terça-feira, julho 30, 2024

«A Guerra dos Pobres», Éric Vuillard

 

D. Quixote, 2020. Tradução de João Carlos Alvim. De acordo com o AO90.
Em 72 páginas, o escritor francês Éric Vuillard, também autor de «Ordem do Dia», levou a cabo um exercício de síntese extremamente difícil em literatura. Em pouquíssimas palavras, todas elas tão contidas quanto certas, num jeito confessional para com o leitor, dá-nos uma perspectiva entusiástica da vida de Thomas Müntzer que levou a cabo nos anos vinte do século XVI uma revolta milenarista, de carácter religioso e social contra a igreja e a nobreza alemã.

A acção, muito complexa de analisar ainda hoje e alvo de vários estudos históricos, de Thomas Müntzer e da revolta camponesa e operária, acantonada nos núcleos urbanos juntamente com os artesãos, tem, contudo, antecedentes na Europa Central. Estamos a falar do checo Jan Huss (no livro a grafia que aparece é Hus), do inglês John Wyclif e dos seus lollardos que puseram a Inglaterra a ferro e fogo, de John Ball e de Wat Tyler seus continuadores nas revoltas onde decapitaram nobres e funcionários do rei, incendiaram castelos, propagandearam as suas teorias de uma era de ouro, mel e igualdade, usando a palavra de Cristo através dos evangelhos entretanto traduzidos para a língua comum. Não obedeciam às regras do clero, não pagavam os dízimos, assassinavam padres e nobres, saqueavam castelos como já se disse e não pagavam os arrendamentos das terras. Almejava-se uma igualdade social, baseado nas metáforas e palavras mais ou menos claras de Cristo contra a riqueza e o luxo. Acresce-se, em jeito de final de história (ironia minha, porque a vontade de igualdade social esteve e estará sempre presente nas lutas sociais) que todos foram mortos com extrema violência seja através do enforcamento, esquartejamento, decapitação, queima, tortura, etc, tudo o que a imaginação tétrica dos possidentes pode atingir. Embora a violência das massas populares  entregues a si próprias não fosse propriamente de anjinhos, fossem eles católicos ou protestantes. Aliás, Lutero, opôs-se violentamente contra a ordem revolucionária camponesa nos territórios ocupados pelos sediciosos. Não fosse a «sua» igreja ficar sem benesses...

Müntzer, diz-nos Éric Vuillard, assistiu à execução do pai, seu homónimo. O escritor define-o como colérico, iroso. Tem a palavra de deus e isso basta-lhe como programa que sintetiza no seu «Manifesto de Praga», embora recusando qualquer discussão estéril com o clero. O termo utilizado para esta recusa é «repugnância». A partir daqui é com um grande entusiasmo que continuamos a leitura querendo sempre chegar ao clímax da história, sabendo de antemão que o final de Thomas Müntzer estará traçado desde início. Pouco importa. Quando se escreve bem, vale sempre a pena continuar até porque somos brindados com alguns pormenores impossíveis de saber em livros académicos. É curiosos que a proximidade do Verão, abre quase sempre as portas às revoltas e revoluções. Claro que há excepções (Novembro de 1917, por exemplo), mas não sei se foi por esse facto que Vuillard nos apresenta o capítulo «O Verão Bate às Nossas Portas»:

«''Mund é a boca de Zerstörung, a destruição''. De forma que é possível detectar, em Thomas Müntzer, uma afinidade prodigiosa entre a palavra e a negação. Decerto, pode ver-se em Müntzer um desses idealistas apaixonados de que a medicina troça, podem colocar-se no divã Rousseau, Tolstoi, Lenine, e forçá-los a dizer o que quer que seja. Pode ver-se em todas as revoltas e em todos os fervores uma dor pessoal transfigurada; e então? (...)
Sim, Müntzer é violento, sim, Müntzer delira. Convoca o Reino de Deus aqui e agora, há nele um excesso de impaciência. Os exasperados são assim, irrompem um belo dia da cabeça dos povos, como fantasmas saem das paredes.» (pags. 45, 46)

A história de Thomas Müntzer termina na Batalha de Frankenhausen, se «batalha» se pode chamar a um massacre de dezenas de milhares de desvalidos miseráveis e cuja repressão brutal posterior do exército do rei e dos nobres levou dois meses a acabar. É assim que Éric Vuillard inicia o capítulo correspondente:
«E assim, dos quatros cantos do Império, surgiram hordas de miseráveis. Müntzer cantava, a multidão acorria. O landgrave de Hesse nem queria acreditar nos seus olhos. Em seguida, foram os operários das cidades, os loucos, toda a massa camponesa que bruscamente se sublevou. Houve um grande pavor entre os nobres e os burgueses. As mulheres deixavam as suas casas, as crianças caminhavam através dos campos, na esteira do Espírito Santo. As raparigas, os vagabundos, a atroz populaça, até os animais! Viu-se assim todo o género de gente, em grupos de dois ou de três, sozinha também, sem bagagem, sem nada. Não se sabia o que pretendia. Os senhores e os seus bandos armados já não ousavam fazer o que quer que fosse; viam-na passar aterrados. Um vago temor começava a nascer. Que deveria decidir-se? Nunca se tinha visto uma coisa assim. Todos largavam casas e casebres e se juntavam à errante multidão. E para onde ia toda essa gente? Ignorava-se. Temia-se até dispersá-la. Dormia nos bosques, na palha, entre sonhos.» (pág. 66)

