Ou a vida de uma Não-Santa, como consta do subtítulo. Um guia completo de como se perde a fé quando esta se instala forte e precocemente numa alma inquieta e insubmissa como parece ser Teresa. Desconfio que aqui há qualquer coisa de autobiográfico, embora isso seja de pouca importância para o caso. Afirmo-o porque Luísa Costa Gomes dá a conhecer o processo lento e doloroso da perda de fé que equivale a encontrar-se com o vazio de um mundo estranho, esse que se faz sem Deus, mas igualmente pelo ambiente claustrofóbico e violento de um colégio interno, de uma fuga de casa ou da vivência muito particular de uma família portuguesa dos anos sessenta. A religião católica presente na educação de uma jovem, em que os sentidos e as dúvidas estão mais que nunca presentes e que nos queimam a carne e o espírito. Muita gente da idade da autora sentiu a solidão, e por vezes o desespero, que comporta esse processo. Não é tanto o medo que um(a) jovem pode sentir ao abandonar os predicados religiosos, mas a estranha sensação de estarmos perante o nada, o desconhecido, ou pior, a traição que cometemos quando nos confrontamos com a expulsão dos santos que julgamos mártires por nós.
E a nossa fuga do mais mártir de todos, Jesus em Golgotá, ele próprio, que falou a Maria que já não era sua mãe. O enorme leque católico de santos e anjos, encontram-se ao lado de Teresa, a protagonista de «Florinhas de Soror Nada», glosa de outras santas florinhas: as de S. Francisco de Assis mais propriamente, mas também as de São João da Cruz, de Teresa de Ávila, de Santa Joana, do jejum de Simeão, da mártir Catarina de Siena e de Santa Clara. A intenção de dar tudo aos pobres, ao despojamento total, permite-nos ler uma das mais significativas (e desconcertantes) passagens do livro:
«(...) Mas dava-se aos pobres, para os pobrezinhos era a fartura. Acabava num ciciar cuspinhado que lhe deixava manchas aos cantos da boca. Teresa sofria em silêncio, ostensiva, e depunha dois ovos em cima do todo. Deveriam ser idealmente ovos de pomba, mas os pobres entendiam a alusão. A mãe dizia: «Que desordem, Teresa! Olha para essa confusão! É assim que fazes o trabalho do Senhor?» Ela desdobrava o pano bordado, engomado e teso e tapava a obra. Era dos três o cabaz mais reflectido, e logo aquele a merecer censura. Coberto, o estandarte do sagrado coração de Maria punha no cesto dela uma erecção obscena. A catequista avisava contra esta prevalência de objectos sobre o comprido, oblongos, cilíndricos, prismáticos, oblíquos, verticais, horizontais, que sugerissem excrescências. (...)»
E quando Teresa, seráfica e decidida, dá aos pobres nesse caminho de santidade não espera por compreensão, tal como os santos não esperavam, no seu martírio, a redenção pelos mortais: ««Trazes aí o quê?», perguntou um. E a mulher, sentada à soleira da porta com o infalível infante adormecido à mama: «É feijão de rabisco, que a gente chama feijão-de-peido, o que há-de ser?, e logo outra, rindo, mais bem treinada: «A menina desculpe, ela não diz por mal, a gente agradece à menina.» Teresa pestanejara à desconsideração, tinha sensibilidade à desconsideração. «Desculpe, sim, mas é que o feijão a mim...» «Dá caganeira.»»
De facto, não há quem aguente as sevícias produzidas pela fé profunda e Teresa, enquanto se recorda da hagiografia de Teresa de Ávila, ascende-se aos céus pelo baloiço libertador, nesta prosa que só Luísa Costa Gomes tem o condão de nos oferecer:
«(...) Partilha da agonia do amor a ascensão de Teresa no baloiço; perdida e anulada a gravidade do pecado, o escrutínio dos exames de consciência, o cálculo das confissões, a inutilidade dos sacrifícios; na graça do voo em que se lança finalmente, do ponto mais alto das correntes, vai leve e renascida, ao desamparo do ar livre.»
Ao ler este trecho de «Florinhas de Soror Nada» lembrei-me de alguma lírica de Camões, desses sonetos belíssimos a que a autora deu o ritmo certo em prosa; repita-se: «...na graça do voo em que se lança finalmente, do ponto mais alto das correntes, vai leve e renascida, ao desamparo do ar livre.» A obra de Luísa Costa Gomes surpreende-nos muitas vezes pelo desvio, pelos caminhos laterais da leitura. Por vezes numa cadência de uma falsa lentidão, para um arrebatamento poético de odes perfeitas. E subitamente me dou conta que foi autora igualmente de libretos para ópera e escrita para teatro. Não sei se isto está tudo ligado, como soe dizer-se, mas que existe qualquer coisa de notável e de óbvio na musicalidade da sua escrita que nos envolve de mansinho é uma constatação que se sente. Provavelmente muito minha, mas eu não sou crítico de coisa alguma.
O final do livro é comovedor, não porque puxe à lágrima fácil, mas pela violência marcada de uma vida toda. Afinal, Teresa cresceu como era natural. O que não esperamos são as cicatrizes, literais ou intangíveis, que acompanham a personagem até ao seu final demente num lar, sem casa, porque vendida pelos filhos para pagar a clínica, com a alegria forçada das voluntárias de hospital e de palhaços de feira dos lares de velhos. Teresa foge do lar como antes, jovem, fugiu do colégio de freiras. Mas a fuga é sem sentido e tem sempre uma lógica: a permanência. A estabilidade de um namorado, ou o encontro de um casamento não propriamente feliz, mas sólido. A cena em que Teresa, já nos oitenta, afirma à neta que teve um encontro com a sua mãe é inesquecível. Apercebemo-nos, no final, que a Soror Nada somos todos. Isto é tudo demasiado frágil e a caminho alegremente do Nada.
Não deixem a sós este livro.
António Luís Catarino
7 de Janeiro de 2021