segunda-feira, janeiro 25, 2021

Carta entreaberta aos jovens antifa

Porto, na Gato Vadio
À malta mais nova antifa: tenho 64 anos e já vi o suficiente para dar-vos um conselho sem qualquer paternalismo já que devem estar fartos dessas elucubrações de tipos obesos de tanto «achismo». A direita, junto com o PS, entendeu desmantelar, em décadas, o SNS, a educação pública, a habitação social, degradar salários e carreiras, impedir o acesso à justiça (claramente parcial), favorecer e fortalecer até ao inacreditável as multinacionais. Aceitou o Tratado de Lisboa e foi o melhor aluno da Europa no desmantelamento do tecido produtivo do país; apostou em dar cabo dos agricultores e dos pescadores com grande violência para o seu património; encolheu os ombros à floresta a arder; recebeu a troika. contente, radiante e humilhou-vos, mais a nós e aos reformados. Obrigou-vos à emigração. Escarneceu da cultura e do pensamento. Abocanhou a comunicação social. Riu-se da Constituição não a cumprindo nos seus valores mais solidários e sociais. Privatizou à bruta, retirando do interior do país os correios, as escolas, os centros de saúde, os bancos, os comboios e reduziu a circulação dos habitantes do interior até às cidades. Entretanto, o PS, o PSD e o CDS, há décadas no poder, aceitaram, ou na melhor das hipóteses, esconderam a corrupção larvar, a boçalidade política de quem tem lugares assegurados e o compadrio político das jotas e do centrão. Percebem de onde vem a revolta?

Isto não tem nada a ver convosco, nem connosco, nem com os mais velhos e muito menos com as crianças deste país. A esquerda, que agora se apoda na comunicação social, de «extrema», sempre defendeu outras políticas. Sempre resistiu e esteve ao lado dos desfavorecidos, culpados por esta gente de direita de serem pobres. E já passámos bem pior, por muito pior no plano político. Os resultados, são resultados eleitorais. De nada valem se não tiverem continuidade na análise atenta do aproveitamento que o fascismo faz deste lindo trabalho de anos seguidos. A luta far-se-á por todo o lado e principalmente onde estudamos, onde aprendemos sempre, onde trabalhamos e na rua, associando-nos fortemente e levando mais a sério uma coisa que os gregos, avisados, inventaram: a política. E, já agora, o ostracismo para quem atentava contra a democracia. Abraço forte, mas a política não se faz aqui no facebook. Dá-nos, propositadamente e com um forte controlo das nossas vidas,, uma perspectiva completamente errada da realidade. Isso também se aprende depressa.

António Luís Catarino
25 de janeiro de 2021 (um dia após as eleições presidenciais que deu o 3º lugar a André Ventura, atrás de Ana Gomes e Marcelo Rebelo de Sousa e publicada no facebook)

sexta-feira, janeiro 22, 2021

Escritório em ponto de fuga (contínua)


O escritório onde trabalho, onde leio naquele sofá ao fundo, a minha escrivaninha que me acompanha desde miúdo e que não sei como sobreviveu às inúmeras mudanças da vida, onde ouço o meu jazz, a minha música clássica ou o Bowie e Springsteen quando me dá na gana. Os livros estão também comigo, são a minha companhia, se não for demasiado piegas dizê-lo aqui. Os meus desenhos igualmente em gavetas e armários, quase escondidos como alguns desenhos expostos e que ninguém os quis. O desenho foi fruto igualmente do mesmo curso online em que um professor sueco (isto não é para todos!), Mathias Adolfsson de seu nome e que nunca se ri, me ensinou e encomendou este trabalho sobre o ponto de fuga. Avaliou-o em «muito agradável e com ótima profundidade». Não era isso o que se queria com um ponto de fuga? Que ela, a fuga, fosse agradável e profunda?

