domingo, março 14, 2021

Zizek: pós-pandemia, comunismo e «noli me tangere»! O senhor sente-se bem?

 

Por vezes penso no desconcerto que constitui ler Slavoj Zizek. Agora penso um pouco mais rasteiro: será que Zizek estará «bom da cabeça»? Passou-me esta ideia várias vezes pela minha, mas acedo que ele é um filósofo e que os filósofos têm todos o direito de se passarem da cabeça, sem quaisquer outros problemas que teria o comum dos mortais. Como, por exemplo, meter baixa no emprego e ficar sem quase metade do ordenado, complicações com a família, iniciar um processo de afastamento e disjunção da sociedade... essas coisas que, ao que se julga, 60% dos portugueses conhecem ou já conheceram na sua vida. Mas não se infira disto que não gosto de Zizek. Gosto de o ler, mas por vezes custa-me levá-lo a sério até por a sua prolixidade e de tanto tema tratar produz a imagem de um «enfant terrible» da filosofia e do pensamento contemporâneo. Mas o homem é incontornável.

Falemos um pouco dele antes de nos debruçarmos sobre o livro em questão. Define-se a si próprio com um «ateu cristão». Não me é difícil considerar uma pessoa nesse campo específico da espiritualidade actual. Não é por aí que coloco dúvidas, mas Zizek deve viver, ele próprio numa espécie de limbo interior em que não se vê uma resolução capaz, se é que a procura mesmo. Nem para os lados do materialismo, nem para o da espiritualidade (ele emprega mesmo esse conceito). Mas com o «Noli me tangere» de Jesus a Madalena, inicia uma pequena viagem, neste livro, pela pandemia que vivemos todos os dias, há mais de um ano e sem perspectivas de um fim rápido... para este vírus, ou para outros que hão-de vir. Zizek é um optimista, não o esconde, e vive bem com isso. Mas o excesso de optimismo também cansa as pessoas que o lêem, visto que o mundo pode caminhar exactamente em sentido contrário às suas teorias. Sim, ele vem com o Decameron de Bocaccio, escrito em tempos de peste e, já agora, embora o filósofo esloveno não o faça, poderia igualmente chamar os roaring twenties, para marcar o fim da guerra e da epidemia de 1918! Nada de novo aqui. Mas como Zizek se define, sem qualquer problema de maior e o que, aliás, mais me aproxima dele, é quando se afirma como «despudorado filósofo da subjectividade». Depois, ele explica o que entende por «agenciamento» e pela necessidade de «adoptar um ponto de vista inumano» como forma de compreender todos os actantes desse agenciamento planetário. Em segundo lugar, defende a acepção muito subjectiva de não ignorar as «crenças e valores», esse agenciamento religioso complexo de dogmas, instituições, práticas sociais e individuais e experiências íntimas onde nunca é dito o que seria bom dizer. Termina com uma frase terrivelmente provocatória: «É possível que uma prova científica de que Deus existe deixasse atónito o próprio crente»! Creio que não é necessário mais nada para definir um «ateu cristão», crença (!!) que tem os seus múltiplos acólitos nos tempos que correm. Com tendência para aumentar, diga-se.

Quero voltar, contudo, ao que penso que o optimismo de Slavoj Zizek se mostra mais desconcertante e que me levou à minha questão singela do filósofo esloveno estar, ou não, «bom da cabeça»: o comunismo. Encarar a epidemia deste coronavírus como uma janela de oportunidade para o comunismo, trata-se mesmo de excesso de crença e fé, seja ela marxista ou mesmo leninista. Zizek ataca todos os pensadores e filósofos, principalmente Agamben, por denunciarem as medidas desproporcionais dos estados face ao coronavírus, relativamente às liberdades e à nova escravatura do trabalho. A resposta do esloveno a estas preocupações onde se poderia esperar um brutal regresso à barbárie generalizada, ele contrapõe um receio maior: uma «barbárie de rosto humano», sem dúvida a pior de todas: perante o descontrolo dos estados, aceitarmos o genocídio dos mais velhos, dos doentes e dos fracos como de natural se tratasse. Optimista, Zizek? Mas é um receio que ele não crê que se venha a consumar.

O comunismo pós-epidemia que Zizek lobriga é este: «(...) uma versão daquilo que, na União Soviética, em 1918, se chamou ''comunismo de guerra''»; Na página 85, Zizek defende-se dos «ataques» a que foi sujeito depois de defender a «Barbárie ou Comunismo»: «De Alain Badiou a Byung-Chul Han e muitos outros, da esquerda à direita, todos me criticaram, ridicularizaram até, depois de eu ter sugerido repetidamente a chegada de uma forma de comunismo em resultado da pandemia de coronavírus.». Falando de uma cacofonia de vozes contra ele, reconhece que estas críticas se baseiam em que o capitalismo sairá mais forte e não o contrário. Penso que a onda generalizada contradizendo Zizek obrigou-o a tentar definir que comunismo será este: «(...) não é um sonho obscuro, mas simplesmente um nome para aquilo que já está a acontecer (...), medidas que já estão a ser consideradas e mesmo parcialmente implementadas. Não é uma perspectiva de um futuro risonho, mas antes de um ''comunismo de desastre'' como antídoto para o capitalismo de desastre. O Estado devia não só assumir um papel muito mais activo, organizando a produção de bens de que haja necessidade urgente(...)».

Não creio que um comunismo reaccionário como este que Zizek defende seja possível, ou sequer, plausível. Tantas questões se poderiam colocar e que não caberiam aqui. Mas é demasiado pouco para ser possível levantar hipóteses minimamente sérias para um projecto comunista. Coloca-se somente uma: por que razão o Estado, por si só e vendo-o em abstracto como Zizek o faz, abraçaria medidas comunistas? E a produção de bens? E quem faria o controlo dessa produção de bens?

António Luís Catarino