domingo, janeiro 02, 2011

A Superfície, por António Guerreiro [Expresso | 30 de dezembro de 2010 | ATUAL ]



[uma crónica de António Guerreiro sobre as  grandes superfícies, o formato dos livros  e a tácticas de combate...]

A SUPERFÍCIE

Prestemos atenção às manifestações de superfície, seguindo uma lição fundamental do sociólogo Georg Simmel que pode ser assim formulada: partindo da periferia, pode-se chegar ao centro de problemas decisivos. O método revela-se precioso quando queremos dar figura ao panorama literário e editorial, tão conspícuas se tornaram as manifestações de superfície, isto é, os processos materiais de produção e exposição comercial dos livros. A 'superfície' tornou-se mesmo o conteúdo latente do pesadelo coletivo do sujeito editorial. Em tempos não muito longínquos surgiu o problema das 'grandes superfícies'; agora, a escala da grande superfície transferiu-se para o próprio formato dos livros, que passaram a ter um tamanho imponente, demagógico, ameaçador. O que podemos dizer de mais seguro sobre o que se passou este ano é que este complexo de gigantismo atingiu o seu mais alto grau e não será ousado concluir que as editoras portuguesas produzem, em média, os maiores livros do mundo. Como se explica este fenómeno? Por uma guerra civil de conquista de espaço, que faz das livrarias um campo de batalha onde um exército de combatentes, para ganhar posição, tem de expulsar os combatentes inimigos, porque não há lugar para todos, A lei do maior - em superfície - e do mais exuberante - na apresentação - é uma das táticas do combate. Uma tática suicida, porque torna ainda mais exíguo o pouco espaço que existe e mais saturada e ruidosa a cenografia que se desenrola nos escaparates. Nesta guerra pindérica de calhamaços. Tudo se reduz a táticas que fazem lembrar as hordas primitivas. À entrada de uma livraria, o leitor deverá saber que vai atravessar um campo de hostilidades, uma parada agressiva de uniformes de guerra de onde é preciso fugir. O espetáculo é sem redenção e sem salvação. Perante ele, apetece muitas vezes fazer greve, recusar a compra de um livro que até nos interessava, mas tem uma capa indigna, com inscrições publicitárias demagógicas e dimensões paranoicas. (Nota: um amigo enviou-me um texto publicado num blogue - "A Causa Foi Modificada"-que também trata, e com elevado grau de repugnância, desta questão.)
António Guerreiro [Expresso, 30 de dezembro de 2010,  ATUAL ]

 O post, com supressões, de A Causa Foi Modificada:
Ora, a minha guerra antiga contra os calhamaços de letra garrafal, margens abismais e capas que parecem a cobertura do estádio do Braga deu os seus frutos, na medida em que as editoras portuguesas não só continuam a lançar livros volumetricamente idênticos a semi-reboques, como agora, ao que parece, pretendem vendê-los no interior de caixas de sapatos especificamente construídas para o efeito, e recorrendo a materiais nobres que depois poderão ser reciclados e reutilizados pela industria de construção naval. [...] Eu sei que estamos em crise, que os livros não são propriamente a prioridade dos portugueses, que as vendas não estão num processo de ascenção imparável: mas será preciso abraçar uma estratégia de total desistência de se vender livros pelo que eles são na sua essência? É que vender um livro dentro de uma caixa de sapatos sem qualquer utilidade relativa ao objecto equivale, na prática, à rendição incondicional perante as outras industrias culturais. É como tentar vender telefonias embrulhadas em leitão assado ou uma merda assim dessas.] [in a Causa Foi Modificada, 17.12.10]