quinta-feira, março 04, 2021

Vinte anos depois, reviver Castelo de Paiva


Um estágio antecipado levou a Madalena, mãe da minha filha, nessa altura com um ano e meio, a Castelo de Paiva. Viagens difíceis para lá e para cá, resolvemos que eu me trespassaria definitivamente para a vila perto da confluência de três rios: o Douro, o Tâmega e o Paiva. Na brincadeira dizia que tinha ido viver na Mesopotâmia, em Entre-os-Rios. Adorei viver lá durante três anos antes de me fixar no Porto e, mesmo não sendo necessário dizê-lo, ainda hoje contacto com alunos do ensino secundário que acompanhei durante esses anos. Tornámo-nos amigos inesquecíveis. Até hoje.

O 4 de Março, domingo, dia em que a ponte Hintze Ribeiro soçobrou, foi o corolário de chuvas intensas que levaram quase três meses a cair. O Douro estava castanho da terra das margens arrancadas com fúria e com uma corrente fortíssima das suas águas. No sábado anterior passámos a ponte, em direcção a Penafiel, para comprar, no supermercado do costume, as coisas para a semana. Lembro-me de termos ido a um café e almoçámos por lá. Atravessámos a ponte pelas dezasseis horas de retorno a Castelo de Paiva.

O dia da véspera passou-se como um sábado normal, numa pequena vila. Discutia-se política, futebol, previa-se o tempo e desejava-se que parasse finalmente de chover, esperando que aparecessem uns raios de sol. O domingo que se seguiu foi diferente, sem dúvida. Ao fim do dia, pressentiu-se que alguma coisa não corria bem. As notícias sucediam-se e lembro-me de ouvir dizer que uma camioneta de pessoas em excursão às amendoeiras em flor em Trás-os-Montes tinha tido um desastre. Subitamente, nem rede de telemóveis, nem telefones ou televisão por cabo. Mas nunca imaginámos a extensão do drama que iria acontecer e que ainda só estava no princípio.

De manhã, ao sair com a minha filha para ir tomar café e comprar o jornal a notícia tremenda que nos foi atirada à cara. Ainda havia dúvida no número de vidas ceifadas, mas dizia-se mais de cinquenta. A camioneta não teve um mero desastre. A ponte foi abaixo e com ela a camioneta cheia de pessoas; seguiram-se dois automóveis também com passageiros. Não houve sobreviventes das três viaturas.

O que se seguiu foi um silêncio brutal, avassalador. Não se ouvia um barulho sequer, é o de que me lembro sempre que falo neste desastre que assisti. Chuva miudinha. O silêncio que correspondia a um verdadeiro luto sentido. As comunicações chegaram pelas 13:00. As chamadas caíam nos telemóveis e o telefone fixo não parava. A net também ajudava à comunicação, mas comunicar o quê? Sim, estávamos vivos, se era isso que queriam saber.

Depois, foi o que nunca quererei ver repetido. Para além das perdas sofridas e do sentido de desorientação íntima de uma população, a comunicação social em peso na pequena vila. De todas as estações incluindo algumas estrangeiras. Dias seguidos, em entrevistas. Pessoas a fugirem literalmente de jornalistas e a não saírem das casas; jornalistas que, de microfone na mão, perguntavam «o que se sentia» a pessoas ainda em estado de choque. O facto hediondo de oferecerem uns euros a jovens estudantes para segurarem os cabos das televisões e as suas recusas em querer ganhar dinheiro daquela maneira, quando primos, irmãos e amigos jaziam no fundo do Douro ou arrastados até ao mar, visto que as barragens não podiam ser fechadas devido ao forte caudal do rio. Falava-se na velocidade de 20 metros por segundo, dados da Marinha que, mesmo assim e para acalmarem os media, faziam mergulhar bombeiros que nada viam a centímetros de profundidade e expostos a serem mortos por troncos emersos ou partir-se o cabo que os mantinha agarrados aos barcos insufláveis, eles próprios em risco de acidente grave se os motores falhassem contra a corrente!

Mesmo a culpabilização dos «políticos» que levou ao fim da carreira de Jorge Coelho e Luís Patrão não teve qualquer eco na população de Castelo de Paiva. Um jovem presidente da câmara social-democrata desejoso de protagonismo (por onde andará ele agora?) e tão culpado de omissão como todos os outros cirandava por televisões e rádios a justificar o injustificável. Cinquenta e três pessoas poder-se-iam ter salvo, não fossem viver no interior de um país esquecido e cujos relatórios do LNEC foram mantidos anos no fundo de várias gavetas. Dos jornalistas, houve alguns que se destacaram, pela positiva, do circo montado: Miguel Carvalho, da Visão, o Emanuel da rádio local (mais tarde perseguido e posto de lado na Rádio Paivense) e Fernando Alves da TSF. O resto é melhor esquecer.

Quando, passados uns meses e sabendo que era o meu último ano em Castelo de Paiva em mudança para o Porto, devido aos trabalhos da fundação da Deriva Editores, e em jeito de despedida num almoço de colegas e com um famoso padre ultramontano da freguesia de Raiva, uma das mais atingidas pelo desastre, o questionei sobre uma afirmação dele na RTP1 em que defendia que, para a igreja católica, o corpo não era o importante, julgando eu que o dizia para acalmar os familiares que nunca recuperaram os corpos, respondeu que não, não foi: «É mesmo assim, caro colega; para a igreja, o importante é a alma, o espírito. O corpo não é, nem nunca será o mais importante. É perecível. A alma, não!» Sinceramente, não tive coragem de o contrapor, nem queria. Não era esse o meu objectivo de iniciar uma discussão inútil. Mas senti quanta razão, e nem sempre pelos melhores motivos, aquele padre tinha: o corpo é perecível! Acham possível que naquelas circunstâncias eu lhe fosse dizer quanto importante era o corpo como objecto de desejo e de amor, quando a igreja o negou desde sempre? 

Já não me lembro se nessa noite eu dormi. Como, meses antes, em 4 de Março de 2001, não o consegui também.

António Luís Catarino