses professores a quem devo estas linhas: «Sôbolos rios que vão/Por Babilónia, me achei (...)»

alc

quarta-feira, outubro 16, 2024

«A Resistência», Julián Fuks

 

Companhia das Letras, Penguin Random House, 2023
Pode não constituir ainda um padrão literário, mas esta narrativa de uma nova realidade sul-americana nasce de uma pesquisa difícil e dolorosa de uma memória reconquistada pela escrita. Trata-se de uma memória que tentou ser anestesiada pelas ditaduras da América do Sul e que teimosamente emerge, lutando contra o medo, contra a morte. Esta literatura nasce de gente nascida nos anos 80 e são escritores e escritoras que teimam em fazer reviver os que morreram sob torturas, desaparecimentos, sequestros, raptos de crianças, numa espiral de violência indescritível da extrema-direita no poder. Falamos da Argentina de 1976, do Chile de 1973, do Brasil, do Uruguai, da Nicarágua de Somoza, etc, etc,. A Operação Condor nas Américas não foi uma ficção. Lembramo-nos, para além de Fuks, da chilena Alia Trabuco Zerán, em «A Subtracção» e mesmo Layla Martínez em «Caruncho» e embora este último se passe em Espanha os mortos sem morada são os mesmos. Este rastro existe, o dos desaparecidos, dos mortos ainda sem sepultura. Como nos lembra o autor, as Avós e Mães da Praça de Maio, em 30 anos, «recuperaram» 114 netos adoptados à força. Faltam cerca de 400. Este facto pesará sempre na consciência de cada um de nós, ao menos em nós, dado que a dos verdugos é um enorme vazio assassino. A literatura é viver isto, também.

Mas se, por um lado, fazem reviver os mortos ou os desaparecidos, também se questionam a si próprios e aos sobreviventes. E é aqui que nasce este padrão literário, talvez estranho para os europeus habituados à democracia parlamentar e aos bons costumes do «confronto» mais ou menos polido. Julián Fuks é mais brasileiro que argentino, se bem que os seus pais vivessem em Buenos Aires quando do golpe de Videla em 76. Ambos médicos e militantes de esquerda, tiveram de fugir para o Brasil (embora igualmente em ditadura) para sobreviver, levando consigo uma criança que vieram a adoptar e irmão mais velho de Sebastián, nome da personagem que o escritor emprestou para si próprio neste livro. Esta ferida aberta, que Fuks não se inibe de revelar, toma vários formatos: a sua relação com esse irmão, com a sua irmã biológica, com os pais, com as Mães e Avós da Praça de Maio, com a própria esquerda e com a violência, com a ditadura; e a memória que ele se força por trazer ao de cima, sem que isso não impeça um conflito que adivinhamos com os próprios pais que não concordam com o modo como o filho expõe essas mesmas feridas ainda abertas e transcritas para a ficção. A revelação fria pode ser pior que a desmemória. 

O brasileiro Julián Fuks ganhou o Prémio José Saramago em 2017, mas este não é um livro extraordinário. Por vezes, durante a sua leitura, temos a ideia que é volúvel, etéreo, solto. Pouco firme, não muito consistente com os pensamentos ou com as ideias que quer transmitir. Mas talvez tenha sido essa a opção do autor. A memória não será assim, também ela?

«Toda a vida foi infenso a esses objetos. incômoda confluência entre a ameaça efetiva e o símbolo funesto, toda a vida me quis um pacifista. Agora penso nessas armas e não entendo a euforia que sinto, a vaidade que me acomete, como se a biografia do meu pai em mim se investisse: sou o filho orgulhoso de um guerrilheiro de esquerda e isso em parte me justifica, isso redime minha própria inércia, isso me insere precariamente numa linhagem de inconformistas.»

