domingo, janeiro 21, 2024

«O Anticrítico», Diogo Vaz Pinto

 

Maldoror, Dezembro de 2023. 659pp
Já cá mora, enviado rapidamente pela Letra Livre, uma editora e livraria independente que, ainda por cima, soma a estas qualidades a do envio das encomendas para todo o país. Não é só a única, diga-se (a Utopia e a Snob também contam para o recado), mas convém lembrar-vos. Trata-se de «O Anticrítico» de Diogo Vaz Pinto, editado em Dezembro de 2023. Escuso de lembrar que é poeta, escreve no «Sol» e que é editor da Língua Morta.

Atenção: não li o livro todo. Vou lendo aqui e ali, porque o livro está bem estruturado e leva-nos facilmente onde queremos, isto é, a tipos que conhecemos, a poetas lidos e conhecidos e a referências impossíveis de contornar. Ainda é cedo para conseguir ler todas as 650 páginas, mas do que li, e já não foi pouco, infiro algumas das verdades apostas: Diogo Vaz Pinto sabe do que fala e do que falta na literatura e na poesia portuguesas. Tem uma enorme cultura de base, que não se confunde com a cultura de café ou de «títulos jornal» saídos directamente da Wikipédia, com que muitos ditos críticos nos brindam e brincam connosco. É contundente e implacável. É, sem dúvida. Mas as letras lusas há muito que precisavam de uma escrita como a dele. Sentíamos (sentimos) uma modorra, uma corrupção de interesses instalados muito difíceis de suportar para quem usa e teima no costume de ler e que não desiste disso. Uma arrogância sapiente a modos de exportação coimbrã instalada em Lisboa e Porto, mai-la província em bicos de pés. As festas florais em que transformaram os encontros literários, os editores a lixarem outros, o ego insuportável de autores, as sacanices utilizadas e isto sem querer arrolar muita porcaria do que se vê e lê. Não se deduza, contudo, que Diogo Vaz Pinto seja «uma lufada de ar fresco» como é costume dizer-se amiúde quando queremos recuperar alguém. Ele não me parece «recuperável». 

«Não tenho conta para as vezes todas em que, para ir com a rábula insultuosa que me tecem, pegando uns onde outros deixaram, numa cooperativa de imbecis que, sinceramente, me comove, já me quiseram tirar a condição que vem de tudo o que faço. Mais difícil seria desmontar alguma coisa. Resta que, ou ignoram muito vermelhuscos, ou a ideia é revogar-me a carta, licença, prostrar-me na indigência de eu ser uma qualquer abominação, ''Bicho'', monstro que ligam com tudo o que é baixo, e mesmo assim paira sobre eles sem explicação. (...)» (da contracapa)

Pode-se concordar com ele ou não. Em alguns trechos sobre autores, não concordei. Na maioria dos casos, sim. São inegáveis e certeiras as críticas do «anticrítico». Mas é necessário ter o livro à mão para o dizer.

Passo a transcrever um trecho de um capítulo, «Coveiros da Própria Consciência» (pág.605) que mais me deram prazer ao ler e, agora com experiência feita de 15 anos e editado 250 livros, tendo parado há 7 anos a edição e fechado a luz da Deriva, de ter pago a água, entregue a chave ao senhorio, é com total concordância que vos dou aqui a conhecer:

«Seria uma tristeza, uma canalhice, na verdade, fingir que há algum charme na edição literária. É uma vocação desesperada, em nome de um mundo que há muito levantou as âncoras e deslocou deste, tendo deixado apenas o cheiro a despegado, os traiçoeiros ecos de ordem às tripulações, e ainda temos de aturar esses marinheiros de água doce, enchendo a toda a hora a boca com os «ó céu ó mar ó destino», e temos as enfadonhas canções de bêbados, as mais desconchavadas meretrizes com a sua entrega desoladora, e, nisto, no máximo, pode aspirar-se àquela noção romântica que Leminski cunhou para o poema que não se entende, e por isso é digno de nota, com «a dignidade suprema de um navio perdendo a rota».
Assim, editar seria como escrever algo em busca de um desentendimento imensamente desafiante e animador, essa conversa que o escritor israelita Etgar Keret disse ser longa como um túnel debaixo de uma prisão, escavada pelo editor - paciente e dolorosamente - com uma colher, para que possamos sair do lugar onde estamos. A edição está a meio caminho entre a utopia e o pão com margarina servido a um faminto. Há, portanto, muita margem não só para erros audaciosos, mas para aldrabices, e é uma paisagem que se apresenta hoje cheia de lacraus e vigaristas, desses que não apenas acreditam mas, mais, até se deixam embalar nas próprias lérias. (...)» (pág. 617, 618)

Vou continuar a ler e a consultar. Em português bem escrito, acresce-se.