Uma cidade numa perspectiva isométrica


Quando me inscrevi num curso de desenho online, foi também pelo primeiro confinamento em Março de 2020. Sempre desenhei, mas também fui sendo ciente das minhas limitações técnicas. Desenhar benzinho nunca foi um objectivo meu. Fiquei, portanto, admirado e agradavelmente surpreendido com o desenho de uma cidade isometricamente planificada, se é que se pode dizer assim. As coisas estavam todas no seu lugar, o caos deu lugar à ordem. O que me saía, saía, sem grandes motivos razoáveis ou de grandes arroubos explicativos. Uma casa e um símbolo religioso, um lápis com vida, uma equilibrista sem rumo (talvez um déjà-vu), uma cafeteira automobilizada, um cão que persegue alguém vestido de preto (um assaltante?), um autocarro de anda às voltas... é uma cidade. Minha. Mas de planificação isométrica, não vá o meu professor nórdico zangar-se.

terça-feira, janeiro 19, 2021

«Internacional Letrista, Potlatch nº5 - Que sentido dá à palavras poesia?»

 

Resposta a um inquérito do Grupo Surrealista Belga:

Que sentido dá à palavra poesia?

A poesia esgotou os seus últimos prestígios formais. Para além da estética, está inteiramente no poder dos homens sobre as sua aventuras. A poesia lê-se nos rostos. É por isso urgente criar novos rostos. A poesia está na forma das cidades. Por isso vamos construí-las transformadoras. A beleza nova será DE SITUAÇÃO, quer dizer provisória e vivida.

    As últimas variações artísticas interessam-nos apenas pela força influencial que nelas possamos pôr ou descobrir. A poesia para nós não significa senão a elaboração de comportamentos absolutamente novos e dos meios de nos apaixonarmos por eles.

Internacional Letrista (texto publicado no número especial

de 'La Carte d'après Nature', Bruxelas, Janeiro de 1954

POTLATCH, nº5, tradução de Leonel Moura. Edição portuguesa de Fenda Edições.

domingo, janeiro 17, 2021

«Negreiros-Dantas. Coimbra Manifesto 1925», de Rita Marnoto. Ou de como os «palermas de Coimbra» ousaram lutar contra a Santa Pasmaceira

 

«Negreiros- Dantas. Coimbra, Manifesto 1925», de Rita Marnoto. Capa: João Bicker. Fenda. 2009
Ou os «palermas» de Coimbra lutando na Santa Pasmaceira universitária!

Este livro de Rita Marnoto, editado na Fenda em 2009, levanta questões inauditas sobre o movimento futurista em Portugal. Sabemos que este movimento, cuja figura mais proeminente foi Almada, nunca foi muito homogéneo, mas torna-se mais interessante quando percebemos que em Coimbra se afirmou um fulgor de índole futurista que se opôs, em parte e pela mão do estudante Francisco Levita, contra Almada Negreiros. É Rita Marnoto que nos diz: «A desafiar Almada Negreiros houve muitos, mas a fazê-lo como futurista, Levita teria sido um dos poucos». Antes de apresentar-vos aqui algumas descrições do livro valerá a pena referir Petrus. Não fosse este editor ter arrolado, em enciclopédia, múltiplos manifestos, poemas soltos, livros, panfletos, volantes e papéis de todos os feitios dos movimentos modernistas e de vanguarda, teríamos perdido para sempre um espólio de grande riqueza que fará, certamente, retratar um país um pouco menos parolo e tão sonolentamente académico como o foi no século passado.

Fixemo-nos em Francisco Levita, estudante da Universidade de Coimbra em Direito, menino com posses, vindo de Portalegre, e dado à tão falada coboiada noctívaga da cidade. Também amante da «photographia». Dele, sabemos o que outros deixaram em memórias e está devidamente registado o escândalo no Hotel Palace do Bussaco em que exigiu uma ementa futurista de frango com chocolate e omelete de pêssegos, regado a champanhe o que os fez vomitar na volta da brincadeira, além de uma interrupção abrupta, na Sala dos Capelos, a um famoso lente, logo após a instauração da República que o futurista apoiava. Suicidou-se em 1924, um ano antes do manifesto futurista de Coimbra. Levita não era mau poeta e os seus poemas são claramente futuristas, com onomatopeias, monossílabos ou caracteres tipográficos identificadores da corrente. Aliás, a autora conseguiu resgatar, na biblioteca de Portalegre, outros livros dele que não o manifesto de 1916 que deu mais brado. Falamos do que se opôs a Almada Negreiros.

