domingo, fevereiro 13, 2022

«D. Afonso Henriques», de José Mattoso


Até agora o livro mais honesto e mais completo que se escreveu sobre Afonso Henriques e o que ele significa para os portugueses. Tive a sorte de ter José Mattoso como professor, convidado por José Antunes, e somente uma vez por mês, para o Curso de História da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, integrado na disciplina de História de Portugal I. Portanto não chegou a uma dezena de vezes as suas aulas nesse ano, mas sei que o anfiteatro I da Faculdade se enchia e, caso talvez único, eu antecipava-me à hora do início da aula nos dias em que ele estava presente para ter lugar. De voz baixa, de barba bem mais comprida do que tem agora mas já então branca, era de uma clareza e rigor impressionantes, o que demonstra a excelência do seu saber construído e trabalhado ininterruptamente até hoje.

O que traduz a importância desta obra é que, talvez sem o autor o querer directamente, desmente e até destrói, quase todas as narrativas contemporâneas sobre Afonso Henriques, a maior parte encomiásticas e de loas nacionalistas ridículas. Aqui, nas 425 páginas deste livro não há panegíricos que valham a construção da personalidade do homem; mas o seu contrário também é verdadeiro: também não embarca nas críticas racionalistas e liberais que quiseram fazer de Afonso Henriques um mata-frades medieval, isto pela mão de Alexandre Herculano. Os fascismos português e espanhol também são aqui escalpelizados como intrusos propagandísticos que só atrasaram e desviaram os estudos sérios sobre Afonso Henriques. 

O homem não era um santo, mas era cristão; seria talvez colérico e boçal, poderia somente saber assinar o seu nome e escrever o símbolo da cruz entre as palavras «Portugal», mas era igualmente capaz de alguns gestos magnânimos e rodear-se de bons conselheiros como a figura ímpar de João Peculiar ou de Alberto, ou ainda de Gonçalo Mendes de Sousa; era audacioso, mas foi derrotado várias vezes, menos do que ganhou em combate, é certo; era um estratega de grandes batalhas, mas não se coibiu de se juntar a bandidos cristãos como Geraldo Sem Pavor em fossados repentinos e pela calada da noite. Tomou vários castelos em combate, mas muitos deles foram-no combinando traições internas de almorávidas contra almóadas, prometendo isto e aquilo a uns e outros; muitos castelos houve que nem luta deram como Santarém e Palmela, aproveitando as revoltas populares de moçárabes contra principalmente os almóadas, os mais rígidos na «sharia»; a conquista de Lisboa foi infame pela violência dos cruzados flamengos e alemães contra a população a quem tinha sido prometida uma, digamos, «pax lusa», mas nem por isso Afonso Henriques não se deixou indignar, tentando, sem o conseguir inteiramente, expulsar estes cruzados e elogiando o comportamento de ingleses e franceses; combatia o infiel muçulmano, mas não deixava de se lhes juntar para atacar o seu genro leonês Fernando II, ou o sobrinho castelhano. E por aí fora... Mas a leitura de José Mattoso dá-nos a certeza, tal a profusão de notas documentais que exibe e cruza com um saber e oportunidade tremendos, que Portugal nasceu pela divina graça de uns quantos cavaleiros que se estavam a marimbar para uma Hispânia unida coisa que nunca existiu nos anais da História e como hoje ainda se vê. Os ataques à Galiza não eram tanto para a conquista, mas mais para obrigar às conversações entre os magnatas, a custo da fome e destruição de colheitas e casas para as populações que adviria destes ataques feudais. Sim, feudais. Em José Mattoso percebe-se a recusa da discussão tão académica como inútil de saber se a sociedade portuguesa era senhorial, enfitêutica ou feudal. A perspectiva que nos dá é que a vassalagem exigida por Afonso Henriques aos senhores do Norte foi claramente aceite por estes, mesmo quando essa vassalagem diminuiu e passou a ser imposta às Ordens Religiosas e Militares do Sul. Os contratos vassálicos eram claros no deve e haver que os suseranos impunham.

Três pontos dos muitos que valem a pena sublinhar: i, não terá sido Egas Moniz o preceptor de Afonso Henriques, mas sim o seu irmão Ermígio que esteve com ele até à sua morte e um destacado conselheiro; ii, o desastre de Badajoz, em que o rei parte uma perna e o torna inapto para o governo traduz uma verdadeira crise de governo. O rei é preso durante dois meses por Fernando II de Leão que se tinha juntado aos muçulmanos, terá pago um resgate e dado os castelos da Galiza que tinha tomado e perdeu o prestígio que tinha em toda a Europa de então, incluindo o papado, o que levou a uma deserção enorme do seu governo tendo perdido vários chanceleres e alferes que se passaram para Castela e Leão, enquanto Afonso Henriques recuperava em Lafões, mais precisamente em S. Pedro do Sul. A historiografia portuguesa nunca dá relevo a esta questão; iii, quem esteve a gerir esta crise foi o seu filho Sancho, na altura príncipe que continuou a fazer doações em seu nome e a combater a Sul, sendo que muitas vitórias dele foram atribuídas ao pai devido a confusão nos nomes que os muçulmanos davam a Sancho com o patronímico de Al-Rink (corruptela de Henriques, «filho de Henrique»); iv, Em 1179, Afonso Henrique faz o seu testamento pressentido a morte que veio aos 76 anos. Doa a este a àquele, principalmente aos concelhos e aos forais de fronteira. Cria hospitais e mosteiros, aumenta os censo ao Papa. Está claramente a redimir-se. José Mattoso afirma, com factos, que, quanto menos se esperava do papa, vem a bula Manifestis Probatum, reconhecendo-o finalmente como rei, 36 anos após 1143. Dá para pensar. Provavelmente, terá morrido sozinho ou a brincar como uma criança com os seus 10 netos. Sabe-se lá...