domingo, fevereiro 20, 2022

«Urro / Brüll'», de Júlio do Carmo Gomes


Isto não é um urro. É um murro. Uma estalada nas nossas caras. Um berro na esteira do que melhor se fez no campo dos revoltados e dos insubmissos. Fosse portugal (assim com letra pequena) um país em espelho do que se mostra em Urro, pudessem os grupos alternativos alimentarem este urro, pudesse-se transformar a escrita torrencial de Júlio do Carmo Gomes em oralidade pura, como somos levados pelo seu autor a gritar com ele, pudéssemos ter gente a sério que não fica a assinar em Avaazs (palavras do autor) as nossas pequenas incomodidades caseirinhas e teríamos dado mais alguns passos na dignidade já perdida há muito, divulgando o livro como o deveria ser. Para nos vermos ao espelho. Tal qual isso e se sairmos mal-dispostos, metam um guronsan que isso passa.

Depois do FMI de José Mário Branco que, aliás, veio mais tarde a refutar, um mistério nunca esclarecido ou explicado inteiramente, que não se fazia nada assim. Imaginei-me na leitura verdadeiramente fogosa de Júlio do Carmo Gomes a declamar alto, a voz em aliança clara das palavras que jorravam e a pensar no que seria se se interpretasse novamente Urro, facto que já aconteceu com a Seiva Trupe e acompanhar com mais atenção e divulgação o projecto ainda em trabalho de Rui Spranger. Porque Urro é manifesto, é poesia, é teatro, música concreta. Alguém que nos dê a provar estas palavras. 

Tudo em Urro é posto em causa: a expectativa pequenina do operário da Ikea, da EDP e o licenciado do Call Center, da classe média depauperada coitadinha, o precariado feito de ideologia neoliberal, o voto cândido na religião democrática, o emprego para manter mesmo com dores de estômago; e vamos lá ler (aos berros, ou de mansinho, como queiram) este pequeno trecho de Urro:

«(...) trufas é o que tu queres para enganares a fome
trufinhas trufinhas
enquanto das 9 às 5 essa grande ordem universal te trufla a vida, coração, alma língua, tudo em nome da Arte, ou achas que a Grande Ordem Universal te gala o tempo todo,
cadeias de supermercados, cadeias de shoppings, cadeias de empresas de comunicação, cadeias do estado e de multinacionais, cadeias de cadeias, te chulam o coiro e o melhor da tua vida em nome de quê? É só por causa da Arte Pós-Materialista, ou já te esqueceste que há um buraco-negro ideológico, um abismo de ideais? Alguma vez te deixarias trapacear se o teu patrão e o teu governo não fossem uns artistas? Algumas vezes te deixarias enganar pelas destilarias da Famous Grouse, pelos urinóis de malte invertidos?, descansa que a ti ninguém te engana, descansa
(...)» Pág.11

O Urro/Brüll', do Júlio do Carmo Gomes é uma edição bilingue português/alemão, visto que vive em Berlim. As ilustrações, a paginação e a capa são da Oficina Arara de Irina Pereira e de Miguel Carneiro. Não sei o preço, mas em qualquer livraria alternativa digna desse nome como a Gato Vadio e a Utopia no Porto, ou a Letra Livre em Lisboa, por exemplo, disponabilizarão exemplares de certeza.