Não é de todo impossível que Levita tenha conhecido Almada Negreiros quando este último deambulava também por Coimbra, sendo expulso pelo senhorio que era amigo de seu pai. Talvez por se portar bem e ter reprovado por faltas... digo eu. O último verso do manifesto «Negreiros-Dantas» não clarifica se o conheceu ou  não «Este Sterico que eu já vi fazer de gaivota, bailando em noites de podridão, classificou-se agora, é o DANTAS nº2». Ora, noites de podridão, dá-me a ligeira ideia que se trata de Coimbra! Já bailar como uma gaivota, não conhecemos na dramaturgia ou conferências de Almada, tal feito. O que o leva Levita a atacar este? O Manifesto Anti-Dantas é de 1915, um ano antes de «Negreiros-Dantas» e produziu o baque conhecido, maioritariamente pelos saudosistas e naturalistas. Mas por um futurista de Coimbra? «(...) Os meus pensares confirmaram-se quando o pateta que se diz Futurista e Tudo, lançou praï um manifesto em prosa de algodão, tratando de um outro imbecil: o Sr. de Dantas!!,,, Ja é preciso ser Rasco em literatura pra se prender com tal banalidade!!! E' necessario serse idiota ou burro, tarado ou imbecil, ou Dantas, ou cretino ou Almada Negreiros!!!»

Já o Manifesto de 1925 levanta outras questões e a análise torna-se mais atenta porque se trata de um grupo coeso e literariamente mais estruturado. Por isso igualmente mais divulgado tanto no Diário de Lisboa como no Diário de Notícias. Nenhum era natural de Coimbra. Falamos de Mário Coutinho, das Caldas da Rainha, de Abel Almada, de Santana, Madeira, João Carlos, de Ílhavo e António de Navarro, de Nelas. Claramente perfilhados com Marinetti, que o conhecem e lhe leem os manifestos saídos em 1909, no Figaro e em 1912 o  Manifesto técnico da literatura futurista onde advoga «a abolição do advérbio e do adjectivo e o uso de pares de substantivos» como nos diz Rita Marnoto.

Na entrevista que Mário Coutinho dá ao Diário de Lisboa, num quarto da Alta, mais propriamente na Rua das Almas, afirma «Queremos mostrar que Coimbra não morreu, que ainda é um centro artístico, onde há vida, aspirações e gente que sabe o que quer, que tem um fim. Há dez anos, pouco mais ou menos, não sai de cá uma obra que fique, que marque. Nós pretendemos construir essa obra.» 

Mas é António de Navarro que parece ser o mais esclarecido, tendo levado esta gente a organizar-se em torno de duas revistas antes da publicação do Coimbra Manifesto de 1925 - a Bysancio e a Triptico. Esta última aliás recebe directamente de Marinetti os seus manifestos, poemas e opúsculos da Corso Venezia, 61, Milano, pelo que não nos admiramos de ter havido contactos directos entre os futuristas conimbricenses e o papa do Futurismo. O arrojo e a violência verbal (a física nunca foi afirmada pela corrente portuguesa) teve um episódio bem sugestivo: a 17 de Março de 1925, António de Navarro e os seus amigos, promovem um happening futurista no Teatro Sousa Bastos que acabou com uma agulheta de incêndio a encharcar o palco e os conferencistas que, mesmo assim, não paravam de invectivar o público estudantil e, a bem dizer, algo morcão.

Nesta onda, José Régio, que nunca foi um «convicto» do movimento, abordando-o contudo, afirma sobre o movimento futurista de Coimbra num manuscrito inédito e que Rita Marnoto nos apresenta: «Com a intenção de lhe arrancar informações sobre o movimento literário que presentemente arranha a Senhora Pasmaceira de Coimbra, trago até ao quarto andar em que moro o meu amigo António de Navarro» e num diálogo ao que se julga nesse mesmo quarto, onde via Coimbra «lá em baixo», transcreve um diálogo em que António de Navarro lhe confia: « - Ah, meu amigo! Coimbra tem vivido, ultimamente, num verdadeiro estagnamento. Nós pretendemos abrir brecha, despertando energias e desempoeirando o sentido da arte. Que cada um de nós conquiste a sua própria sensibilidade, desprezando os dogmas, as algemas, a galeria - tudo o que possa atirar poeira e nevoeiros aos nossos olhos - Nós queremos Sol e Ar Livre!»

