quinta-feira, março 25, 2021

Quem com faca nos dentes anda, a bom porto há-de parar. A poesia de António José Forte

António José Forte. Foto de Aldina

Poeta sem sombras, luminoso, de índole revolucionária, conhece-se pouco de António José Forte não fossem a Parceria A.M.Pereira, a Hiena, a &etc e a Antígona do amigo Luís Oliveira, que agora publicou a sua poesia «completa», mais Cesariny, Virgílio Martinho, Eugenio Castro e Aldina a darem-lhe a visibilidade merecida. Tal como Dacosta, Forte esteve uma interregno de dezenas de anos sem nada publicar, o que não o impedia de escrever. E só o facto de saber que escrevia abre todo um leque de possibilidades de virmos a conhecer melhor este poeta surrealista do Grupo do Café Gelo. Aliás, escreveu um texto belíssimo sobre os cafés de Lisboa onde se lhe refere. Herberto Helder prefaciou «Uma Faca nos Dentes» e Luís Oliveira fala do contacto que com ele teve em Santarém e Lisboa, quando António José Forte calcorreava o país com as Citroën das bibliotecas volantes da Gulbenkian. Helder coloca-o como um dos grandes poetas «Como muita poesia surrealista ou afim, a de Forte molda-se num corpus de fragmentos soldados por pontos magnéticos de analogia imaginística ou verbal, por enlaces rítmicos: uma colagem orgânica de fragmentos.»; palavras, expressões feitas de fragmentos e colados no poema que atinge o(s) sentido(s) «num continuum, sempre perfeito, denota[ndo] a ágil intuição dos recursos de escrita, uma oficina atenta.» (HH). Mas António Cândido Franco, num excelente e interessante texto sobre a publicação castelhana de «Uma Faca nos Dentes» vê-o deste modo: «Trata-se de um poeta invulgarmente coerente, que deixou uma obra breve mas pontuada de sinais vivos e imperecíveis - e não tanto pela grandeza da arte, que lhe foi quase indiferente, mas pela potência ingénita do sopro. O que é admirável no seu verbo é a força da imprecação, a destemperada fúria da voz, a altivez do tom profético e apocalíptico a denúncia e o combate.» (Revista A Ideia, nº90,91,92,93, pág. 314).

Já, nós mesmos, queremos então apontar-vos a «destemperada fúria» de António José Forte com um excerto de «EXPOSIÇÃO DADA» direccionada para os falsos avestruzes que pedem emprestados o nome DADA para servirem à mesa de divindades académicas com que se alimentam de tempos a tempos em realizações que têm tanto de basbaque como de ridículo. 

Ora tomem lá do Forte:

EXPOSIÇÃO DADA

(...) Se houvesse cadáver DADA, mas não há, o que vai chegar agora aí embalsamado seria um falso cadáver. Se houvesse cadáver insepulto de DADA, cheirava mal num continente inteiro. Se houvesse cadáver de DADA enterrado em vala comum, havia ainda hoje fogo-fátuo que dava para iluminar uma cidade - exemplo, Lisboa. Como não cheira e tudo permanece muito às escuras, segue-se que não há cadáver de DADA.» («Uma Faca nos Dentes», Ed. Antígona, 2017, pág. 124)

DENTE POR DENTE

«Entrar de costas no festival das letras, abrir passagem a golpes de fígado para a saída do escarro. Se não temos saúde bastante sejamos pelo menos doentes exemplares.» (Op.Cit., pág. 47)

RESERVADO AO VENENO

«...é um dia perfeitamente para cães...» (Op.Cit., pág. 34)

QUASE 3 DISCURSOS QUASE VEEMENTES

«Não estranheis os sinais, não estranheis este povo que oculta a cabeça nas entranhas dos mortos. Fazei todo o mal que puderdes e passai depressa.» (Op. Cit. pág. 27)

E assim se faz forte ainda incompleto.

