terça-feira, outubro 08, 2024

«Infância, Adolescência e Juventude», Lev Tolstói

 

Relógio D'Água, 2012. Tradução de Nina e Filipe Guerra
Houve quem lhe chamasse «o espelho do povo russo». Não sei se o foi, ainda o será, ou, sendo-o, subsistirá como tal pelos tempos fora; ou, sequer, existir a possibilidade de um povo se ver ao espelho, coisa impossível de acontecer, mas por vezes bem necessário e aplicado para todos os povos, não só ao russo bem entendido. Nem sei se o que seria se o povo português se visse ao espelho e de que forma e qual o material que emergiria, não fosse este exercício um rol de abstracções que me dei ao luxo de apresentar-vos. No fundo, faço-o, porque isto é uma rede social. Está explicado por si.

Seja como for, até se aceita que um escritor possa ser um espelho privilegiado de uma época ou de costumes e de mentalidades. Então hoje!, cuja informação em catadupa e a mentira programada na informação e comunicação obriga aos historiadores um labor mais que suado para atingir a objectividade factual. No futuro, permanecerá somente a literatura. A Tolstói, eu venho de tempos a tempos, para saber como se escreve. E não só: para saber como construir frases que nos levam ao pormenor, ao ambiente partilhado, ao cheiro, ao tacto, aos sentimentos, sejam eles bondosos, maldosos ou indiferentes, mesmo que dentro de uma única personagem. Porque Tosltói sabe como nós somos. Está lá tudo e quase todas as hipóteses com que se executa um acto humano; para além de um espelho de um povo ele é essencialmente um espelho de nós próprios. É isto que faz um clássico ser um clássico. A obrigação de retornarmos sempre a ele e de nos vermos nele reflectidos.

Reparem no que ele escreve sobre a sua adolescência:

«Os pensamentos abstractos formam-se em consequência de que o ser humano tem capacidade de agarrar com a consciência, em certo momento, o estado de ânimo e de o transferir para a memória. A minha inclinação para raciocínios abstractos desenvolveu a minha consciência de modo tão antinatural que muitas vezes, começando a pensar numa coisa muito simples, entrava num ciclo vicioso de análise das minhas reflexões e, em vez de pensar no problema concreto, pensava no que estava a pensar. Perguntando a mim próprio: em que estou a pensar? - respondia: penso no que penso. E agora, em que estou a pensar? Penso que penso em que estou a pensar e assim por diante. Ficava tonto...» (pág.186)

Conde, portanto aristocrata, estudante brilhante e também dissoluto, religioso, frequentador de salões da elite russa do século XIX já em decadência, no início afastado do seu povo; nos meados e fim da sua vida, como sabemos, funda uma escola na sua aldeia com novos métodos pedagógicos (que ele bem conhecia), afastando-se definitivamente da Igreja e não vê necessidade da existência de um Estado. Obviamente, o Estado esquece-o e a Igreja ortodoxa excomunga-o. Sai de casa e torna-se um nómada caminhando incessantemente, de aldeia em aldeia, até falecer na sala de espera de uma estação. A escrever, dizem.

alc