«Insólito círculo vicioso que aos vinte anos previ quando escrevia Mestre Olof, o drama que se transformou na tragédia da minha vida.Terá realmente sentido eu arrastar-me por trinta anos de uma vida penosa, e ser a experiência a dar-me aquilo que eu já tinha previsto? Durante a mocidade fui devoto sincero, e fizestes de mim um livre-pensador; do livre-pensador fizestes um ateu, e do ateu um religioso. Inspirado por ideias humanitárias preconizei o socialismo, e cinco anos mais tarde mostrastes-me o seu absurdo. Tudo o que me entusiasmou fizestes enfraquecer. Votasse-me eu à religião, e estou certo de que iríeis dentro de dez anos refutá-la.
Não é verdade que os Deuses se divertem connosco, mortais, permitindo que nós, os trocistas conscientes, saibamos rir nos momentos mais tormentosos da vida?
Como quereis fazer-nos levar a sério o que se manifesta como um imenso gracejo?» (págs.229-230)
Não é verdade que os Deuses se divertem connosco, mortais, permitindo que nós, os trocistas conscientes, saibamos rir nos momentos mais tormentosos da vida?
Como quereis fazer-nos levar a sério o que se manifesta como um imenso gracejo?» (págs.229-230)
Não consigo explicar a atracção que este livro teve em mim. Li-o nos finais da década de 70, quando a &etc o publicou, com a mesma excelente tradução, notas e duas redacções cronológicas de Aníbal Fernandes com que a Sistema Solar o publica agora.
Strindberg, neste livro, é inclassificável. A Menina Júlia, outra das obras que conheci dele, está neste momento que escrevo em exibição no Teatro Carlos Alberto no Porto, com encenação de Renata Portas. Inferno foi escrito nos finais da década de 90 do século XIX, possivelmente em Lund, na Suécia e revela um Strindberg atormentado pela doença. Ou melhor, pelas doenças, visto que padecia de várias. Apontar-lhe esquizofrenia, assim, sem mais, é muito redutor, embora a sua obsessão pelo ocultismo e teosofia e pelas Potências malignas fosse uma realidade. A noção que tinha de perseguição à sua pessoa era tal que chega a atribuir uma enorme tempestade de trovões e relâmpagos como um acontecimento que o teria como única vítima.
Católico, não o chega a ser por inteiro, visto que se acantona somente no Antigo Testamento, principalmente nas figuras de Elias, de Job e de Jacob, desprezando o Novo Testamento. Muitas vezes recorre aos Salmos de David para castigar os seus próprios inimigos, existentes ou não, e, não sem grande surpresa, vê-se a ligar o AT à filosofia de Nietzsche. Contraditório e provocador, por vezes violento, a sua vida está intimamente ligada à sua obra, tendo inclusive uma tetralogia que a descreve em romances ainda não completamente conhecidos em Portugal.
Os medos e as obsessões de Strindberg não se podem contar pelos dedos das nossas mãos. As dele, afectadas pela psoríase, levavam-no a pensar que eram estigmas iguais aos de S. Paulo cujo corpo era deformado e dorido. Desde a eletricidade, passando pelos relâmpagos, figuras incrustadas em plátanos malhados, correntes de ferro emaranhado, tudo eram sinais de forças maléficas de demónios que se incarnavam em figuras naturais, animais ou humanas. Alquímico, tentou fazer ouro a partir do carbono e do chumbo, presumo que para mal da sua saúde.
Como ele via a Terra? «Tradução livre: a terra é uma colónia penitenciária onde temos de expiar a pena de crimes cometidos numa existência anterior, e a nossa consciência conserva deles a vaga memória que nos impele a uma melhoria. Como somos todos criminosos, tem razão o pessimista que pensa e constantemente diz mal do próximo» (pág.87)
Aníbal Fernandes, por diversas vezes, aponta algumas incorrecções, contradições e erros, em Inferno, fruto talvez de uma escrita torrencial , mas há uma que não posso deixar de sublinhar pela não compreensão total, quer da mensagem de Jesus Cristo inscrita no Novo Testamento, quando Strindberg o compara a um demónio (já Pasolini o faz com o evangelista Lucas) ou quando afirma que este veio para acabar com a alegria e com o prazer. Para quem admite somente o Antigo Testamento, não deixa de ser um pouco incongruente. Mas a Strindberg tudo lhe é permitido, não fosse ele um escritor dos diabos! Mas o que o liga verdadeiramente ao catolicismo é a sua necessidade de o ligar à «fé dos antepassados».
Não deixa igualmente de ser curioso que eu, neste momento em fase algo depressiva, me tenha dado à leitura de Strindberg. Pela fórmula matemática do - por - dá +, eu já estaria totalmente liberto. Mas não. Esperarei mais um pouco, então.
Nota: a escritora Cristina Carvalho escreveu um livro sobre Strindberg que adquiri há dias e que está na minha lista de leitura.