António Luís Catarino


quinta-feira, março 18, 2021

A palavra e a acção. Um trecho de Herberto Helder

 

Desenho de Herberto Helder em post-it numa esferográfica Caran d'Ache

«(...) E já ouvi que a palavra não traduz a acção. Se a não traduz, como pode superlativamente «ser» a acção? Rimbaud despede-se, e sobretudo toda a grande jerarquia da palavra geradora desde - que sei eu? - a Kabbalah às, remontando, mais eminentes cosmogonias. Resta o jogo?
Afinal o poeta intenta uma forma onde a história se consubstancie e se transmude e miticamente ultrapasse os poderes dispersivos. Não sendo a história nem efectivando nela a revolução, a poesia refere-a no âmbito porventura incontingente, permanente, desconto feito às morfologias.
Para quem se não satisfaça no ludismo nem esgote  o empenho do verbo nas gramáticas, e nenhuma alta poesia nelas se esgota, o lugar de passagem e o lugar hipotético de chegada serão sempre dramáticos. Toda a poesia é insolúvel. Não lhe falta ou sobra do mundo aquilo que a embaraça. Trata-se do vácuo criado pela história no seio do mito. O silêncio não traduz apenas a renúncia, mas a ruptura entre mundo e linguagem. O que não se exprime fatalmente pela ausência do dizer. Não será essa mesmo uma condição do dizer? O paradoxo reside nessa ambição unitária no meio da descontinuidade e fragmentarismo de tudo: o mito, a história, o eu. (...)»

Herberto Helder, em «Nota Útil» a «Uma Faca nos Dentes» de António José Forte, Antígona, páginas 17 e 18


Scketch. 100 anos do PCP. Largo da Portagem, Coimbra, 6 de Março de 2021


 100 anos do PCP. 6 de Março de 2021. Largo da Portagem, Coimbra


domingo, março 14, 2021

«A Ideia» em número quádruplo (90,91,92 e 93). Cruzeiro Seixas, Luiz Pacheco, Mário-Henrique Leiria, surrealismos & Florbela Espanca, espanca.

 

Uma revista incontornável para quem prefere o debate de ideias ao consumo fácil do entretenimento. António Cândido Franco e a comissão editorial constituída por João Freire, José Maria Carvalho Ferreira e Paulo Eduardo Guimarães apresentam-nos neste número quádruplo (90,91,92 e 93) um Cruzeiro Seixas algo diferente do que estamos habituados pelas apresentações académicas habituais no artigo «Rasgos, Homenagens & Outros Sinais» uma excelente retrospectiva do pintor/poeta surrealista. Estamos a falar de pessoas que o conheceram pessoalmente e que trocaram com ele cartas, ideias e lugares.

De resto, cartas inéditas de Mário Cesariny, uma «aproximação afirmativa à ''arte'' dos loucos», de Eugénio Castro, uma entrevista a Mário-Henrique Leiria, por Tania Martuscelli, autora que assinou o monumental estudo em três volumes daquele autor, um estudo sobre Luiz Pacheco de Ana da Silva e um artigo belíssimo de Henrique Garcia Pereira que talvez o tenha conhecido como ninguém na nocturna e lisboeta urbe, diríamos nós; Teixeira de Pascoaes é tido em conta como não poderia deixar de ser para uma revista que tem sedimentado, de número para número, o seu apego ao surrealismo e aqui à referência cesariniana de um surrealista antes do tempo. Tal como foi feito em números anteriores o desconcerto de ver Júlio Dantas com linguagem dada e Florbela Espanca, numa outra Espanca. Como diria Adília Lopes, Florbela espanca, espanca. Perspectivas oblíquas, pois. Mas inquestionavelmente interessantes de seguir e pensarmos que em poesia, tal como na literatura, tenham elas os rótulos com que as querem enfeitar, nem tudo o que parece é. Esta revista surpreende-nos sempre.

A ler, consultar e a guardar. Podem adquiri-la na Letra Livre, Snob, em Lisboa, Utopia, no Porto ou directamente à revista.

A Ideia toda:

REVISTA A IDEIA - 2020
Nºs 90/91/92/93
CENTENÁRIO DE CRUZEIRO SEIXAS

340pp.
Dezembro, 2020

GRUPO SURREALISTA DE MADRID & REVISTA
FLAUTA DE LUZ
MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA
LUIZ PACHECO
HENRIQUE GARCIA PEREIRA
GANDHI & A ANARQUIA
GIUSEPPE PINELLI & MILÃO 50 ANOS DEPOIS
CARTAS INÉDITAS DE MÁRIO CESARINY
SIMON WATSON TAYLOR
A RAINHA DE INGLATERRA
MIGUEL PEREZ CORRALES
ANDRÉS DEVESA
EUGÉNIO CASTRO & A ARTE DOS LOUCOS
ANTÓNIO TELMO & CARLOS CASTANEDA
TEIXEIRA DE PASCOAES & FLORBELA ESPANCA
ENCONTROS DOS BARDINHOS DE 2019
A TECNOLOGIA 5 G
MURRAY BOOKCHIN versus DAVID WATSON
OS COMEDORES DE FOGO EM ÉVORA
POESIA DE JESUS LIZANO

