terça-feira, janeiro 30, 2024

«Alucinar o Estrume», Júlio Henriques

 

Antígona, 2017. Desenhos de José Miguel Gervásio
Quem conhece a revista «Flauta de Luz», de que Júlio Henriques é um dos responsáveis mais conhecidos, saberá registar a forma literária que dá corpo ao que escreve em pequenos contos fantásticos e de uma crítica social arrasadora: «forma literária» é expressão minha sem presunção ou academismos que ele rejeita com veemência. No entanto, não será muito difícil a cada um de nós lembrar-nos da tradição cáustica e satírica de um Mário-Henrique Leiria, de um Virgílio Martinho, de um Luiz Pacheco ou de Alberto Pimenta, isto só para ficar nas fronteiras da região, porque se pusermos um pé de fora da lusa raia nada me escusa de citar Rabelais, Lawrence Sterne, Swift, Vian, Hrabal, Saunders ou o Voltaire de «Cândido», e pára aí (em Voltaire) porque de Iluminismos estamos cheios. As personagens de Júlio Henriques em «Alucinar o Estrume» são de uma ironia violenta (dirigida aos outros e a si próprios) e, paradoxalmente, absortos nos seus sonhos utópicos e cheios de espanto perante o que os outros lhes podem dar. E, com sábia e pura conveniência, vir a receber. Porque é uma espécie de potlach o que observamos nessas histórias, tanto com Estêvão Vao em «Alucinar o Estrume» ou em Elias Eupróprio em «Deus tem Caspa» de que já falámos por aqui. 

Este dar e receber recusa as trocas em dinheiro ou em mais-valias onde impera o lucro; assume-se, antes, nas solidariedades e cumplicidades dos «neo-rurais», muitos a chegar das cidades e heterogéneos nos objectivos e que, como Adriano, outra personagem que regressa ao campo «...andava a trabalhar em prol de uma autonomia que começava pela alimentar; não se espraiava em devaneantes optimismos segundo os quais podia desde já viver-se ''fora do capitalismo'' bastando para tal a vontade de um ''espírito superior''; e também não idealizava beatamente o mundo camponês, ou o que por aqui restava dele, sabendo todavia - questão prévia - que se trata de uma cultura milenar e que uma cultura destas, como diz John Berger, não se pode deitar fora como quem risca contas saldadas.» (pág.96) No entanto, Estêvão Vao continua a clarificar este regresso ao campo: «A sociedade vigente estava a rebentar pelas costuras e não eram bem-vindas as gentis propostas conducentes a remendar com panos quentes tais costuras. Era diversa e mais funda a perspectiva por ele perfilhada: sair desta civilização, contribuir para a parição de uma outra - sem que isso, contudo, significasse uma inteira tábua rasa: anteriores culturas perseguidas continuavam, agora mesmo, a sua luta pela existência de um mundo plural. Fosse como fosse, em muitos lugares da Terra essa perspectiva estava a caminhar em busca de um novo sol.» (pág.97)

O título ao livro explica-se pelo conto «Aldeias sem estrume S.A.» em que EstêvãoVao se vê solidário com os aldeãos que foram proibidos, por medidas eco-higienizantes e para não incomodar os turistas do Rural, de retirar o estrume usado nos currais e ovis e a colocá-lo na rua da aldeia, coisa que estavam habituados há séculos afora. Esta rede de aldeias sem estrume passou logo pela cabeça de Estêvão Vao que comunicou aos dois aldeãos furiosos que só viam naquelas leis municipais o objectivo de passar «aldeias sem estrume para sem aldeãos» para numa fase seguinte se passasse «a aldeamentos de empreiteiros e agências turísticas nacionais e internacionais.» Assim, conta-nos o autor em dois post scriptum o que se passou em seguida para contrariar as posturas autárquicas: 

«ps1:(...) adiantamos desde já que Estêvão Vao decidiu entabular conversa com os dois comensais, mudando-se para a mesa deles com a travessa de arroz de míscaros ainda fumegante. Lembrou-lhes um lema: para grandes males, grandes remédios. Porque uma afronta daquelas (a proibição de estrume nas ruas da aldeia) estava mesmo a pedi-las. Então agora quem manda nas aldeias são os turistas? É Sua Excelência o Turismo? Vade retro, Satanás! E no lusco-fusco se encetaram os primeiros conciliábulos com vista a resistir à malfadada invasão.
ps2: À noite, na pensão onde estava hospedado, Estêvão Vao pegou num volume, que andava a reler, dos Diários de Miguel Torga, nele deparando, entre outras, com as seguintes linhas: ''A intimidade desta vida de aldeia é um espectáculo ao mesmo tempo repugnante e maravilhoso. Estrume da cabeça aos pés. Entre o porco e o dono não há destrinça. Mas, ao cabo, esta animalidade toda, de tão natural, acaba por ser pura e limpa como a bosta de boi.''» (pág. 38,39)

Repugnante e maravilhoso! Grande Miguel Torga! O estrume, esse, ele encontrá-lo-ia facilmente nos vómitos assestados com mimo nas queimas das fitas coimbrãs, o Doutor! Mas esse académico estrume, não é chamado para o textinho que Júlio Henriques nos trouxe a lembrar, atempadamente, não vá a memória um dia falhar-nos. Porque irá falhar.

No quase-final do livro temos um conjunto de que chamarei, não sem algumas dúvidas, de aforismos, apostos em «Massa (crítica) com Feijão-Manteiga - Notas encontradas num caderninho escolar e Estêvão Vao» (pág.147) em que se pode ler esta pérola tão certeira como actual:

«Chamar cidadão aos eleitores é uma força de expressão certamente desculpável numa democracia avançada. Veja-se este dístico, cuja nobreza palpita na nossa atmosfera: LOUVEMOS E EXALTEMOS O GOVERNADOR DO BANCO DE PORTUGAL! AVÉ! Com efeito, é isto que aqui se lê. E não é por acaso: esta oração deve rezar-se revezadamente em voz alta antes e depois das refeições, se as houver.»

Antígona, 2017. Desenhos de José Miguel Gervásio