Que esse inconformismo perpasse gerações. Com armas ou com argumentos os tempos necessitam disso.

alc

domingo, outubro 13, 2024

«Uma Nova Violência», Luhuna Carvalho

Língua Morta, 2024.
Há quem, encostado no sofá da sala, vendo a TV, consultando os jornais em telemóvel, perore continuamente contra o estado das coisas, principalmente o já muito batido «empobrecimento da classe média», repetido mil vezes por eleitos e por eleitores. Geralmente estes últimos são pessoas que, comparativamente aos que trabalham por menos que o ordenado mínimo, estão relativamente bem na vida, realmente empobrecidos, é certo, mas mantendo o status e gostos culturais que os formaram durante longos anos. Para eles a vida continua sem grandes sobressaltos na cidade grande, atafulhada de turistas, de impostos e taxas, de pedintes e de sem-abrigos.

Geralmente, os media escondem êxodos silenciosos. Não são notícia, nem garantem grandes audiências. Mas existem e são subterrâneos. Imaginem os filhos dessa classe média depauperada, farta de ser enganada por todos, ou tipos já entradotes que não aceitam mais as chantagens do Estado e das máfias organizadas a fazerem as malas para um interior cada vez mais abandonado, reconstruindo, ocupando e lançando mãos a pequenas utopias que, como nos mostra Luhuna Carvalho, apresentam uma diversidade e uma pluralidade de cores, de pensamentos ou de objectivos completamente novos, procurando a autonomia e a liberdade que nunca conseguirão a manter-se o tal estado de coisas de que falava ao princípio e que a única premissa que nos oferece é a depressão colectiva. A conquista dessa liberdade e autonomia nem sempre se compagina com a paz ou com um pacifismo serôdio. Existe muita confusão em neurónios já muito queimados pela ondas hertzianas que consomem a tal classe média: nem sempre esta gente que foge da cidade é composta por hippies coloridos que cantam continuamente o «tumbaiá» e fumam umas ganzas. O autor que escreveu este «Uma Nova Violência» mostra que não são só estes a povoarem um sistema incapaz de manter o território com a vida rural que ainda subsistia ainda há poucos anos. Essa «nova violência» é descrita assim por uma personagem do livro de Luhuna Carvalho: «A «nova violência que ele propunha [Duarte] não era uma forma de emancipação nem de resistência. essa seria a antiga violência, a violência da nova lei condenada a degenerar na velha lei. A sua violência era uma forma insurreccional de disciplina. Era a construção interna e laboriosa, mas também excessiva e ritual, de uma outra forma de ser, de uma outra forma de ser o ser. Se o capitalismo era o ser negado, a sua nova violência era o ser multiplicado.(...)» (pp.27,28)

Quem já experimentou o isolamento e a solidão de uma grande cidade, sabe que poderá existir uma aventura na construção de uma comuna, geralmente longe dos grandes ou pequenos meios, mesmo que essa aventura se torne igualmente fastidiosa e estar sujeito a contradições contínuas dos seus membros ou a sentir uma invasão não consentida na sua personalidade por via de uma vida necessariamente partilhada. O autor explica toda esse problema de um modo extremamente claro, não fugindo aos problemas internos que uma tal opção obriga. Não entra num maniqueísmo sem sentido.

«Uma Nova Violência» aponta-nos um apocalipse anunciado, principalmente nas suas páginas finais, em lugares que conhecemos demasiado bem. Geralmente ao passarmos lá algumas férias de verão aburguesadas e arrendadas, nunca pensaremos que, nas nossas costas, toda uma rede de células vivas comunais e colectivas se movem, interagem ou lutam entre si. Situações que são por vezes imaginadas, mas outras são bem reais e aconteceram na luta contra os promotores da destruição do planeta ou dos fascistas, também eles a organizarem-se em territórios delimitados. Em relação à luta destes miúdos e da violência que protagonizam nas cidades, já me referi nestas páginas, à repressão ultra violenta a que são sujeitos pela polícia e pela população, para além dos já estafados «bonzos» da esquerda que escreveram prosas completamente absurdas (por não perceberem nada do que lhes está a acontecer, nem conhecerem sequer quem age ou como se organizam nessas manifestações); são eles Daniel Oliveira, Raquel Varela, Pacheco Pereira ou Rui Tavares. À sua direita pontificaram Clara Ferreira Alves, João Miguel Tavares ou José Manuel Fernandes. Sinceramente, lendo o que escreveram contra os manifestantes, não mostraram grande diferença entre a esquerda e a direita.