presenças & inéditos
Adalberto Alves, Amadeu Baptista, Ana da Palma, Ana da Silva, Ana Rita Fialho, António
Ferra, António José Queiroz, António Salvado, Bruno Silva Rodrigues, Carlos Baptista,
Carlos d Abreu, Carlos Diaz, Carlos Mota de Oliveira, Enrique Nogueras, Fátima Pitta
Dionísio, Fernando J. B. Martinho, Ferra// Aisa, Francisco Cardo, Gabriel Rui Silva, Guy
Girard, Isabel Mendes Ferreira, João Freire, João Prates, Joélle Ghazaria/i, José Emílio-
-Nelson, José Matutei Martins, José Pais de Carvalho, José Rui Teixeira, Júlio Henriques,
Hugo Gonçalves Silva, Luís de Barreiros Tavares, Luis Ma/a/el Gaspar, M. Ricardo de Sousa,
Mara Rosa, Margarida Morgado, Maria Estela Guedes, Mário Bui Pinto, Michael Lòwy,
Nata/t Schafer, Nicolau Saião, Paulo J. Brito e Abreu, Pedro Fernando, Pedro Martins, Pedro
Morais, Risoleta Pinto Pedro, Rui Sousa, Sílvia das Fadas, Sofia A. Carvalho, Sofia Santos.


desenhos, ilustrações & imagens
Almerinda Pereira, Ana da Silva, A/tabela Calatróia, André e Alice Montanha, António
Couvinha, Cruzeiro Seixas, Délia Vargas, Dominique Lahaume, João Francisco Vilhena,
João Prates, José Ma/a/el Rodrigues, Luis Manuel Gaspar, Luiz Pires dos Reys [Capa e
Contracapa], Manuel de Almeida e Sousa, Mara Rosa, Maria João Vasconcelos, Mário Rui
Pinto, Miguel de Carvalho, Rik Lina, Vasco Rosa.


Com dois suplementos: um de João Freire e outro uma antologia poética inédita de Dulce Pascoal


História da África, de J.D.Fage, com William Tordoff

 

Não deverá ser das melhores Histórias de África, mas é uma referência que julgo difícil de ignorar quando se quer estudar o continente africano e a sua riqueza histórica. Há, contudo, nesta obra algo que me fez pensar a razão de não ser estudada com mais profundidade a época que medeia entra o neolítico e o século XIV. Embora se aborde o tema, poder-se-ia ir mais além através das descobertas arqueológicas mais recentes e tentar descrever quer a economia, a sociedade e o sistema político que antevemos de enorme diversidade, consoante as regiões. 
O que se vislumbra nesta obra de J.D.Fage é a comodidade da investigação através dos acervos europeus quando se iniciou a expansão contínua para o continente africano estabelecendo quer feitorias, quer capitanias e fortalezas que constituíram uma das páginas mais vergonhosas que o mundo conheceu. Não só da escravatura falamos, e isso daria para muita tinta, mas também dos sistemas de exploração mercantil primeiro e capitalista depois, que redundaram numa rapina das matérias-primas de África para o comércio intercontinental em que este continente era a parte mais fraca do triângulo.
Desde o Império Romano que conhecemos relativamente bem o Norte de África e o Alto e Baixo Nilo (estes últimos, até de muito antes). Todavia, a África Oriental só a conhecemos ou pela historiografia indiana, árabe ou pela europeia, incluindo a portuguesa. Portugal que estará presente também na presença branca da África Ocidental e é quase só por esta historiografia que assenta a análise do livro. 
Podemos afirmar, portanto, que o livro apresenta mais dados concretos da História de África no século XIX e XX e quase sempre através do olhar ocidental. O que é pena, mas sempre há uma referência. 

Zizek: pós-pandemia, comunismo e «noli me tangere»! O senhor sente-se bem?

