ANTONIN ARTAUD
Artaud estava do lado de Tuiavii, havia nele a voz selvagem
dos mestres, o sentido da tradição oral, era um homem experimentado a contar
uma história de terror enquanto os tambores ressoavam a trovoada nocturna dos
anseios recalcados. Cada dente que lhe faltava na boca assinalava um exorcismo.
Eram reais as aranhas que lhe saíam pelo cu, tinha um modo de escarrar no qual
pressentíamos uma música singular, por isso mesmo doentia, porque tudo o que
ousa afirmar-se em ruptura com a lógica dos tribunais é tomado por loucura.
Ora, desde muito
cedo benzido, desde muito cedo iniciado nas tradições do mau-olhado, aprendi a
libertar-me do quebranto em pratos de azeite pingados com vinagre. A minha mãe
levou-me às bruxas, fui gótico, toquei o xilofone dos nervos enquanto me
curvava para receber a extrema-unção. Naquele tempo, as oliveiras ainda eram
vergastadas e ao rio íamos colher mergulhos na lama. Bebíamos directamente da
teta das cabras, víamos passar os mendigos com uma estranha admiração, porque
também nós não apreciávamos o banho a horas certas. Preferíamos erguer casas no
topo das árvores, fazer o ninho nas asas dos índios, correr com os ciganos do
bairro porque éramos mais ciganos que eles. Talvez tenha começado aí um certo
sentido da contradição social, ao observar o gosto que a ciganagem punha em
romper com as suas tradições, em vestir-se como os betos do outro lado da rua,
aqueles que tinham piscina onde mergulhar as mães nuas e irmãs de rata ao léu.
Talvez tenha sido essa a primeira experiência de que resistir implicava não
abdicar de um eu misterioso, indecifrável, livre, coerente com as suas próprias
ambiguidades, um eu obstinado e livre o suficiente para se poder iludir com
voluntariedade e um profundo sentido da divergência. (...)
Henrique Manuel Bento Fialho, Os Suicidas, Deriva, 2013. A
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Extracto da responsabilidade do editor.