E assim entre sonhos, a mole humana miserável que seguia Thomas Müntzer viu esfumar-se a igualdade que ansiava. Derrotada? É possível, mas ainda hoje está aí para a sua história ser contada. O milenarismo, o assalto à utopia da idade de ouro vindoura, aí está para ser lida e pensada nos dias de hoje pela mão de Éric Vuillard e de outros que não desistiram de nos lembrar, como Norman Cohn o fez no seu trabalho excepcional, de 1957, «Na Senda do Milénio - Milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média» que tomo a liberdade de vos apresentar como dos poucos livros de grande fôlego, talvez não ultrapassado até hoje, sobre o tema. Foi neste livro que Éric Vuillard encontrou pormenores da vida e pensamento de Thomas Müntzer que veio a ser essencial para a construção da sua pequena obra.

alc

segunda-feira, julho 29, 2024

«Temporada de Furacões», Fernanda Melchior

 

Elsinore, Penguin Random House, 2023. Trad. Cristina Rodríguez e Artur Guerra
Diz o «The Guardian» que Fernanda Melchior é uma das mais importantes vozes contemporâneas da literatura mexicana. Não o negarei. Que é «deslumbrante» já me obriga a travar nos adjectivos. Já o Wall Street Journal (ah pois!), define-o como «um compósito de raiva e de angústia inteiramente singulares». Aqui estaremos inteiramente de acordo porque a leitura desta torrente de ira, de perfídia e de ambientes soturnos nos desconchava a alma completamente. Não há volta a dar. Saímos daqui bastante mal o que, em princípio, cumpre o objectivo de qualquer história ainda por cima baseada num facto real. 

Acresce um facto que muitos de nós sentimos ao ler «Temporada de Furacões»: durante os finais dos anos 70 e inícios dos 80, uma grande fatia de leitores mais ou menos compulsivos entre os quais eu me encontrava - era no tempo em que íamos com livros para o café -, foi inundada do que se chamava então de «realismo mágico» transportado via marítima para a Europa com origem nas pampas, nos sertões e nas altas montanhas na América do Sul. Levámos shots intermináveis desse realismo mágico através de García Márquez, Juan Rulfo, Alejo Carpentier, Cortázar, Borges, o palerma do Vargas Llosa, o vaidoso do Carlos Fuentes e a lista não acabará certamente por aqui. Não que não gostássemos de os ler. Mas a verdade é que tanto realismo mágico chocava com as tristes vivências portuguesas em forma de recuperação acelerada. Que se lixe. Foi-se o realismo mágico tal como veio. Teria ficado algum resto da tal constelação mágica que sobrevoou as Américas meridionais? É possível e aí teremos Fernanda Melchior como uma feliz debutante tendo conseguido desde a sua publicação em língua inglesa vários prémios e, na nossa língua, o dos grande jogos florais das Correntes D'Escritas 2024. Fernanda Melchior tem futuro garantido. Tal como Isabel Allende que reivindica para si tal estatuto, também ela medrada com vários prémios. O filão ainda mexe, portanto.

alc

terça-feira, julho 23, 2024

«Tudo Passa», Vassili Grossman

 

D. Quixote, 2013. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra
«Vassili Grossman é o Tolstói da URSS.» Quem o afirma é Martins Amis e logo a editora coloca na capa a frase bombástica, junto com a informação sempre oportuna que este é o autor de «Vida e Destino», uma obra inesquecível sobre a guerra de 1941 a 45 na então União Soviética e focada essencialmente no cerco a Estalinegrado pelas tropas alemãs. Li ambos os livros e fiquei-me por aqui quanto à obra deste autor. Talvez um dia volte a Grossman porque é uma referência importante e foi um repórter como possivelmente hoje não há, um jornalista que deve ser ainda um exemplo para milhares de repórteres de guerra que, infelizmente, estão em teatros de uma violência atroz sobre seres humanos. Pior é quando essa violência sem nome recai sobre civis sejam eles homens, velhos, mulheres e crianças. Vimos todos os dias pelas nossas casas dentro imagens dessas, repetidas sem fim. É evidente que Grossman não é o Tolstói da URSS, coisa nenhuma. Martin Amis e a editora quiseram assim nomeá-lo, mas estou em crer que das duas, três: ou Amis quis ironizar a obra de Grossman o que é mau, não o merecia, ou quis apoucar politicamente o estado soviético, o que é lá com ele, ou não sendo nenhuma destas hipóteses, não estava bem em si quando a proferiu e nunca leu Guerra e Paz.

