«Negreiros- Dantas. Coimbra, Manifesto 1925», de Rita Marnoto. Capa: João Bicker. Fenda. 2009
Ou os «palermas» de Coimbra lutando na Santa Pasmaceira universitária!
Este livro de Rita Marnoto, editado na Fenda em 2009, levanta questões inauditas sobre o movimento futurista em Portugal. Sabemos que este movimento, cuja figura mais proeminente foi Almada, nunca foi muito homogéneo, mas torna-se mais interessante quando percebemos que em Coimbra se afirmou um fulgor de índole futurista que se opôs, em parte e pela mão do estudante Francisco Levita, contra Almada Negreiros. É Rita Marnoto que nos diz: «A desafiar Almada Negreiros houve muitos, mas a fazê-lo como futurista, Levita teria sido um dos poucos». Antes de apresentar-vos aqui algumas descrições do livro valerá a pena referir Petrus. Não fosse este editor ter arrolado, em enciclopédia, múltiplos manifestos, poemas soltos, livros, panfletos, volantes e papéis de todos os feitios dos movimentos modernistas e de vanguarda, teríamos perdido para sempre um espólio de grande riqueza que fará, certamente, retratar um país um pouco menos parolo e tão sonolentamente académico como o foi no século passado.
Fixemo-nos em Francisco Levita, estudante da Universidade de Coimbra em Direito, menino com posses, vindo de Portalegre, e dado à tão falada coboiada noctívaga da cidade. Também amante da «photographia». Dele, sabemos o que outros deixaram em memórias e está devidamente registado o escândalo no Hotel Palace do Bussaco em que exigiu uma ementa futurista de frango com chocolate e omelete de pêssegos, regado a champanhe o que os fez vomitar na volta da brincadeira, além de uma interrupção abrupta, na Sala dos Capelos, a um famoso lente, logo após a instauração da República que o futurista apoiava. Suicidou-se em 1924, um ano antes do manifesto futurista de Coimbra. Levita não era mau poeta e os seus poemas são claramente futuristas, com onomatopeias, monossílabos ou caracteres tipográficos identificadores da corrente. Aliás, a autora conseguiu resgatar, na biblioteca de Portalegre, outros livros dele que não o manifesto de 1916 que deu mais brado. Falamos do que se opôs a Almada Negreiros.
Não é de todo impossível que Levita tenha conhecido Almada Negreiros quando este último deambulava também por Coimbra, sendo expulso pelo senhorio que era amigo de seu pai. Talvez por se portar bem e ter reprovado por faltas... digo eu. O último verso do manifesto «Negreiros-Dantas» não clarifica se o conheceu ou não «Este Sterico que eu já vi fazer de gaivota, bailando em noites de podridão, classificou-se agora, é o DANTAS nº2». Ora, noites de podridão, dá-me a ligeira ideia que se trata de Coimbra! Já bailar como uma gaivota, não conhecemos na dramaturgia ou conferências de Almada, tal feito. O que o leva Levita a atacar este? O Manifesto Anti-Dantas é de 1915, um ano antes de «Negreiros-Dantas» e produziu o baque conhecido, maioritariamente pelos saudosistas e naturalistas. Mas por um futurista de Coimbra? «(...) Os meus pensares confirmaram-se quando o pateta que se diz Futurista e Tudo, lançou praï um manifesto em prosa de algodão, tratando de um outro imbecil: o Sr. de Dantas!!,,, Ja é preciso ser Rasco em literatura pra se prender com tal banalidade!!! E' necessario serse idiota ou burro, tarado ou imbecil, ou Dantas, ou cretino ou Almada Negreiros!!!»
Já o Manifesto de 1925 levanta outras questões e a análise torna-se mais atenta porque se trata de um grupo coeso e literariamente mais estruturado. Por isso igualmente mais divulgado tanto no Diário de Lisboa como no Diário de Notícias. Nenhum era natural de Coimbra. Falamos de Mário Coutinho, das Caldas da Rainha, de Abel Almada, de Santana, Madeira, João Carlos, de Ílhavo e António de Navarro, de Nelas. Claramente perfilhados com Marinetti, que o conhecem e lhe leem os manifestos saídos em 1909, no Figaro e em 1912 o Manifesto técnico da literatura futurista onde advoga «a abolição do advérbio e do adjectivo e o uso de pares de substantivos» como nos diz Rita Marnoto.
Na entrevista que Mário Coutinho dá ao Diário de Lisboa, num quarto da Alta, mais propriamente na Rua das Almas, afirma «Queremos mostrar que Coimbra não morreu, que ainda é um centro artístico, onde há vida, aspirações e gente que sabe o que quer, que tem um fim. Há dez anos, pouco mais ou menos, não sai de cá uma obra que fique, que marque. Nós pretendemos construir essa obra.»
Mas é António de Navarro que parece ser o mais esclarecido, tendo levado esta gente a organizar-se em torno de duas revistas antes da publicação do Coimbra Manifesto de 1925 - a Bysancio e a Triptico. Esta última aliás recebe directamente de Marinetti os seus manifestos, poemas e opúsculos da Corso Venezia, 61, Milano, pelo que não nos admiramos de ter havido contactos directos entre os futuristas conimbricenses e o papa do Futurismo. O arrojo e a violência verbal (a física nunca foi afirmada pela corrente portuguesa) teve um episódio bem sugestivo: a 17 de Março de 1925, António de Navarro e os seus amigos, promovem um happening futurista no Teatro Sousa Bastos que acabou com uma agulheta de incêndio a encharcar o palco e os conferencistas que, mesmo assim, não paravam de invectivar o público estudantil e, a bem dizer, algo morcão.
Nesta onda, José Régio, que nunca foi um «convicto» do movimento, abordando-o contudo, afirma sobre o movimento futurista de Coimbra num manuscrito inédito e que Rita Marnoto nos apresenta: «Com a intenção de lhe arrancar informações sobre o movimento literário que presentemente arranha a Senhora Pasmaceira de Coimbra, trago até ao quarto andar em que moro o meu amigo António de Navarro» e num diálogo ao que se julga nesse mesmo quarto, onde via Coimbra «lá em baixo», transcreve um diálogo em que António de Navarro lhe confia: « - Ah, meu amigo! Coimbra tem vivido, ultimamente, num verdadeiro estagnamento. Nós pretendemos abrir brecha, despertando energias e desempoeirando o sentido da arte. Que cada um de nós conquiste a sua própria sensibilidade, desprezando os dogmas, as algemas, a galeria - tudo o que possa atirar poeira e nevoeiros aos nossos olhos - Nós queremos Sol e Ar Livre!»
Bom, foi Eduardo Lourenço que nos disse que toda esta energia acabou na Presença, uma moderação dos sentidos e de rupturas, mesmo que mais tarde se tivesse arrependido de o ter dito. O fascismo de 1926 não explica tudo, nem a Santa Pasmaceira de Coimbra. Chega a ser comovedor este livro publicado pela Rita Marnoto. Eis os ditos «palermas de Coimbra». Ou talvez não. Acabaram (quase) todos no esquecimento e no silêncio.
E a pasmaceira continua, agora que veio para ficar, digo, mais uma vez, eu!
António Luís Catarino
Santa Pasmaceira, 17 de Janeiro de 2021