quarta-feira, janeiro 17, 2024

«Tai Pi», Herman Melville

 

Minotauro, Junho de 2023. 358pp. Tradução de Miguel Martins
Ah, canibais! Digo-vos desde já que entre os antropófagos que por aí andam nas sociedades contemporâneas e os originais, depois de ler «Tai Pi, Um Olhar sobre a Vida Na Polinésia» de Herman Melville, prefiriria, de longe, conviver com os segundos. O livro foi escrito em 1846, editado recentemente pela Minotauro, e corresponde ao período em que Melville, acabado de observar a ruína financeira da família novaiorquina, parte para a aventura que o leva no navio Dolly para a Polinésia «francesa», ou seja em Nuku Hiva, nas quase virgens Ilhas Marquesas. Foge, com um companheiro de viagem, Toby, do navio que o trouxe a esta baía e fica por lá durante quase meio ano. «Tai Pi» foi o seu primeiro livro, a que se segue «Omoo», sequela do primeiro e que estranhamente não foi traduzido e publicado em português ou nas suas vertentes brasileiras ou africanas. Que eu saiba; e é pena se assim é.

Os canibais de Tai Pi, que em polinésio significa «comedores de carne humana», são no seu quotidiano vegetarianos. Ora, toma! Eles são cocos, bananas, fruta-pão, e só de vez em quando, em grandes festas comunitárias, lá comem um parkuee, porco ou leitão, e uma ovelha ou outra. Peixe, raramente e só cru, acompanhado inapelavelmente por mais festas. Bebidas: água límpida e fresca que brota de múltiplas cascatas e uma «arva» de efeito narcótico e relaxante que escuso aqui de enaltecer porque infelizmente nunca conheci. Melville diz que provoca um sono luxuriante e eu acredito. Fumavam uma espécie de tabaco com cachimbos que rodavam entre mãos, igualmente «relaxante», embora o escritor nunca tenha reparado em plantas de tabaco na ilha. Mistérios. A verdade é que os dias passavam com o «Molee», que em polinésio, era o chamado descanso ou sesta. O tempo, nas sociedades ditas primitivas, não é o mesmo do nosso. Dilata-se. Carne humana? Já lá vamos.

Os hábitos dos Tai Pi, inimigos declarados dos Happares seus vizinhos e igualmente canibais, eram, de facto, formidáveis e, ainda hoje nos encanta, lendo a descrição real de Melville no meio-ano que esteve com eles, quase prisioneiro, visto que não o queriam em contacto com os brancos de onde era proveniente não o deixando descer à baía de Nuku Iva já em comércio inicial com a França. Conclusão: os Tai Pi, por mais canibais que fossem, não mastigaram Herman Melville e deram-lhe a possibilidade de um êxito estrondoso com a publicação deste livro e de Omoo. No fundo, amaram o americano intranquilo, deram-lhe todas as mordomias e simpatias; Kory-Kory foi o seu ajudante e guardador quotidiano, apaixonou-se por Fayaway «a mais bela das nativas» e teve relações privilegiadas com o chefe (não tão chefe assim) Mehevi. Aliás, não havia «chefes» tal como um pobre ocidental habituado miseravelmente à subordinação, o entende. O prestígio de um indivíduo vinha sobretudo das suas façanhas guerreiras contra os brancos ou os Happares. Aí, havia festança no fim das refregas e lutas que paravam aos primeiros ferimentos ou mortos e que não ultrapassavam o número dos dedos da mão de um lado e de outro. Melville, no fim da sua estada forçada por uma perna doente e pela teimosia dos Tai Pi em não o deixarem sair do vale de dois mil habitantes, reconheceu que a festança era nutrida por corpos dos mortos em combate. Nada do outro mundo e até, por consideração ou comiseração, não o convidaram para a grande festa de dois dias não fosse o americano descobrir os ossitos e caveiras humanas a servir de decoração dos Pi-Pi e do Ti a grande cabana de homens. Disseram-lhe que se ele fosse a essa festa particular de guerreiros (houve outras de dias seguidos para que foi convidado) era «tabu» uma expressão que Melville, nunca soube traduzir porque ou tudo era tabu ou nada era tabu. Ou, melhor ainda, os tabus podiam ser levantados, segundo a disposição do chefe Mehevi ou de um sacerdote mais afável para com os preceitos sociais. Embora de índole guerreira os conflitos entre o clã eram inexistentes, as crianças eram poucas e felizes, a poligamia era feminina e não masculina, isto é cada mulher tinha entre um a dois homens que escolhia ou repudiava, nem tinha as habituais tarefas atribuídas às mulheres, mesmo em sociedades não ocidentais e «primitivas». Como não havia agricultura, não havia trabalho, ou propriedade. Talvez o Pi-Pi, a casa, ou a lança, fosse a única propriedade tida como tal, mas eram casas abertas a todos e não havia roubos, conceitos completamente desconhecidos entre os Tai Pi e os Happares. Na baía de Nuku Hiva, onde os barcos ocidentais atracavam em busca de ouro e metais preciosos, já não era assim, obviamente. Daí os povos das montanhas exigirem o isolamento e os contactos em forma de «tabu».

«Neste estado de espírito, todos os objectos que captavam a minha atenção infundiam-me uma perspectiva diferente, e as oportunidades de que agora desfrutava de observar as atitudes dos nativos tendiam a fortalecer as minhas impressões favoráveis. Uma peculiaridade que me provocou admiração foi a permanente hilaridade que reinava ao longo de toda a extensão do vale. Pareciam não existir quaisquer preocupações, tristezas, problemas ou contrariedades em todo o Tai Pi. As horas passavam tão alegremente como os casais sorridentes num baile rural. [...] Tudo era alegria, diversão e muito boa-disposição. O desalento, a hipocondria e as depressões dolorosas iam esconder-se no meio dos recantos e das fendas das rochas.» páginas 174 e 175.

Sendo assim, Herman Melville voltou para Nova Iorque, após mais dois anos na Polinésia. Quer «Tai Pi», quer «Omoo» foram um êxito comercial, o que não aconteceu com os posteriores «Moby Dick» e «Bartleby» na ocasião ostracizados e hoje considerados os melhores livros de Melville. Regressou então para, palavras dele, a «civilização» onde encontrava as execuções hipotecárias, letras protestadas, contas a pagar, dívidas de honra, alfaiates ou sapateiros injustos, obstinados em serem pagos, cobradores, advogados que fomentavam a discórdia, familiares pobres a ocuparem permanentemente o quarto de hóspedes, viúvas desamparadas com os seus filhos a passarem fome nas instituições de caridade deste mundo, mendigos, prisões para devedores. Continua: «Em Tai Pi, não havia quaisquer nababos orgulhosos e insensíveis; ou, para resumir tudo numa palavra, não havia dinheiro! Essa ''raiz de todos os males'' não se encontrava no vale.» (pág.175)

Escolha dele. Gauguin não o fez. Um livro admirável que deve ser lido com sofreguidão abundante.

Minotauro, Junho de 2023. 358pp. Tradução de Miguel Martins