Durante a leitura de «Tudo Passa» nota-se uma tentativa de romancear, através da personagem de Ivan Grigórievitch, uma situação que o escritor nunca experimentou: a de prisioneiro político do estado soviético, através das purgas de Estaline, principalmente a partir de 1953, data da morte deste e da tentativa de reabilitação de milhares de presos encarcerados durante dezenas de anos injustamente, alguns sem culpa formada e sob regimes duríssimos a nível correccional. O tema é esse. No entanto, convém dizer que Vassili Grossman nunca esteve preso, tendo sido o repórter oficial durante a II Guerra do jornal Estrela Vermelha órgão oficial do Exército Vermelho e segundo se pode constatar em «Vida e Destino» (proibido pelo KGB, em 1956) de uma coragem excepcional. Viu coisas, descritas nesse livro, que nenhum homem deveria ter visto. Ora, o exercício de Grossman em «Tudo Passa» sai infelizmente gorado, segundo a minha opinião: não está em causa a denúncia dos crimes de Estaline. Estão lá todos e inclusive a descrição minuciosa de como se faziam as denúncias, as causas de muitas dessas mesmas confissões, as gerações de comunistas, de operários  eliminados igualmente na guerra civil de 1918-20 (talvez os mais esclarecidos e que muita falta farão ao futuro governo soviético e sovietes), de social-democratas, socialistas-revolucionários, mencheviques, anarquistas e populistas de esquerda que perderam a vida. Segundo o autor, a partir de 1924, ano da morte de Lenine, e principalmente a partir de finais dos anos 20, as purgas iniciaram-se e logo em 1931 com o caso dos «médicos assassinos» atribuídos a judeus acusados de ligações aos EUA e aos imperialistas europeus, segundo as acusações. Também a morte de Kirov foi um argumento que levou à existência de um clima de perseguição aos «conspiradores» por todo o lado. Estaline vê assim, e a partir daqui, o caminho a abrir-se para a sua estratégia pessoal. Bastava para ele «arrumar» convenientemente todos os que estiveram na guerra civil entre o Exército Vermelho, liderado por Trotsky e os que, com algumas nuances, ainda eram fiéis à ideia do comunismo internacionalista, e os Brancos de Deníkin, Koltchak ou Wrangel. Quase todo o comité central bolchevique pereceu, então, às mãos de juízes alinhados com Estaline nos processos de Moscovo a partir de 1935: Bukarine, Zinoviev, Khamenev, Radek, etc...,etc..., até ao assassinato, pela GPU, de Lev Trotsky, em 1940, no México.

Onde falha então Vassili Grossman? Não é com a denúncia dos crimes de Estaline. Isso foi feito, e até descrito, num relatório «secreto» ao XX Congresso do Pcus em 1956 e até por Trotsky na sua «Revolução Traída». O que se nota em Vassili Grossman é um amargor que se sente a cada palavra escrita, em que usa e abusa do termo «liberdade» sem que lhe dê um conceito claro. Para ele, Lenine é tão culpado como Estaline e aqui comete um erro que é visível ainda nos dias de hoje e perpetrado por historiadores de extrema-direita, direita conservadora e liberais: o de confundir deliberadamente factores subjectivos com dados objectivos da História. Escrever que, pessoalmente, Lenine era uma pessoa interessante (que se mostrava bondosa e aberta a todas as opiniões) e politicamente um verdugo do pior, estendendo a estrutura do Estado para as diatribes de Estaline é um risco que retira alguma seriedade quer às causas objectivas da revolução russa, quer a qualquer análise séria sobre a edificação do estado soviético e a resistência contra a burocracia nascente que levou ao afastamento posterior quer dos camponeses, quer de largos estratos dos operários urbanos. Nota-se igualmente o horror da descrição das fomes dos camponeses na altura da colectivização dos campos por Estaline e pela nomenklatura nascente a que Vassili Grossman assistiu e há paginas que ultrapassam em muito a nossa imaginação mais escura sobre a humanidade e a possibilidade de a regenerar de todo, tarefa que, hoje, nos parece cada vez mais difícil. Mas, nem uma palavra para os êxitos relativos da NEP que Lenine apoiou e que Bukarine e Kamenev tentaram, sem êxito, seguir. Por outro lado, Grossman tem outro ponto fraco entrando por caminhos que pertencerão à psicologia e que pouco lugar terão na política, muito menos a filigrana em que assentou as variadas correntes comunistas enquanto puderam existir: Estaline era um asiático rude, brutal, dissimulado, enquanto Lenine, um estudante urbano, com laivos e conhecimento do pensamento europeu, bem-educado, mas seguindo a regra terrível de Hegel, «o objectivo não é nada, o movimento real é tudo!»

O livro apresenta estas fragilidades, é certo, mas não deixa de nos inquietar sobre a edificação de um estado totalitário que Arendt, mais tarde, veio a analisar com mais recursos.

Uma palavra para a tradução de Nina e Filipe Guerra: tudo muito bem, mas 86 notas de rodapé em 240 páginas? Algumas dessas notas dão-nos demasiados adjectivos e opiniões pessoais que os leitores dispensarão num tradutor: por exemplo, que a «Proletkult», um movimento claramente futurista dos anos 20, em que pontificaram dos melhores poetas e pintores russos (entre eles Maiakovsky), prejudicou a cultura na URSS, é para esquecer, não é?