 

Por vezes penso no desconcerto que constitui ler Slavoj Zizek. Agora penso um pouco mais rasteiro: será que Zizek estará «bom da cabeça»? Passou-me esta ideia várias vezes pela minha, mas acedo que ele é um filósofo e que os filósofos têm todos o direito de se passarem da cabeça, sem quaisquer outros problemas que teria o comum dos mortais. Como, por exemplo, meter baixa no emprego e ficar sem quase metade do ordenado, complicações com a família, iniciar um processo de afastamento e disjunção da sociedade... essas coisas que, ao que se julga, 60% dos portugueses conhecem ou já conheceram na sua vida. Mas não se infira disto que não gosto de Zizek. Gosto de o ler, mas por vezes custa-me levá-lo a sério até por a sua prolixidade e de tanto tema tratar produz a imagem de um «enfant terrible» da filosofia e do pensamento contemporâneo. Mas o homem é incontornável.

Falemos um pouco dele antes de nos debruçarmos sobre o livro em questão. Define-se a si próprio com um «ateu cristão». Não me é difícil considerar uma pessoa nesse campo específico da espiritualidade actual. Não é por aí que coloco dúvidas, mas Zizek deve viver, ele próprio numa espécie de limbo interior em que não se vê uma resolução capaz, se é que a procura mesmo. Nem para os lados do materialismo, nem para o da espiritualidade (ele emprega mesmo esse conceito). Mas com o «Noli me tangere» de Jesus a Madalena, inicia uma pequena viagem, neste livro, pela pandemia que vivemos todos os dias, há mais de um ano e sem perspectivas de um fim rápido... para este vírus, ou para outros que hão-de vir. Zizek é um optimista, não o esconde, e vive bem com isso. Mas o excesso de optimismo também cansa as pessoas que o lêem, visto que o mundo pode caminhar exactamente em sentido contrário às suas teorias. Sim, ele vem com o Decameron de Bocaccio, escrito em tempos de peste e, já agora, embora o filósofo esloveno não o faça, poderia igualmente chamar os roaring twenties, para marcar o fim da guerra e da epidemia de 1918! Nada de novo aqui. Mas como Zizek se define, sem qualquer problema de maior e o que, aliás, mais me aproxima dele, é quando se afirma como «despudorado filósofo da subjectividade». Depois, ele explica o que entende por «agenciamento» e pela necessidade de «adoptar um ponto de vista inumano» como forma de compreender todos os actantes desse agenciamento planetário. Em segundo lugar, defende a acepção muito subjectiva de não ignorar as «crenças e valores», esse agenciamento religioso complexo de dogmas, instituições, práticas sociais e individuais e experiências íntimas onde nunca é dito o que seria bom dizer. Termina com uma frase terrivelmente provocatória: «É possível que uma prova científica de que Deus existe deixasse atónito o próprio crente»! Creio que não é necessário mais nada para definir um «ateu cristão», crença (!!) que tem os seus múltiplos acólitos nos tempos que correm. Com tendência para aumentar, diga-se.

Quero voltar, contudo, ao que penso que o optimismo de Slavoj Zizek se mostra mais desconcertante e que me levou à minha questão singela do filósofo esloveno estar, ou não, «bom da cabeça»: o comunismo. Encarar a epidemia deste coronavírus como uma janela de oportunidade para o comunismo, trata-se mesmo de excesso de crença e fé, seja ela marxista ou mesmo leninista. Zizek ataca todos os pensadores e filósofos, principalmente Agamben, por denunciarem as medidas desproporcionais dos estados face ao coronavírus, relativamente às liberdades e à nova escravatura do trabalho. A resposta do esloveno a estas preocupações onde se poderia esperar um brutal regresso à barbárie generalizada, ele contrapõe um receio maior: uma «barbárie de rosto humano», sem dúvida a pior de todas: perante o descontrolo dos estados, aceitarmos o genocídio dos mais velhos, dos doentes e dos fracos como de natural se tratasse. Optimista, Zizek? Mas é um receio que ele não crê que se venha a consumar.