Imaginem, pois, que um dia entenderemos melhor este êxodo que há anos se vem materializando paulatinamente das cidades para o interior do país feito territórios escolhidos por um movimento comunal e talvez tenhamos melhor a noção exacta que estaremos já todos à beira do apocalipse. Ou, intuirmos que já é demasiado tarde para o evitar, se queremos de facto evitá-lo.

Um livro a ler. E demasiado verosímil, o que nos incomoda sobremaneira.

alc

terça-feira, outubro 08, 2024

«Infância, Adolescência e Juventude», Lev Tolstói

 

Relógio D'Água, 2012. Tradução de Nina e Filipe Guerra
Houve quem lhe chamasse «o espelho do povo russo». Não sei se o foi, ainda o será, ou, sendo-o, subsistirá como tal pelos tempos fora; ou, sequer, existir a possibilidade de um povo se ver ao espelho, coisa impossível de acontecer, mas por vezes bem necessário e aplicado para todos os povos, não só ao russo bem entendido. Nem sei se o que seria se o povo português se visse ao espelho e de que forma e qual o material que emergiria, não fosse este exercício um rol de abstracções que me dei ao luxo de apresentar-vos. No fundo, faço-o, porque isto é uma rede social. Está explicado por si.

Seja como for, até se aceita que um escritor possa ser um espelho privilegiado de uma época ou de costumes e de mentalidades. Então hoje!, cuja informação em catadupa e a mentira programada na informação e comunicação obriga aos historiadores um labor mais que suado para atingir a objectividade factual. No futuro, permanecerá somente a literatura. A Tolstói, eu venho de tempos a tempos, para saber como se escreve. E não só: para saber como construir frases que nos levam ao pormenor, ao ambiente partilhado, ao cheiro, ao tacto, aos sentimentos, sejam eles bondosos, maldosos ou indiferentes, mesmo que dentro de uma única personagem. Porque Tosltói sabe como nós somos. Está lá tudo e quase todas as hipóteses com que se executa um acto humano; para além de um espelho de um povo ele é essencialmente um espelho de nós próprios. É isto que faz um clássico ser um clássico. A obrigação de retornarmos sempre a ele e de nos vermos nele reflectidos.

Reparem no que ele escreve sobre a sua adolescência:

«Os pensamentos abstractos formam-se em consequência de que o ser humano tem capacidade de agarrar com a consciência, em certo momento, o estado de ânimo e de o transferir para a memória. A minha inclinação para raciocínios abstractos desenvolveu a minha consciência de modo tão antinatural que muitas vezes, começando a pensar numa coisa muito simples, entrava num ciclo vicioso de análise das minhas reflexões e, em vez de pensar no problema concreto, pensava no que estava a pensar. Perguntando a mim próprio: em que estou a pensar? - respondia: penso no que penso. E agora, em que estou a pensar? Penso que penso em que estou a pensar e assim por diante. Ficava tonto...» (pág.186)

Conde, portanto aristocrata, estudante brilhante e também dissoluto, religioso, frequentador de salões da elite russa do século XIX já em decadência, no início afastado do seu povo; nos meados e fim da sua vida, como sabemos, funda uma escola na sua aldeia com novos métodos pedagógicos (que ele bem conhecia), afastando-se definitivamente da Igreja e não vê necessidade da existência de um Estado. Obviamente, o Estado esquece-o e a Igreja ortodoxa excomunga-o. Sai de casa e torna-se um nómada caminhando incessantemente, de aldeia em aldeia, até falecer na sala de espera de uma estação. A escrever, dizem.

alc