alc

sexta-feira, julho 19, 2024

«Limpa», de Alia Trabucco Zerán

Alia Trabucco Zerán
Elsinore, 2023. Tradução de Isabel Pettermann
Já aqui falámos da jovem chilena Alia Trabucco Zerán quando lemos «A Subtração» e a força da sua narrativa. Arriscou-se bastante com este seu «Limpa». Começa por invectivar o/a leitor/a directamente, iniciando um diálogo aparentemente próximo com ele/a. Digo «aparentemente» porque esse diálogo em literatura é uma impossibilidade natural, como sabemos. Quem lê, não tem hipótese de dialogar o que quer que seja e muito menos com a autora. A literatura não é, nem poderá ser nunca, um diálogo. Era o que faltava tornar-se igualmente uma rede social. Mas não é só por causa dessa impossibilidade que se converte num monólogo por vezes arrepiante de Alia Trabucco Zerán para com quem lê «Limpa» e dirigido a nós. Há um desprezo calculado quando nos invectiva, como que a convidar-nos para que nos coloquemos no lugar dela, uma empregada subalterna numa casa da classe média de Santiago do Chile para onde Estela, a personagem principal, migra para abandonar a sua aldeia no sul pobre. Mas há outra inquietação neste livro e que constitui o segundo risco da autora: começa a narrativa com uma morte de uma criança que está sob sua protecção. Ou seja, sabemos desde início o que se vai passar através de uma narrativa curta, semeada de tensão e disrupções várias numa casa onde Estela serve durante sete longos anos. O sabermos de antemão a morte da criança não impede o crescendo de violência dentro dos limites da casa e o nosso interesse cada vez maior pela história que nos traz Alia T. Zerán. A escritora ganhou estes dois desafios e não é por acaso que a narrativa termina numa espécie de caos por que passou todo o Chile em 2021, como que a libertar-se da tensão havida durante anos e anos de liberalismo selvagem e de submissão dos mais fracos. Estela apaga-se numa dessas múltiplas revoltas de rua quando pretende voltar ao seu sul. 

Levanto um pouco o véu dando a palavra à personagem principal:
«As coisas, naquela altura, começaram a falar por mim. Não havia em cima nem em baixo. Antes nem depois. Sem palavras, o tempo fica sem começo, percebem? E é quase impossível contar o que não tem um começo. A água a ferver foi o meu relógio, o fogo foi fogo sem ter um nome e o pó continuou a delinear o contorno das coisas.
Não, não. Assim não me vão perceber. Tenho de tentar de outra forma.
Quantos mais dias passavam, mais o silêncio se afundava na minha garganta e mais palavras endureciam. Enchi-me de pensamentos e de perguntas novas. Se, por exemplo, as coisas se transformariam ao perderem os seus nomes, tal como se transformam quando os ganham. Dizer patroa, dona, dizer chefe, proprietária. Dizer empregada, babá, serviçal, criada. Ou não dizer, sabem? Isso, sem dúvida transforma as coisas.(...)» (pág.252)

alc

quinta-feira, julho 18, 2024

«Révolution», Enzo Traverso

 

La Découverte, 2022. Edição francesa. Traduzida do inglês por Damien Tissot.
Capa de Ferdinand Cazalis
Numa época de triste recuo histórico das esquerdas mundiais, nunca é demais um exercício de memória sobre as revoluções passadas. Não se pense, contudo, que este livro se baseia numa melancolia revolucionária de quem pensa que a revolução é letra morta, que numa sociedade de capitalismo de vigilância e nas tecnologias avançadas, as experiências insurreccionais (sejam elas revoltas ou motins e revoluções) estarão necessariamente votadas ao fracasso. É exactamente o contrário. Ler este livro é uma lufada de esperança para quem acredita que a vida, a verdadeira vida, residirá numa saída única da catástrofe anunciada a que o sistema de exploração sistemática dos recursos do planeta e do trabalho alienado humano nos votou. Ler este livro de Enzo Traverso é tão-só analisar, pelas suas 450 páginas que se lêem num ápice de entusiasmo, as grandes derrotas históricas, as vitórias «dos assaltos aos céus», o «tempo das cerejas» ou dos «enragés» e sans-culottes que só exigiam governar-se a si próprios. É revisitar a vitória libertária de 1917, também sob o prisma tanto dos derrotados de Cronstadt como, ironicamente, a de Trostsky. É conhecer melhor Marx e Engels, Blanqui e Fourier, Bakunine e Proudhon, Walter Benjamim, Fanon e Constant, Lenine, Estaline e Mao e tantos outros; foi com muita atenção que o historiador referiu a grande massa de revolucionários anónimos e que pereceram numa aura de heroísmo e de «santidade» nas barricadas de 1830 e 1848, já em desuso e criticadas em 1871, mas nem por isso menos simbólicas no Maio de 68 francês, na Alemanha e Hungria de 19 ou na Espanha em 1936. Ou revisitarmos igualmente os vitoriosos de Sierra Maestra, o Vietname, o Laos e o Camboja, a China da grande marcha ou Tiananmen de 90. O século XX foi farto em dar-nos essas experiências, muitas delas afundadas em sangue e em experiências que melhor fora não terem tido lugar. O que não retira uma vírgula, à vontade de mudança radical que é aposta numa revolução e à sua carga utópica. 
Por isso há uma impossibilidade clara de haver um compromisso entre revolução e contra-revolução seja ela legitimista, conservadora ou fascista. Esses perigosos compromissos dar-se-ão, como demonstra Enzo Traverso, na social-democracia e no socialismo democrático. Mesmo que, entre as duas guerras, se tentasse fazer essa síntese, foram todas votadas ou ao esquecimento, muitas delas junto com esses autores, ou ao fracasso. Essa força, a força revolucionária, nada tinha a ver com a autoridade legitimada das classes subalternas no poder, e a vontade ilegítima (porque pessoal) de um qualquer duce ou führer. A revolução, as revoluções, são sempre a consequência de causas de injustiças e de exploração insuportáveis para os seres humanos. Que elas sejam mais ou menos violentas ou que as instituições mudem de mãos sem um único tiro (lá vem o caso português de 74 e a Checoslováquia de 89!) as revoluções mostram sempre as suas particularidades e igualmente as suas idiossincrasias. Criticadas e temidas por muitos, até por aqueles que delas beneficiariam, retiram-lhes quase sempre as suas causalidades e as conjunturas históricas em que explodem. 