Bom, foi Eduardo Lourenço que nos disse que toda esta energia acabou na Presença, uma moderação dos sentidos e de rupturas, mesmo que mais tarde se tivesse arrependido de o ter dito. O fascismo de 1926 não explica tudo, nem a Santa Pasmaceira de Coimbra. Chega a ser comovedor este livro publicado pela Rita Marnoto. Eis os ditos «palermas de Coimbra». Ou talvez não. Acabaram (quase) todos no esquecimento e no silêncio.

E a pasmaceira continua, agora que veio para ficar, digo, mais uma vez, eu! 

            Fac-simile de «Negreiros-Dantas», de Francisco Levita, de 1916, resgatado por Rita Marnoto

António Luís Catarino
Santa Pasmaceira, 17 de Janeiro de 2021


quarta-feira, janeiro 13, 2021

«As Cidades Invisíveis», de Italo Calvino

 


«(...)Uma a uma, as espécies inconciliáveis com a cidade tiveram de sucumbir e extinguiram-se. À força de dilacerar escamas e carapaças, de extirpar élitros e penas, os homens deram a Teodora a exclusiva imagem de cidade humana que ainda a distingue.
    Mas antes, durante longos anos, ficou incerto se a vitória final não seria da última espécie que resta a disputar aos homens a posse da cidade: os ratos. De cada geração de roedores que os homens conseguiam exterminar, os poucos sobreviventes davam à luz uma prole mais aguerrida, invulnerável às ratoeiras e refractária a todos os venenos. No decorrer de poucas semanas, os subterrâneos de Teodora repovoavam-se de hordas de ratos invasores. Finalmente, com uma extrema hecatombe, o engenho mortífero e versátil dos homens venceu as abusadoras atitudes vitais dos inimigos.(...).»

As Cidades Invisíveis, em As Cidades Ocultas.4. Italo Calvino

quinta-feira, janeiro 07, 2021

«Florinhas de Soror Nada», de Luísa Costa Gomes

 

Ou a vida de uma Não-Santa, como consta do subtítulo. Um guia completo de como se perde a fé quando esta se instala forte e precocemente numa alma inquieta e insubmissa como parece ser Teresa. Desconfio que aqui há qualquer coisa de autobiográfico, embora isso seja de pouca importância para o caso. Afirmo-o porque Luísa Costa Gomes dá a conhecer o processo lento e doloroso da perda de fé que equivale a encontrar-se com o vazio de um mundo estranho, esse que se faz sem Deus, mas igualmente pelo ambiente claustrofóbico e violento de um colégio interno, de uma fuga de casa ou da vivência muito particular de uma família portuguesa dos anos sessenta. A religião católica presente na educação de uma jovem, em que os sentidos e as dúvidas estão mais que nunca presentes e que nos queimam a carne e o espírito. Muita gente da idade da autora sentiu a solidão, e por vezes o desespero, que comporta esse processo. Não é tanto o medo que um(a) jovem pode sentir ao abandonar os predicados religiosos, mas a estranha sensação de estarmos perante o nada, o desconhecido, ou pior, a traição que cometemos quando nos confrontamos com a expulsão dos santos que julgamos mártires por nós. 

E a nossa fuga do mais mártir de todos, Jesus em Golgotá, ele próprio, que falou a Maria que já não era sua mãe. O enorme leque católico de santos e anjos, encontram-se ao lado de Teresa, a protagonista de «Florinhas de Soror Nada», glosa de outras santas florinhas: as de S. Francisco de Assis mais propriamente, mas também as de São João da Cruz, de Teresa de Ávila, de Santa Joana, do jejum de Simeão, da mártir Catarina de Siena e de Santa Clara. A intenção de dar tudo aos pobres, ao despojamento total, permite-nos ler uma das mais significativas (e desconcertantes) passagens do livro:

