A França após a
guerra de 1945: um período muito pouco conhecido e, talvez, um tema ainda
fugidio. Lê-se que foram 75 mil os fuzilados por colaboração com os nazis. A
vida quotidiana passava algumas dificuldades normalmente adormecidas pela ajuda
do Plano Marshall. Mas ainda assim, a vida era difícil. Os costumes não mudaram
muito desde antes de 1939. Os mais velhos e também a sua juventude continuavam,
imperturbáveis, o seu quotidiano. Mantinham-se com os mesmos temas escolares,
com a religião presente em todas as famílias, a cultura francesa dos liceus e
faculdades não tinha sido esquecida e continuava-se a apresentar os mesmos
autores de sempre, quer na literatura, quer na canção ou teatro.
Dois jovens, Patrick e
Marie-José, estão ligados desde a
sua infância mais remota. A amizade junta-os naturalmente, até à descoberta
gradual do corpo de cada um com um primeiro beijo na boca, com umas festas mais
arrojadas, e mais tarde, na adolescência e no liceu, com a necessidade premente
de sexo.
Entretanto, os americanos
assentam arraiais na base militar de
Meung onde vivem os jovens. Os americanos chegam com o jazz, com as Levi´s, as Coca-Colas, os grandes Thumderbirds, Buicks, blusões pretos e costumes sexuais demasiado abertos para a
velha vila francesa, bem espelhados no comportamento das filhas dos oficiais
americanos da base. Os cafés aderem aos hambúrgueres e ao whisky bourbon. A cerveja Budweiser
corre. Mas o racismo e refregas entre soldados brancos e negros não passam
despercebidos. A segregação não é de imediato compreendida na pacata cidade
francesa, mais até pelos jovens franceses que aderem vorazmente ao jazz onde
tocam militares negros e que se tornam amigos. Frequentes vezes os negros são
expulsos nos lugares mais centrais da cidade, por militares brancos
alcoolizados.
Marie-José quer o
corpo de Patrick, mas o medo de
engravidar é maior que dar início a uma experiência sexual total. Vai recusando
a formas mais «seguras» de contacto sexual o que os desagrada sobremaneira.
Procura um médico fora da cidade que, ao saber para que fim se destinava a
consulta tenta abusá-la não o conseguindo, mas, ainda assim, recomenda-lhe o
método falível da temperatura.A França em pequenino. O envolvimento com Patrick degrada-se cada vez
mais. Patrick adere a um grupo misto de jazz com a sua bateria dada por um
sargento americano, Wadd, através de
um mercado negro florescente da base para as vilas e cidades próximas. Wadd
inicia uma relação com Marie-José que pensa, assim, fugir aos estereótipos
franceses, enquanto adere lentamente ao estereótipo americano. Ambos, Patrick e
Marie-José, faltam às aulas e confrontam a vida dos pais que não querem ver
repetidas nas suas. Patrick envolve-se com Trudy, filha de um tenente da base
americana. Os jovens amigos franceses deixaram de se falar ou sequer olhar-se entre os dezasseis e o princípio dos seus dezoito anos. Ignoram-se, dentro da
sua fé americana.
Começam a iniciar-se no haxixe,
na música e no mercado da base através de um amigo, François-Marie Ridelsky, que muda o seu nome para Rydell. Creio que é uma personagem importante
na história de Quignard: frequentemente bêbado, meio louco, hiperativo, empenhado em experimentar a cultura americana até ao limite é, contudo, ele que a desmonta quando começa a
perceber o vazio daquelas personagens que povoam as várias (não foram tão
poucas assim) cidades francesas sob a administração militar americana. O PCF, forte, na ocasião, segrega
igualmente estes jovens, enquanto faz uma campanha cerrada de US Go
Home, lida por todo o lado.
Diz Rydell, a uma
certa altura, tal como um xamã: «Tudo está perdido! Tudo desapareceu como uma
gota de água na imensidão do mar. Entre a alucinação e o caos, o real ergue-se
e respira como uma vaga de nascimento e morte. Mostra-se tão caprichoso, nas
suas consequências, que se torna imaginária, na sua perceção. A trama e a cadeia
de gerações e de metamorfoses prosseguirão no mesmo desenho impaciente,
mortífero e inexplicável. Os sexos ardem. Tudo é fogo, tudo é desejo de
satisfação. Tudo é vontade de encontrar o prazer. Tudo é desejo de morte. Os nossos
olhos nos sonhos, como os nossos olhos na vida de todos os dias, têm sede. Sede
de imagens de sereias que são regadas com a morte que subjugam. Tudo é ódio na
vida, servilismo, pesadelo.»
De novo Rydell,
que se afasta cada vez mais da cultura americana, sem todavia, deixar o mercado
negro da base militar, uma verdadeira caverna de Ali-Baba, para Patrick: «Eles (os americanos) são desprezíveis. São racistas. São a desonra do planeta. Olha para eles. Eles não
compreendem, nem mesmo a música que permitem difundir num continente inteiro. Como
sonhar sequer com uma arte numa sociedade assim tão podre? São fantasmas que
nós servimos. Ectoplasmas de páginas publicitárias, jornalísticas, com ordens
de compra. Não compreendo que estejas apaixonado por Wilbur, de True, dessa
banda de miseráveis. Todos esses brancos que nos roubam e que nos enchem de
vergonha. Os verdadeiros são os negros. Eles, os brancos, são falsos. Olha! São
fantasmas rosados. Deixa-me. Vai à procura de Brenda Lee!»
Rydell clama e todos deixam de o ouvir. Pensam-no louco. Mas, em breve, os factos extraordinários que vamos ler em «A Ocupação Americana» dar-lhe-ão razão. Em 1949, tudo
caminha para um abismo sem sentido. Na despedida dos americanos quando a base é
levantada, o sargento Wadd, despede-se, ironizando: «Vamos go home! Agora,
aguentem com os Russos.» Ainda se pensava que Estaline avançaria para oeste,
mas como diria o padre de Meung: «Alemães, Americanos e agora Russos? Não há
cidade que aguente.»
Um livro essencial em todos os aspetos, porque pode ser
lido de vários ângulos. Mas o abismo e a solidão de uma juventude dividida nos anos pós-45 pressentem-se em cada página da obra.
António Luís
Catarino
Coimbra, 26
de janeiro de 2020