Vejamos ao que vem Enzo Traverso logo no início do livro na página 25: 

«O objecto deste livro é a revolução, para o melhor e para o pior. Ele não opera nenhuma selecção entre as boas e as más revoluções, distinção tão difícil quanto estéril visto que as revoluções não pedem para serem idealizadas ou diabolizadas: elas são experiências vivas que se transformam em permanência e cuja dinâmica é imprevisível. Mais do que um julgamento moral, uma idealização ingénua ou uma condenação intransigente, merecem uma compreensão crítica. É ainda a melhor maneira de compreender o seu significado histórico e transmitir a sua herança. Numa passagem célebre, Marx escreveu que as revoluções modernas ''não retiram a sua poesia do passado'', enquanto que Benjamin vê o seu motor escondido num desejo de redenção dos vencidos que não é mais do que ''o compromisso tácito entre as gerações passadas e a nossa''. É muito provável que as revoluções oscilem entre estas duas temporalidades: elas salvam o passado inventando o futuro, mas podem incluir os dois.»

Mais à frente:

«Contrariamente à maior parte dos trabalhos sobre as revoluções, este ensaio não consagra um capítulo específico à questão controversa da violência. Há várias razões para esta ausência, que não resulta de maneira nenhuma de uma estratégia de fuga. A mais importante prende-se com o facto de a violência revolucionária atravessar esta obra, de maneira explícita ou subterrânea, duma ponta à outra. Com algumas excepções as revoluções são erupções, pontos de viragem traumáticos. A violência pertence à sua estrutura ontológica. As revoluções pacíficas são excepções, não a regra e, em muitos casos, elas não não mais do que arautos de explosões do futuro. Em 1974, a «revolução dos cravos» em Portugal foi pacífica porque foi desencadeada por uma parte do próprio exército e se, quinze anos mais tarde, as «revoluções de veludo» na Europa central se desenvolveram sem efusão de sangue, é porque as forças repressivas foram provavelmente neutralizadas na URSS. (...) 
A segunda razão pela qual esta obra não conta com um capítulo sobre a violência é mais especificamente historiográfica. Os historiadores conservadores escrevem à maneira de promotores, que estigmatizam as revoluções não como uma, mas mais especificamente, a fonte do totalitarismo moderno. Eles repartem-se em geral em duas categorias: de um lado os apologistas astutos do fascismo, do outro, os pregadores de uma sabedoria política solidamente amarrada aos postulados do liberalismo clássico. (...)» 

«Assim, esta obra junta fragmentos intelectuais e materiais dum passado revolucionário impulsivo e bastante esquecido, com o fim de re-articular uma composição com sentido, elaborada por imagens dialécticas: locomotivas, corpos, estátuas, colunas, barricadas, bandeiras, sítios, pinturas, pósteres, datas, ruas singulares, etc. De uma certa maneira, os conceitos, eles próprios, são tratados como imagens dialécticas, na medida em que emergem nos seus contextos próprios, como as cristalizações intelectuais de necessidades políticas e do consciente (ou do inconsciente) colectivo. (pág.31).

Um livro que devemos ter sempre em conta e nunca desfazê-lo num alfarrabista, até pelas imprevisibilidades várias que podem vir a existir no futuro. Sabe-se lá.

alc

sexta-feira, julho 12, 2024

«A Subtração», de Alia Trabucco Zerán

Elsinore, 2024. Tradução de Isabel Pettermann
O Chile está cheio de fantasmas. Desde o 11 de Setembro de 1973, este país acompanha-me num exemplo demasiado tangível sobre o horror do fascismo e do que é capaz como regime em grau de eliminação em massa de homens e mulheres que, de alguma maneira, pretendiam uma sociedade mais justa. Foi o que aconteceu com o golpe de Pinochet e da Junta Militar que o conservou no poder durante perto de 15 anos. Vi, antes e depois do 25 de Abril de 1974, muitos refugiados a chegarem cá, desenraizados, alguns com uma tristeza irrecuperável que lhes levou literalmente a vida. No próprio dia da nossa libertação do fascismo salazarista e marcelista a experiência do golpe chileno sobressaltou-nos logo de manhã, porque não queríamos acreditar que era um golpe para repor a democracia e acabar com a guerra colonial. Ainda por cima, os capacetes dos soldados portugueses nos camiões que subiam a Lourenço de Azevedo, ao lado da Sereia, eram incrivelmente parecidos com os dos soldados chilenos. Ainda me lembro como, cautos e algo apreensivos, escondemos os comunicados de mobilização estudantil para o 1º de Maio, no jardim, sob uns arbustos. O nome de Kaúlza surgia-nos até percebermos o alcance libertador naquela mesma manhã. O Chile teve a ver com isso, digo-o sem grandes problemas em errar.

Ora, este livro traz-nos duas grandes novidades do Chile contemporâneo: Alia Trabucco Zerán, nascida em 1983, uma escritora de uma nova geração, essa que nasceu de pais perseguidos, torturados, presos sem culpa, desaparecidos e mortos em valas comuns e que não esquece 1973. Para que os assassinos não se sintam totalmente incólumes dos seus crimes, as gerações seguintes farão, como prova este livro, as resenhas necessárias para que o mundo não os esqueça. E aos seus cúmplices também, visto que a libertação de 1988, referida no livro, não os levou definitivamente a tribunal e Pinochet morreu na cama; a outra novidade é a qualidade literária de «A Subtração» (infelizmente temos o AO90 a chatear um bocadinho) que é uma verdadeira surpresa na escrita de Alia Trabucco Zerán. 

