Quis o acaso saber que existe uma escola secundária com o título deste livro de Ferreira de Castro. Situa-se na Covilhã e chama-se mesmo assim: «A Lã e a Neve». É um livro extraordinário e, ao contrário do que muita gente faz, não o consigo catalogar numa corrente literária, nomeadamente ao neo-realismo que é onde colocam mais o autor. É tão ridículo esse exercício como dizer que Tolstoi ou Steinbeck são realistas, neo-realistas, ou realistas socialistas. Não tem sentido. Estamos perante um escritor que, lido com atenção, é um hino à língua portuguesa. Trata as palavras com um carinho sublinhado em verbos, vocativos e expressões que não são extemporâneos, antes reflectem uma vasta cultura adquirida em inúmeros pontos do mundo da língua portuguesa e no estrangeiro.
E não venham com a «sintaxe rural», agora trazida a terreiro por um linguista, pondo esta expressão na boca inquieta de José Cardoso Pires. Antes pelo contrário, em «A Lã e a Neve»: aqui trata-se do mundo proletário na Covilhã de uma transformação gradual dos camponeses expulsos da terra que nada lhes dá, para um futuro operário cheio de promessas vãs de uma vida melhor. O que encontram na cidade é uma deslocação social, uma exploração desenfreada num país pequenino, repressor para com os mais fracos e pelos que passam fome. A consciência de classe a nascer como um remédio às humilhações constantes dos poderosos, ao roubo da força de trabalho operária premeditado e planificado até ao milímetro nas fábricas têxteis.
O final do livro é arrepiante: um velho operário esperantista, vegetariano, vagamente anarquista, com um grande ardor grevista e com reivindicações de classe, remetido para um lar onde se ganhava 20 escudos por semana (por semana!) e despedido por lhe faltar as forças, morre. O cortejo fúnebre dos operários é enorme e entope o trânsito até ao cemitério. O diálogo que se estabelece entre o patrão e motorista que vê o seu jantar de negócios atrasado é, ou deveria ser, um exemplo da melhor literatura do século XX. Infelizmente não é, nem chegará a ser porque os tempos não lhe fazem justiça, a Ferreira de Castro. Bem pode a escola secundária da Covilhã ter o título do livro. Mas de que vale isso, se a biblioteca dessa escola terá, eventualmente, «A Selva» como único exemplar e os alunos desconhecerem totalmente o autor? E esse trecho é só o exemplo que agora me ocorre; «A Lã e a Neve» tem momentos de enorme emoção e de uma grande densidade psicológica das personagens seja em acções individuais, íntimas ou em abordagens sociais de confronto e solidariedade. Isto leva-me a pensar, com alguma tristeza, que a literatura portuguesa está ser tratada de uma maneira completamente indigente pelas instituições educativas como o ME e o Plano Nacional de Leitura. A boa literatura é apartada em favor do fácil, muito fácil ou do «divertido», contemporâneo da balbúrdia e ignorância pós-moderna.