Ler Transiberic Love é um desafio aos sentidos, se ainda os
temos incólumes e isto após os ataques continuados à nossa vida quotidiana
vindas do estado e dos mercados. Revemo-nos nele. Sentimo-lo em cada linha, em
cada palavra, mesmo que Raquel Freire tenha escolhido algumas claramente
panfletárias. Não importa. Aliás, essas palavras tornam-se excepcionalmente
belas no contexto do livro. Tudo ali é coerência, tudo ali se enquadra num
livro emotivo, revolucionário, vívido e, literariamente, extremamente
interessante.
Tinha curiosidade em lê-lo e dois dias me bastaram, rápidos
a absorvê-lo e, principalmente, a compreendê-lo. Estou na casa dos 50 e entre
Janes Joplin e Amy Winehouse, já passaram os Clash, os Velvet Underground,
David Bowie ou Byrne. Filho da tal revolução sexual dos anos 60 e desconfiado
de tanta fruta, preferi, jovem, aguardar pelo movimento punk e ver no que
paravam as modas quanto à libertação sexual, argumentando ao mesmo tempo pela
necessidade de uma revolução social. Entretanto, tal como Maria, personagem
revolucionária do romance, vi-me a comprar jornais todos os dias, a ter
emprego, a gerir o tédio como quem não queria a coisa. Erro meu, erro nosso.
Quando vivíamos a Arte de Viver da Geração Nova, de Vaneigem, não levámos
suficientemente a sério o aviso: «Aqueles que falam de revolução e de luta de
classes sem se referirem explicitamente à vida quotidiana, sem compreenderem o
que há de subversivo no amor e de positivo na recusa das coações, esses têm na
boca um cadáver.» Já Raquel Freire prefere a fórmula de uma revolucionária
obrigando-se a proclamar «se não puder dançar, então isto não é uma revolução».
As personagens de Transiberic Love são livres na sua beleza
andrógina, na recusa de serem catalogados no binómio biológico, provocando a sociedade,
voando com as suas asas de anjos loucos, bebedores, drogados, procurando
violentamente a felicidade. Duvido que não haja o mínimo de comoção no leitor
quando a autora nos faz dançar com Marx, com os que estiveram presentes na I e
II Internacionais, ou quando estamos numa reunião comunitária com transsexuais,
lésbicas, homossexuais ou bissexuais ávidos por reconhecimento das suas
identidades: «Danço. Olho-nos a dançar nas discotecas, mestiçxs, lésbicas
excêntricas em transe, drag queens entusiasmadas, butches loucas, trichas de
tão bichas, drag kings esfusiantes, translovers fervorosas, feministas
radicais, gays musculados como rochas, transexuais eufóricos, lésbicas tímidas
a dançarem possuídas, bissexuais a rirem de todxs, trangéneros ávidos, trans
andróginos mais belxs do que todos os anúncios de Calvin Klein e do que toda a
moda capitalista junta, a palavra de ordem é transformação, toda a vida é feita
de mudança (...),» (pág. 255). É assim, com Camões e a evidência da mudança,
que teremos a certeza que estes nossos filhos da revolução que não quisemos
fazer nos anos 80, nos mandam à cara. Com amor, mas esse amor não é o que
julgamos ser: « - Não é novo! (a noção de amor universal) É um código que
repetimos porque estamos sempre a vê-lo na música, no cinema, na televisão, na
literatura, na religião, na escola, no discurso da família... tudo parece
obedecer ao amor como valor universal: all you need is love. Todas as músicas,
todos os livros, hetero e gays, todos os filmes repetem a palavra amor. Deus é
amor! Todos idolatram o amor: padres, políticxs, poetas, psicólogxs,
professorxs, putas, artistas, jornalistas, sociólogxs, sexólogxs, antropólogxs,
humanistas, socialistas, democratas, monárquicxs, comunistas, fascistas...» (pág.
227) Aqui ninguém sai ileso. Como nos concertos de Jim Morrison, quando
declarava «Daqui ninguém sai vivo», também as personagens de Raquel Freire são
implacáveis na sua fuga para a frente. Não há cedências a ninguém, nem a
nenhuma ideologia. Mesmo Marx aparece como uma ferramenta essencial para
afastar o ressentimento legítimo ao capitalismo «O marxismo salva-me da
tristeza, o capitalismo escraviza-me, repito para mim mesma enquanto danço. É o
meu mantra.» (pág. 136), mas a personagem sabe que tem de travar esse entusiasmo.
No fundo, percebemos a formação filosófica de Raquel Freire a fugir aos dogmas.
Mais uma lição que recebemos na leitura de Transiberic Love. E um aviso sério
meus caríssimos leitores: «Somos sobreviventes, mutantes, répteis voadores, mas
dos que voam baixinho, baratas é o que nós somos, sobrevivemos a todas as
guerras, todos os colapsos dos mercados, todos os desastres amorosos, todas as
overdoses dos nossos amigos, a todas as mortes inglórias, we are young, drunk,
beautiful and free». Seja. Irei com eles. É um livro muito bonito.