O título do livro é mesmo um processo de subtracção. De mortos, principalmente. De inumações e exumações, como se refere à de Neruda. Nem os mortos ainda têm descanso no Chile de hoje. Sucedem-se as valas comuns, as descrições dos verdugos que torturaram desaparecidos, a procura dos pais que ainda restam e têm forças para identificar as valas comuns onde poderão estar os seus filhos e filhas; também os hangares do aeroporto de Santiago cheio de caixões ainda não reivindicados (haverá alguém, ainda?) de exilados que preferiram deixar, nos seus países de acolhimento, uma última vontade de serem enterrados ou cremados no Chile. E sobre a cremação, ou a falta dela, em toda a narrativa cai uma chuva fininha de cinza, oriunda de um vulcão da cordilheira que nos faz aproximar ainda mais de uma realidade obscura e pesada, sufocante que hoje se vive naquele país com memória viva: 

«... é melhor ter mortos obedientes, preparados para atravessar em fila indiana a cordilheira e para que eu [Iquela, a personagem principal] os subtraia às mãos cheias; menos três, menos seis, menos nove mortos que tenho de subtrair e depois contar separadamente cada um dos seus ossos, sim, embora para mim tantos ossos sejam uma confusão. Incomoda-me a quantidade de mortos de Lisboa e da Catalunha, de Leninegrado ou Estalinegrado, porque no pretérito imperfeito viajaram para o Chile  e não chegaram, não chegaram, por isso tenho de me acalmar e respirar fundo, inspirar e reter o cheiro e a calma, embalsamar a calma com formol e só depois atravessar a cordilheira, atravessá-la e trazer comigo a própria morte...» (pág.306 em ebook de 345)

Não termino esta ficha sem dar-vos a conhecer um dos melhores momentos que este livro nos deu na percepção do que são os efeitos do LSD com uma particularidade: é Paloma, uma alemã filha de uma exilada chilena que morreu com um cancro, e de pai alemão, que «subtraiu» essa droga na clínica onde aquela faleceu. A metáfora é essa: para esquecer a morte, recorre-se à parafernália de alívio da dor através de substâncias alucinogénias (que também eram usadas pelos torturadores sobre as vítimas antes de as lançarem ao mar de helicóptero). Nem Burroughs ou a literatura beat (daquela que conheço) nos dá essa sensação de verosimilhança que esse capítulo nos empresta. Sobre as características psicológicas das personagens não acrescentarei muito. Só direi que elas são completamente livres. É a vingança máxima deste livro.

alc

sexta-feira, julho 05, 2024

Jornal Mapa 42 nas ruas!

A solidariedade que se possa impor ao racismo interessa-nos mais do que o dó ou a caridade. E disso damos conta numa grande reportagem feita com migrantes que estão há mais de um mês acampados nos Anjos, em Lisboa, pessoas que conseguiram passar pelos poros das cada vez mais violentas fronteiras externas da UE. As lutas pelo território continuam também a interessar-nos mais do que as eleitorais e, mesmo saídos dum desses exercícios, decidimos lançar um olhar à «voragem energética» que a nova vaga industrial trouxe para Sines e também para as ocupações, despejos, resistências que se dão em tecido mais urbano.

Tudo como cama para um composto que possa ajudar a criar uma vida de outro modo, como nos lembra Carmen Staats. Uma vida que, para ser atingida, necessita de lutas ecológicas pensadas também a partir dos Soulèvements de la Terre, um movimento nascido em 2021 numa assembleia da ZAD de Notre-Dame-des-Landes (França) na qual participaram duzentas pessoas de diferentes coletivos de agricultores, ambientalistas, sindicais e autónomos. Interessa-nos ainda relembrar o Unabomber mais do que o Manuel Fernandes, ou Varela Gomes mais do que o Camões, e apoiar o esforço financeiro da Disgraça mais do que o do crescimento orçamental para a defesa.

Jorge Valadas, continua a iluminar-nos com o seu luar que, desta vez, nos deixa ver uma América onde «o sonho» se desfez e onde a pobreza branca também se generaliza. A série «25 de Abril – outros 50 anos» continua neste número, permitindo um olhar para essa espécie de turismo revolucionário que foi a vinda de muita gente de fora do país para participar na revolução, nas palavras de Joëlle Ghazarian.

Tudo isto e ainda outras notícias, crónicas, entrevistas, poesia, literatura, ilustração e BD, no número 42 do Jornal MAPA, que podes adquirir em qualquer dos pontos habituais de venda ou, melhor ainda, assinar, ajudando assim à continuação sustentada deste projeto voluntário de informação crítica.

quarta-feira, julho 03, 2024

«Novo Iluminismo Radical», Marina Garcés

 

Orfeu Negro, Out. 2023, Tradução de Helena Pitta
Conheci brevemente a filósofa catalã Marina Garcés em 2010 quando acompanhou Santiago López-Petit nas II Derivas de Maio que a editora organizou sob o tema «Com uma Faca nos Dentes: Educação, Revolução, Realidade». Aí, Santiago López-Petit apresentou o seu livro «A Mobilização Global, seguido de O Estado-Guerra», com tradução e prefácio de Rui Pereira, que a Deriva publicou. Ambos pertenciam ao grupo de pensamento «Espai en Blanc» sediado em Barcelona. O Ípsilon, do Público, entrevistou-a há umas semanas devido à publicação deste livrinho pela Orfeu Negro. Não cheguei a ler. De qualquer modo, as intervenções que Marina Garcés protagonizou no espaço do então Esmae do Porto, onde decorreram as II Derivas de Maio já apontavam para claras alternativas ao capitalismo e à (sobre)vida.

