Livro mais que importante, este, a que João Moreira deu
vida escrevendo o prefácio. O posfácio é de Rui Bebiano. João Martins Pereira
(JMP) é um pensador incontornável e um homem de ação, talvez a diferença maior
entre outros pensadores portugueses como José Gil ou Eduardo Lourenço.
Façamos uma breve pausa para conhecermos o autor, até porque
o academismo e media oficiais teimam em esquecê-lo. Nasce em 1932 em Lisboa. No
país que tínhamos, acha melhor por-se ao fresco para Paris entre 1963 e 64.
Entra na Seara Nova até 1968 e a partir de 69 entra na revista O Tempo e o Modo
onde é expulso pelo MRPP em 1971 numa tentativa, infelizmente vencedora, de
controlar totalmente a revista, até aí nas mãos de católicos de esquerda e
revolucionários. Publica vária bibliografia e em 1975 entra para o IV Governo
Provisório como secretário de Estado da Indústria e Tecnologia o que lhe devia
ter dado um grande gozo, visto que o colocaram à frente das nacionalizações das
indústria e banca dos grandes grupos económicos que tiveram um valente susto no
PREC. Entra para a redação do Jornal Combate do PSR entre 1987 e 2003. Morre em
2008.
O prefácio de João Moreira é esclarecedor fazendo uma ponte
entre o pensamento e prática de João Martins Pereira para os dias de hoje onde
«partidos nacionalistas e ultra conservadores» ganham um «avanço galopante.»
Não deixa de ser interessante João Moreira realçar um ponto que era caro a JMP sobre a esquerda de cariz marxista – o da tibieza, timidez e ambiguidade que
esta apresenta face à «questão europeia». João Moreira avisa-nos: a
desconstrução do «mito da CEE» promovido pela «burguesia lusa». Quase tudo o que
JMP escreve veio a dar-se em Portugal desde a nossa adesão à CEE, e após esta, à
UE. Não é poder divinatório do autor é, antes, uma profunda análise política de
base marxista que pôde sequenciar de uma forma lúcida o que – desgraçadamente –
veio a acontecer.
Os escritos de JMP, e escolhidos para este livro, iniciam-se em 1969 e espelha já a
burguesia que temos no movimento de 1820. Uma burguesia não
revolucionária, ligada às ideias puras que gerou este movimento, mas longe da sua
prática o que ajuda à existência de uma estrutura político-jurídica, mas longe
da de uma relação forte com a estrutura sócio-económica ao longo do século XIX.
O ideal republicano seria então uma continuidade renovada do falhanço das práticas burguesas parlamentares que vinha da frágil monarquia constitucional. Ambas
parlamentares e censitárias, como faz notar JMP, citando Jacinto Baptista.
A
aventura golpista de 1926 veio pôr em ordem a chamada estrutura
político-jurídica já há muito em decadência, principalmente desde a
participação portuguesa na guerra entre 1916-18, mas o que se veio a verificar mais tarde,
através da Lei do Condicionamento Industrial (1931) foi a ascensão política da
burguesia dos grandes agrários que tornou Portugal um dos países mais pobres da
Europa à imagem da política salazarista. Ou seja, conjuntamente com a estrutura
agrária consolidada no tecido económico do país e face ao condicionamento
industrial, veio também a impor-se uma diminuta burguesia financeira, comercial
e industrial altamente especulativa o que impedia a acumulação de capital,
necessária ao investimento. A nossa burguesia surgia sempre «colada» ao Estado,
baseada na repressão brutal aos camponeses, aos operários e com baixíssimos
salários. A ordem estava estabelecida, mesmo com o protesto de «modernização
rápida» de alguns visionários do Antigo Regime que apelavam cautelosamente na
Assembleia Nacional por essa mesma modernização. Mesmo tendo este grupo algumas
vitórias criando algumas infraestruturas que apontavam para o reforço da
indústria, encarava-se como «um mal necessário». De facto, JMP situa o
desaparecimento desta ambiguidade no ano de 1949, o que se compreende. Os
trinta gloriosos anos estavam à porta e para sossegar as gentes democratas
estrangeiras lança-se a Lei 2005 de incremento da indústria.
No entanto, é a
Banca a sempiterna Banca, que ganha mais com esta política que continuava
especulativa. Os industriais continuavam gastadores dos lucros obtidos na
atividade e os grandes agrários tornaram-se absentistas e com uma grande margem
de lucro, devido à repressão e baixos salários.
Ora, as décadas de 50 e 60 tornam-se fulcrais para uma espécie de
internacionalização do capital através de uma aproximação europeia. Tarde
demais. A nossa burguesia continuava com uma imagem pouco esclarecida que se
«meteu» num processo de integração europeia sem perceber os custos ou sequer as
consequências, inclusive para o Império.
Citando JMP: « (...) Em resumo, à medida que se aproxima o
dia em que a economia portuguesa se verá desamparada diante de uma Europa pouco
dada a sentimentalismos (e isso será em 1980, na melhor das hipóteses) o
processo de desenvolvimento industrial, em lugar de intensificar as suas taxas
de crescimento e proceder a uma ‘’reorganização’’ de estruturas indispensável,
vê-se travado por um tipo de intervencionismo de Estado que já não é aquele que
as novas circunstâncias exigiriam. A grande burguesia industrial e financeira
compreende que, a longo prazo, a opção europeia é a que mais lhe convém.»
A partir daqui, não esquecendo que isto foi escrito em 1969,
a radiografia que JMP faz da nossa burguesia que se quer (ou é obrigada) a integrar na Europa, é
a de uma classe que nunca sendo liberal, também já não o poderia ser, nos anos
de Marcello Caetano. Assim, a burguesia nacional encaminhar-se-ia para novas
formas de neo-capitalismo autoritário.
Em 1971, no «Comércio do Funchal» jornal da oposição
marcelista e de esquerda, JMP chega a dizer: «a integração de Portugal na
Europa é um assunto a tratar entre os representantes das classes dominantes nos
respetivos países, que acabarão por se entender numa bela madrugada em
Bruxelas, e festejarão o acontecimento, esgotados mas ainda com forças para
beber um cordial whiky que apagará todos os ressentimentos. A História não é
feita apenas por esses senhores e, portanto, os esquemas que elaboramos virão a
ser submetidos à prova dos conflitos que eles próprios terão gerado ou
acentuado». Quem é que em 2020 não assinaria por baixo estas mesmas
considerações?
Em 1997, no Combate e publicado em Papéis 97 de Francisco
Louçã e J.P.Cotrim, João Martins Pereira, perante a violência do
ultra-liberalismo da CEE/UE que ele já aponta nos idos de 1969 e 1971, escreve:
«como forçar os povos europeus a essa violência, que será feita, ninguém
duvida, de elevadíssimos custos sociais (desemprego, precariedade do trabalho,
desmantelamento/privatização dos sistemas de Segurança Social, acentuação das
desigualdades, exclusão, insegurança quanto ao futuro) e políticos (erosão dos
mecanismos democráticos, por imperfeitos que sejam)?». Até pela premonição de JMP: «Até um belo dia a Europa inteira estar na rua.» Já faltou mais...
Um livro a não perder que servirá, certamente, para
conhecermos mais a fundo o pensamento de João Martins Pereira. Já agora uma questão:
a sua obra está recolhida pela Imprensa Nacional? Não seria interessante
publicá-la agora?
António Luís Catarino
Coimbra, 23 de janeiro de 2020