segunda-feira, junho 28, 2021

«Afastar-se - Treze contos sobre Água», de Luísa Costa Gomes

 

«Afastar-se - Treze contos sobre Água», de Luísa Costa Gomes
D. Quixote, Maio de 2021
Estes contos de Luísa Costa Gomes são para se ler devagar. Como os miúdos que guardam a sobremesa para o fim e fazem inveja aos outros esperando que eles a esgotem e, depois, saboreando e sorrindo com a vitória ganha a ferros, não fosse a tortura de não abocanharem logo tudo.

Desconfio sempre de quem me diz que um livro era tão bom, tão bom, que se leu logo de uma assentada. Se é bom é para o deixar estar connosco o mais tempo possível. Assim fiz eu com Luísa Costa Gomes e este «Afastar-se» cujo tema central é a água ou a falta dela. Ou então transformada em humidade e suor como nos narra o conto «Gandembel» sobre um aquartelamento na Guiné em 1968 em plena guerra com o Paigc. Já li muitos contos e narrativas sobre a guerra colonial, mas este é muito real. Ali, sente-se como se perdeu a guerra na Guiné de Spínola e Shultz. A impotência dos soldados e o perigo sempre à espreita com bombardeamentos diários durante meses a um aquartelamento longe de tudo, com os soldados a viverem em tocas.

O primeiro conto trata de Giulia, feitio muito dela e senhora do seu nariz, que teima em atravessar a nado o Helesponto, ligar à força de braços a Europa à Ásia, tal como fez Lord Byron. Já «As cinzas de Pirandello», o velho dramaturgo fascista, que deu instruções precisas de como deveria ser o seu funeral é inesquecível: ao querer ser incinerado provocou tropelias tão pitorescas numa Itália pós-guerra que multiplicou os funerais até aos anos 60; não podemos deixar de rir abertamente ao ler as palavras, expressões e enredo de Luísa Costa Gomes apostas neste conto.

É evidente que não vou aqui contar tudo, não é para isso que faço esta ficha de leitura. Faço-o, para os amigos que, como eu, gostam de literatura e reconhecem em certos autores a recusa do fácil e do mainstream, por assim dizer. Que sabem, usam e respeitam o português, não deixando de inventar criteriosamente palavras excepcionais de um grande gosto pessoal. É por isto que escolho certos autores portugueses, entre os quais se encontra Luísa Costa Gomes. 

Queria, contudo, finalizar esta chamada de atenção para este livro com um formidável pedaço do melhor que há em literatura contemporânea em «Sorriso» sobre a vulgaridade de um tipo que nada tem na cabeça (a não ser ele próprio). Vejam esta «peroração pós-prandial» de conversa fiada, envolta numa vulgaridade de subúrbio rico:
 «- Um fantasma não tem de ser necessariamente irreal. Pode ser tão real como tu ou eu. Eles têm é diversos graus de realidade, de densidade cara Anna, e eu diria que, em média, o seu grau de realidade depende sobretudo da densidade que cada um de nós consegue atribuir-lhe. Há quem consiga criar fantasmas do nada, mas o melhor, penso eu, é ter uma base, uma espécie de primário, como na pintura. Se houver um primário, uma cor unida, que nos empape a tela, a partir daí é mais fácil criar uma imagem. Ela é segura, é duradoura. Há quem considere que ver fantasmas é sinal de loucura. Mas na verdade todos somos fantasmas uns dos outros. (...)»

Perceberam a quantidade incrível de lugares-comuns? Quem já não teve um, ou uma, colega assim pois que atire a primeira pedra. É que se consegue transmitir o enfadonho de um discurso assim. É evidente que Nino (assim é o seu nome) não se interessa por Anna, porque por ele estas palavras chegam-lhe para afagar o seu próprio ego. Ela pôs-se a andar, como é evidente...que se faz tarde!

António Luís Catarino