O comunismo pós-epidemia que Zizek lobriga é este: «(...) uma versão daquilo que, na União Soviética, em 1918, se chamou ''comunismo de guerra''»; Na página 85, Zizek defende-se dos «ataques» a que foi sujeito depois de defender a «Barbárie ou Comunismo»: «De Alain Badiou a Byung-Chul Han e muitos outros, da esquerda à direita, todos me criticaram, ridicularizaram até, depois de eu ter sugerido repetidamente a chegada de uma forma de comunismo em resultado da pandemia de coronavírus.». Falando de uma cacofonia de vozes contra ele, reconhece que estas críticas se baseiam em que o capitalismo sairá mais forte e não o contrário. Penso que a onda generalizada contradizendo Zizek obrigou-o a tentar definir que comunismo será este: «(...) não é um sonho obscuro, mas simplesmente um nome para aquilo que já está a acontecer (...), medidas que já estão a ser consideradas e mesmo parcialmente implementadas. Não é uma perspectiva de um futuro risonho, mas antes de um ''comunismo de desastre'' como antídoto para o capitalismo de desastre. O Estado devia não só assumir um papel muito mais activo, organizando a produção de bens de que haja necessidade urgente(...)».

Não creio que um comunismo reaccionário como este que Zizek defende seja possível, ou sequer, plausível. Tantas questões se poderiam colocar e que não caberiam aqui. Mas é demasiado pouco para ser possível levantar hipóteses minimamente sérias para um projecto comunista. Coloca-se somente uma: por que razão o Estado, por si só e vendo-o em abstracto como Zizek o faz, abraçaria medidas comunistas? E a produção de bens? E quem faria o controlo dessa produção de bens?

António Luís Catarino

sexta-feira, março 05, 2021

100 anos: o primeiro manifesto de Julho de 1921

 A luta operária, determinada e motivada pelas humilhações constantes em que a quiseram remeter, causada pela exploração desenfreada do capitalismo que não poupava crianças, mulheres e homens foi uma marca do século XIX e dos inícios do século XX. Em Portugal, país de brandos costumes e eternos comedimentos, a classe operária soube erguer-se e dizer que não ao capitalismo e propôs-se lutar e resistir, num país medroso de insurreições, de uma religiosidade doentia e com um respeitinho atávico às hierarquias e aos chefes. Mais: conseguiu mostrar-nos um mundo novo. O comunismo surgiu como uma esperança para os produtores e a modernidade veio com os anarco-sindicalistas, sindicalistas revolucionários e finalmente, em 1921, com os comunistas organizados. O PCP nasceu aí. E a modernidade que os operários imprimiram à época é inesquecível e impossível de contornar por historiadores honestos. Em Julho de 1921 começava uma história de 100 anos. O incontornável manifesto podem lê-lo aqui https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4482255

António Luís Catarino

quinta-feira, março 04, 2021

Vinte anos depois, reviver Castelo de Paiva


Um estágio antecipado levou a Madalena, mãe da minha filha, nessa altura com um ano e meio, a Castelo de Paiva. Viagens difíceis para lá e para cá, resolvemos que eu me trespassaria definitivamente para a vila perto da confluência de três rios: o Douro, o Tâmega e o Paiva. Na brincadeira dizia que tinha ido viver na Mesopotâmia, em Entre-os-Rios. Adorei viver lá durante três anos antes de me fixar no Porto e, mesmo não sendo necessário dizê-lo, ainda hoje contacto com alunos do ensino secundário que acompanhei durante esses anos. Tornámo-nos amigos inesquecíveis. Até hoje.

O 4 de Março, domingo, dia em que a ponte Hintze Ribeiro soçobrou, foi o corolário de chuvas intensas que levaram quase três meses a cair. O Douro estava castanho da terra das margens arrancadas com fúria e com uma corrente fortíssima das suas águas. No sábado anterior passámos a ponte, em direcção a Penafiel, para comprar, no supermercado do costume, as coisas para a semana. Lembro-me de termos ido a um café e almoçámos por lá. Atravessámos a ponte pelas dezasseis horas de retorno a Castelo de Paiva.

O dia da véspera passou-se como um sábado normal, numa pequena vila. Discutia-se política, futebol, previa-se o tempo e desejava-se que parasse finalmente de chover, esperando que aparecessem uns raios de sol. O domingo que se seguiu foi diferente, sem dúvida. Ao fim do dia, pressentiu-se que alguma coisa não corria bem. As notícias sucediam-se e lembro-me de ouvir dizer que uma camioneta de pessoas em excursão às amendoeiras em flor em Trás-os-Montes tinha tido um desastre. Subitamente, nem rede de telemóveis, nem telefones ou televisão por cabo. Mas nunca imaginámos a extensão do drama que iria acontecer e que ainda só estava no princípio.