«(...) Mas dava-se aos pobres, para os pobrezinhos era a fartura. Acabava num ciciar cuspinhado que lhe deixava manchas aos cantos da boca. Teresa sofria em silêncio, ostensiva, e depunha dois ovos em cima do todo. Deveriam ser idealmente ovos de pomba, mas os pobres entendiam a alusão. A mãe dizia: «Que desordem, Teresa! Olha para essa confusão! É assim que fazes o trabalho do Senhor?» Ela desdobrava o pano bordado, engomado e teso e tapava a obra. Era dos três o cabaz mais reflectido, e logo aquele a merecer censura. Coberto, o estandarte do sagrado coração de Maria punha no cesto dela uma erecção obscena. A catequista avisava contra esta prevalência de objectos sobre o comprido, oblongos, cilíndricos, prismáticos, oblíquos, verticais, horizontais, que sugerissem excrescências. (...)»

E quando Teresa, seráfica e decidida, dá aos pobres nesse caminho de santidade não espera por compreensão, tal como os santos não esperavam, no seu martírio, a redenção pelos mortais: ««Trazes aí o quê?», perguntou um. E a mulher, sentada à soleira da porta com o infalível infante adormecido à mama: «É feijão de rabisco, que a gente chama feijão-de-peido, o que há-de ser?, e logo outra, rindo, mais bem treinada: «A menina desculpe, ela não diz por mal, a gente agradece à menina.» Teresa pestanejara à desconsideração, tinha sensibilidade à desconsideração. «Desculpe, sim, mas é que o feijão a mim...» «Dá caganeira.»»

De facto, não há quem aguente as sevícias produzidas pela fé profunda e Teresa, enquanto se recorda da hagiografia de Teresa de Ávila, ascende-se aos céus pelo baloiço libertador, nesta prosa que só Luísa Costa Gomes tem o condão de nos oferecer: 

«(...) Partilha da agonia do amor a ascensão de Teresa no baloiço; perdida e anulada a gravidade do pecado, o escrutínio dos exames de consciência, o cálculo das confissões, a inutilidade dos sacrifícios; na graça do voo em que se lança finalmente, do ponto mais alto das correntes, vai leve e renascida, ao desamparo do ar livre.» 

Ao ler este trecho de «Florinhas de Soror Nada» lembrei-me de alguma lírica de Camões, desses sonetos belíssimos a que a autora deu o ritmo certo em prosa; repita-se: «...na graça do voo em que se lança finalmente, do ponto mais alto das correntes, vai leve e renascida, ao desamparo do ar livre.» A obra de Luísa Costa Gomes surpreende-nos muitas vezes pelo desvio, pelos caminhos laterais da leitura. Por vezes numa cadência de uma falsa lentidão, para um arrebatamento poético de odes perfeitas. E subitamente me dou conta que foi autora igualmente de libretos para ópera e escrita para teatro. Não sei se isto está tudo ligado, como soe dizer-se, mas que existe qualquer coisa de notável e de óbvio na musicalidade da sua escrita que nos envolve de mansinho é uma constatação que se sente. Provavelmente muito minha, mas eu não sou crítico de coisa alguma.

O final do livro é comovedor, não porque puxe à lágrima fácil, mas pela violência marcada de uma vida toda. Afinal, Teresa cresceu como era natural. O que não esperamos são as  cicatrizes, literais ou intangíveis, que acompanham a personagem até ao seu final demente num lar, sem casa, porque vendida pelos filhos para pagar a clínica, com a alegria forçada das voluntárias de hospital e de palhaços de feira dos lares de velhos. Teresa foge do lar como antes, jovem, fugiu do colégio de freiras. Mas a fuga é sem sentido e tem sempre uma lógica: a permanência. A estabilidade de um namorado, ou o encontro de um casamento não propriamente feliz, mas sólido. A cena em que Teresa, já nos oitenta, afirma à neta que teve um encontro com a sua mãe é inesquecível. Apercebemo-nos, no final, que a Soror Nada somos todos. Isto é tudo demasiado frágil e a caminho alegremente do Nada. 

Não deixem a sós este livro. 

António Luís Catarino
7 de Janeiro de 2021