Seja como for, «Novo Iluminismo Radical» é composto por intervenções em conferências que, penso, foram obviamente reescritas pela autora na edição deste livro, de modo a ajustá-las à expressão escrita. Num mundo como o que observamos e sentimos na pele, hoje, Marina Garcés arrisca-se a ter razão na descrição e nas metástases que o corroem. Como diz Marx, que ela cita também, descrever o mundo todos os filósofos o fazem, transformá-lo é do que necessitamos. E quando falo em «razão» o termo foi usado propositadamente, como que a dizer ao que vem. Voltar a Kant? Nem tanto assim, mas voltar talvez ao Kant crítico de Kant, ao Hegel crítico de Hegel, ao Voltaire e a Rousseau, críticos igualmente deles próprios. A receita, não sendo nova e não constituindo qualquer novidade em si, contém um conceito entretanto perdido nas sociedades pós-pós-modernas, a que Garcés chama de «condição póstuma», em que o passado (defendido pelos saudosistas e retrotopistas que Baumann já tinha identificado) e o futuro são uma e a mesma coisa. Interessante é referir-se a Chernobyl como marca deste presente através da nobelizada Alexandra Alieksevitch quando afirma que as imagens daquela catástrofe não indicam claramente se é o passado ou o futuro. 

Sabemos igualmente que a crítica ao Iluminismo já foi elaborada pela esquerda nomeadamente desde 1949, com Adorno e Horkheimer, ou Braudillard, Agamben e outros, mas Marina Garcés propõe-nos ir mais longe, partindo do princípio que é possível um outro mundo que falhou todas as utopias a que se propôs levar a cabo, como, e cito, o anarquismo, o socialismo e o comunismo. O que ela vê de interessante e revolucionário é a luta pela vida digna, por um decolonialismo horizontal e universal, a crítica do homem branco, imperialista e colonialista, racista e eurocêntrico, ocidentalizado, patriarcal. Afirma mesmo que os verdadeiros revolucionários, nestes tempos sombrios e violentos, são os que salvam vidas no Mediterrâneo ou em Gaza, ou onde há guerras, valorizando a Vida que entretanto se volatilizou na educação e na formação dos homens actuais. Diz ela no seu Preâmbulo:

«O mundo contemporâneo é radicalmente anti-iluminista. Se, em 1784, Kant anunciava que as sociedades europeias de então eram tempos iluministas, hoje podemos dizer que estamos, em todo o planeta, em tempos de anti-iluminismo. Ele usava o termo com um sentido dinâmico: o iluminismo não era um estado, era uma tarefa. Nós também: o anti-iluminismo não é um estado, é uma guerra.
As faces desta guerra anti-iluminista são muitos e multiplicam-se todos os dias. No domínio político, cresce uma apetência autoritária que faz do despotismo e da violência uma nova força mobilizadora. Podemos chamar-lhe populismo, mas esse é um termo confuso. Do que se trata é de um novo autoritarismo que permeia toda a sociedade. No plano cultural triunfam as identidades defensivas e ofensivas. A cristandade branca e ocidental refugia-se nos seus valores, ao mesmo tempo que se desencadeia uma revolta antiocidental em muitas partes do mundo, mesmo por parte do pensamento crítico ocidental, que rejeita a sua própria genealogia.(...)»

Partindo da premissa que hoje é o tempo onde tudo se acaba, tudo morreu ou está em vias de morrer literalmente, a nossa espécie e um planeta feito à nossa medida, Marina Garcés descreve onde se encontram esses perigos e aponta como o alfa e o ómega da morte programada o capitalismo, o pós-humanismo que lhe está associado e a inteligência «delegada», num mundo cada vez mais ignorante e estupidamente indiferente, o que é distinto do conceito socrático do «não-saber» como forma inicial de atingir a «emancipação pelo saber». Baseada em Agamben e Antonio Negri afirma:

«Actualmente, a biopolítica está a mostrar o seu rosto necropolítico: na gestão da vida, a produção de morte já não é vista como um défice ou excepção, mas como normalidade. Terrorismo, populações deslocadas, refugiados, feminicídios, execuções massivas, suicídios, fomes ambientais... a morte não natural não é residual ou excepcional, não interrompe a ordem política; colocou-se no centro da normalidade e capitalista e das suas guerras não declaradas.(...)» 