De manhã, ao sair com a minha filha para ir tomar café e comprar o jornal a notícia tremenda que nos foi atirada à cara. Ainda havia dúvida no número de vidas ceifadas, mas dizia-se mais de cinquenta. A camioneta não teve um mero desastre. A ponte foi abaixo e com ela a camioneta cheia de pessoas; seguiram-se dois automóveis também com passageiros. Não houve sobreviventes das três viaturas.

O que se seguiu foi um silêncio brutal, avassalador. Não se ouvia um barulho sequer, é o de que me lembro sempre que falo neste desastre que assisti. Chuva miudinha. O silêncio que correspondia a um verdadeiro luto sentido. As comunicações chegaram pelas 13:00. As chamadas caíam nos telemóveis e o telefone fixo não parava. A net também ajudava à comunicação, mas comunicar o quê? Sim, estávamos vivos, se era isso que queriam saber.

Depois, foi o que nunca quererei ver repetido. Para além das perdas sofridas e do sentido de desorientação íntima de uma população, a comunicação social em peso na pequena vila. De todas as estações incluindo algumas estrangeiras. Dias seguidos, em entrevistas. Pessoas a fugirem literalmente de jornalistas e a não saírem das casas; jornalistas que, de microfone na mão, perguntavam «o que se sentia» a pessoas ainda em estado de choque. O facto hediondo de oferecerem uns euros a jovens estudantes para segurarem os cabos das televisões e as suas recusas em querer ganhar dinheiro daquela maneira, quando primos, irmãos e amigos jaziam no fundo do Douro ou arrastados até ao mar, visto que as barragens não podiam ser fechadas devido ao forte caudal do rio. Falava-se na velocidade de 20 metros por segundo, dados da Marinha que, mesmo assim e para acalmarem os media, faziam mergulhar bombeiros que nada viam a centímetros de profundidade e expostos a serem mortos por troncos emersos ou partir-se o cabo que os mantinha agarrados aos barcos insufláveis, eles próprios em risco de acidente grave se os motores falhassem contra a corrente!

Mesmo a culpabilização dos «políticos» que levou ao fim da carreira de Jorge Coelho e Luís Patrão não teve qualquer eco na população de Castelo de Paiva. Um jovem presidente da câmara social-democrata desejoso de protagonismo (por onde andará ele agora?) e tão culpado de omissão como todos os outros cirandava por televisões e rádios a justificar o injustificável. Cinquenta e três pessoas poder-se-iam ter salvo, não fossem viver no interior de um país esquecido e cujos relatórios do LNEC foram mantidos anos no fundo de várias gavetas. Dos jornalistas, houve alguns que se destacaram, pela positiva, do circo montado: Miguel Carvalho, da Visão, o Emanuel da rádio local (mais tarde perseguido e posto de lado na Rádio Paivense) e Fernando Alves da TSF. O resto é melhor esquecer.

Quando, passados uns meses e sabendo que era o meu último ano em Castelo de Paiva em mudança para o Porto, devido aos trabalhos da fundação da Deriva Editores, e em jeito de despedida num almoço de colegas e com um famoso padre ultramontano da freguesia de Raiva, uma das mais atingidas pelo desastre, o questionei sobre uma afirmação dele na RTP1 em que defendia que, para a igreja católica, o corpo não era o importante, julgando eu que o dizia para acalmar os familiares que nunca recuperaram os corpos, respondeu que não, não foi: «É mesmo assim, caro colega; para a igreja, o importante é a alma, o espírito. O corpo não é, nem nunca será o mais importante. É perecível. A alma, não!» Sinceramente, não tive coragem de o contrapor, nem queria. Não era esse o meu objectivo de iniciar uma discussão inútil. Mas senti quanta razão, e nem sempre pelos melhores motivos, aquele padre tinha: o corpo é perecível! Acham possível que naquelas circunstâncias eu lhe fosse dizer quanto importante era o corpo como objecto de desejo e de amor, quando a igreja o negou desde sempre? 

Já não me lembro se nessa noite eu dormi. Como, meses antes, em 4 de Março de 2001, não o consegui também.

António Luís Catarino