quinta-feira, janeiro 04, 2024

«Todos os Cavalos do Rei», de Michèle Bernstein

 

Debord com Michèle Bernstein (à sua esquerda). As mãos à sua direita são de Alice Becker-Ho. Foto e legenda da Biblioteca Nacional de França

Barco Bêbado, 2023. Tradução de Joana Jacinto.
Finalmente, uma edição traduzida impecavelmente por Joana Jacinto de «Tous les Chevaux du Roi», de Michèle Bernstein publicada, imaginem, em 1960. Acresce-se as boas ilustrações de Jorge Feijão. Há ainda uma pequena introdução de Stewart Home. Merece um apontamento elogioso à Barco Bêbado por esta iniciativa.

Torna-se evidente que ao ler avidamente o primeiro romance de Michèle Bernstein nos lembramos do encantamento que sentimos ao ver um filme a preto e branco dos anos cinquenta e sessenta do século passado. Caramba, foram 64 anos de intervalo entre a sua publicação e a tradução portuguesa! O livro respira liberdade e ousadia. Uma luta permanente contra o tédio, a vida e a moral burguesas. Sem ser uma obra-prima (quem a desejaria?) é de uma beleza desarmante. E por vezes com alguma doce crueldade, igualmente. Já lá voltamos. 

Vale a pena descrever um pouco quem é Michèle Bernstein: segundo os biógrafos (apoio-me principalmente na biografia «Vie et Mort de Guy Debord» de Christophe Bourseiller e editado pela Plon) e artigos avulsos sobre Debord, com declarações importantes da própria Bernstein; ela conheceu Debord já em 1952 com a Internacional Letrista, vindo com ele e outros, em que se destaca Asger Jorn (que Stewart Home o faz passar, no livro, pela personagem Ole), a dissolvê-la e substituí-la pela Internacional Situacionista em 1957. Desde esta data até 1969 tem uma acção discreta, mas fundamental para a construção do corpo teórico da Internacional. Teorias essas que se vêm a revelar certeiras na análise da sociedade do espectáculo e do capitalismo integral em que mergulhámos e cuja catástrofe iminente está bem à vista de todos. Júlio Henriques, na impecável antologia sobre a Internacional Situacionista, cujos textos escolhidos foram da sua responsabilidade e da Antígona, revela-nos que muitos dos comunicados e escritos dos situacionistas têm a sua assinatura. No número 1 da revista da IS, logo em 57, Michèle Bernstein assina o artigo «Pas D'Indulgences Inutiles» sobre a importância da conferência fundacional de Cosio d'Arroscia (edição antológica da Champ Libre). 

Voltemos ao romance «Todos os Cavalos do Rei» procurando os sinais do que se pode chamar, hoje, de inconformismo activo e procura incessante da Vida como deveria ser vivida, como uma deriva revolucionária. Essencialmente, o (anti)romance centra-se em Gilles e Geneviève, embora talvez seja abusivo o termo «centrar». Há várias personagens que se movem amorosa e intelectualmente à sua volta. Todos muito novos, loucos e errantes. Foquemo-nos no que escreve Michèle Bernstein sobre a noite e a deriva em Paris, em consonância, aliás, com o que veio a ser publicado como «A Teoria da Deriva» (podem encontrá-la quer na antologia já citada de Júlio Henriques, na Antígona, quer noutra publicação situacionista recente da Barco Bêbado, publicada por Emanuel Cameira):

«Não tinha estado com Gilles ,uitas vezes neste período. Quando o encontrava de tarde, estava o mais das vezes cansado de ter andado toda a noite a pé com Carole, entre Les Halles, Maubert e Monge. Raramente a levava a Saint-Germain, penso eu, ou para os lados do Pigalle, e muito menos a Montparnasse, que detestamos, nem a nenhum destes bairros de Paris onde a noite se arrasta como o dia e se encontram sempre as mesmas pessoas. Sei como Gilles gosta de passar as noites numa marcha longa, em que um café ainda aberto se torna um ponto de paragem precioso nas ruas onde não abundam os noctívagos. Duas horas depois, a Rue Mouffetard está vazia. É preciso voltar a subir ao Panteão para encontrar um bar, na Rue Cujas. A próxima etapa fica perto do Senado, depois da Rue du Bac, desde que se tenha o bom gosto de contornar aquele que, entre nós, ainda se designa de o Quartier. Aqui, imagino Carole a contar a sua vida (não deve ter vivido grande coisa ainda). E o novo dia levanta-se em Les Halles, é um rito.» (páginas 26/27)

Um dos mais belos diálogos do livro encontra-se aqui, nesta conversa entre Gilles e Carole, apontando já para o rimbaudiano «Ne Travaillez Jamais!», pinchado pela IS em muitas ruas de Paris, durante o Maio de 68:

«-Tu trabalhas em quê, exactamente? Ainda não percebi.
- Na reificação - respondeu Gilles.
- É uma área de estudos muito séria - acrescentei. [Geneviève}
- Sim - respondeu ele.
- Estou a ver - observou Carole com admiração. - É um trabalho muito sério, com livros volumosos e muitos papéis em cima de uma grande mesa.
- Não - disse Gilles - eu só passeio. Basicamente, passeio.
- Não estou a compreender - confessou ela. - Não há muito tempo, também eu passeava bastante. Há muito tempo passeava sozinha.
    O álcool pô-la triste. Falou-nos do tempo que passa. Como todos os adolescentes que deixam essa fase, depois de terem compreendido ou lido os seus encantos, vivem amargamente o envelhecimento, a mudança de estado. Embora muito jovem, antigamente ainda era mais jovem.
- Não tem importância alguma - disse Gilles. - Encontrámos sem dúvida um método que nos permite continuar adolescentes, ou fazer de conta que o somos ainda. Não envelheceremos senão em circunstâncias extremas. Vamos incluir-te neste esquema.» (páginas 30/31)

Sobre o trecho que apresento agora, deixo ao leitor desta ficha, ou ainda melhor, ao eventual e futuro leitor deste romance de Michèle Bernstein a interpretação da personagem Gilles e o seu perfil psicológico se tiverem a liberdade, muito aleatória, diga-se, de a compararem com quem o entenderem:

«Quando conheci Gilles, três anos antes, rapidamente percebi que ele pouco tinha do grande libertino que diziam com frequência que ele era. Ele dá sempre aos seus desejos o máximo de paixão que pode, e é precisamente este estado aquilo que ele sempre buscou nas diversas histórias de amor que seria uma loucura tomar por inconstância- O clima que recriou em todas elas consistia nesta sinceridade de sentimentos e numa consciência aguda do lado tragicamente passageiro das coisas do amor. Além disso, a intensidade da aventura era inversamente proporcional à sua duração. A confusão e a ruptura acompanhavam Gilles antes de aparecer qualquer razão válida: depois, era demasiado tarde. Eu era a excepção, eu estava protegida.» (pág.41)

Um livro belíssimo a ler, a perceber as suas entrelinhas, e a desejar que venha aí «La Nuit» o seu segundo livro.

Os pedidos para a aquisição de «Todos os Cavalos do Rei» devem ser endereçados às livrarias independentes. Por mim, escolhi a Snob, de Lisboa. Rápida e eficaz.