A descrição de Marina Garcés, até agora, não constitui novidade por aí além na crise do planeta e do capitalismo global que lhe é inerente. O mais interessante do livro são as suas Cinco Hipóteses no ponto 3, «Humanidades em Transição». Fiquemos pela Hipótese 1 de ultrapassagem do capitalismo por essa humanidade em transição e isto no campo da educação e do projecto educativo actualmente em curso por todo o mundo:

«O projecto educativo que o capitalismo actual desenvolve situa-se nesta moldura epistemológica. A escola do futuro já começou a construir-se e não está a ser pensada pelos estados ou pelas comunidades, mas pelas grandes empresas de comunicação e pelos bancos. Não tem paredes nem muros mas plataformas online e professores durante vinte e quatro horas. Não será necessário ser-lhe excludente, porque será individualizadora de talentos e de percursos de vida e de aprendizagem. Praticará a universalidade sem igualdade: uma ideia na qual temos de começar a pensar, porque há-de ser, se não o é já, a condição educativa do nosso tempo.(...)» 

E assim por diante passando os olhos pelas outras quatro hipóteses finais de suposta transformação da humanidade «em transição». Não tenho o direito de discordar inteiramente de Marina Garcés, mas tenho-o em ser menos optimista que ela. Custa-me acreditar numa exaustão universal contra o(s) Estado(s) e na criação de bolsas autónomas e libertas da escravatura do trabalho cada vez menos pago e trabalhadores em depressão que, para fugir dela, criam contra-alienações. A História prova-nos que é numa situação de escravidão com um bem-estar pouco digno, é certo, mas ainda assim bem-estar, que não há oportunidade de revolta e muito menos de hipóteses revolucionárias que Marina não aborda, assim como só muito superficialmente toca na questão da produção alienada e do lucro e valor. É que isso tem tudo a ver com as hipóteses futuras de uma insurreição mundial, mesmo que a vejamos muito longínqua e os gérmenes tenham aparecido e desaparecido muito depressa. Mas que existem, existem. Por agora, resistiremos ao neofascismo mundial vindouro, esse sim, igualmente e violentamente anti-iluminista como o foi contra a modernidade do século XX, o que retira, por recuada, qualquer hipótese de luta insurrecional, mesmo que seja para nos salvarmos como espécie. 

Mas a Orfeu Negro tem razão quando apresenta esta colecção onde se insere este livrinho: «Microleituras - Efeito prolongado».

alc

segunda-feira, julho 01, 2024

«O Caderno Proibido», Alba de Céspedes

 

Alfaguara, Maio de 2024, Tradução de Ana Cláudia Santos

Livro datado de 1952 e um dos mais importantes de Alba de Céspedes, pelo que li sobre ela. Antifascista, conheceu as prisões de Mussolini e foi fundadora da revista Mercurio. A autora opta por uma epistolografia imaginada em torno de um diário escrito em sobressalto e cuja personagem, Valeria, esconde da família. Um género que se vai perdendo com o tempo, mas que acolhe sempre uma grande intimidade, cumplicidade com o leitor e lança a denúncia de um quotidiano do que julgamos ser uma simples dona de casa romana, na Itália do pós-guerra. Não é só um quotidiano marcado pelo tratamento dos outros, da casa, isso seria muito pouco; a verdadeira perturbação deste livro vem da emergência do desejo de alguém que é sistematicamente secundarizado c obrigado a marcar o ponto das obrigações de uma família pequeno-burguesa em que Valeria é tratada de «mãe» pelo marido, como para sublinhar a sua condição reprodutora, e ostracizada pelos filhos adolescentes que a observam como uma «velha» de 43 anos, salva de qualquer arrobo amoroso ou de fuga daquela vida de cansaço que é, paradoxalmente, a sua libertação:
 «Devo reconhecer que, se calhar, a determinação com a qual me defendo de qualquer possibilidade de descansar não é senão o medo de perder esta única fonte de felicidade que é o cansaço.» 
A perturbação deste livro extraordinário reside aí. Mas não só. Somos obrigados, na sua leitura, a pôr tudo em dúvida em relação a nós próprios e à nossa própria família e eis onde Alba de Céspedes triunfa neste «Caderno Proibido». A crueldade e a afectividade de que se alimenta um grupo familiar de personalidades obviamente distintas e que se magoam, mais do que provam o seu amor senão através de glosas e metáforas maldosas, daquelas que deixam um rasto de mágoa e de ódio tantas vezes camuflado:
«Tenho de destruir o caderno, destruir o diabo que nele se esconde entre cada página, como entre as horas da vida. À noite, quando nos sentamos todos juntos à mesa, parecemos claros e leais, sem insídias; mas sei agora que nenhum de nós se mostra como verdadeiramente é, escondemo-nos, camuflamo-nos todos, por pudor ou por despeito.»
A questão que antes se colocava, após o conhecimento atento de todo o diário de Valeria, a tal «velha de 43 anos» é exactamente aquela que perturba quem o lê. Valeria tem um caso fora da família que não chega a ser consumado, mas intenso. E damo-nos a pensar que atrás da cozinha em que cada mãe nossa, porque o pai nos anos 50 e 60 tinha todo o direito a ter «casos» ou amantes, se deslocava para fazer a comida, ir para o trabalho, vir à pressa, passar a ferro, aconselhar os filhos e vigiá-los, teria ela, perguntar-se-á, o direito de amar alguém nos intervalos da sua vida de cansaço? Teria ela, a «mãe», a veleidade de sonhar com uma fuga de casa com um amor dissimulado e que se desenhava um desejo sexual óbvio por outra pessoa fora da família? E teria ela o direito de nos odiar, por vezes? De nos olhar como empecilhos para uma liberdade coartada? Por mim, tenho uma resposta clara. Mas que este livro nos perturba, sem dúvida que sim. 
alc