segunda-feira, agosto 26, 2013

Livros: Instinto de Morte, de Jacques Mesrine, Antígona



Reli Instinto de Morte de Jacques Mesrine, recém-editado pela Antígona, e muito por causa da crítica de Ana Cristina Leonardo, no Expresso. Isto tem uma história: quando o li pela primeira vez foi em Paris, editado pela então Champ Libre. Nessa ocasião a edição ligava-me à Centelha de Coimbra e tentei editá-lo por aí. Fui até à Rua Béarn para falar com alguém que me apresentasse os direitos de autor e de tradução. Ora, quando me dirigi até lá, não sabia que tinha acabado de ser assassinado Gérard Lebovici o editor de Mesrine. A sanha persecutória da polícia francesa tinha ultrapassado tudo. Acusaram Guy Debord de ser ele o assassino, ou mesmo o seu mentor. A imprensa levantava hipóteses sem fim como, por exemplo, ter sido elaborado por antigos companheiros de Mesrine que, aliás, tinha adoptado Sabrine a sua filha e muito referida no livro. O seu assassinato foi, portanto, uma espécie de ajuste de contas de gente marginal. Com o caso de Guy Debord o caso piava mais fino. Há muito que a polícia queria fazer-lhe uma grande provocação e ele sabia-o. Publicava vários livros na Champ Libre e foi exactamente nessa altura que lá cheguei. Esta completa provocação da polícia a Debord, que mais tarde foi inocentado de tudo, foi muito bem descrita num comunicado do tradutor e editor Júlio Henriques, sob o pseudónimo creio, de Partido da Verdade.
Quando toquei à porta abriram-me uma pequena vigia e de lá perguntaram-me toda a minha identificação. Depois de ter dito que era português e que gostava de saber as condições que me davam para traduzir Instinto de Morte, de Mesrine e outros livros de Debord, fizeram-se desentendidos. Apresentaram-me as Memórias de Bukarine e os cartazes do Maio 68, ou os livros de Censor (Sanguinetti?). Só percebi mais tarde o problema: Debord. Encontrava-se a passar os seus direitos (que eram livres) para o nome de Alice Becker Ho, antecipando talvez as consequências da sua doença. Quanto a Mesrine, tinha acabado de sair uma lei francesa que obrigava a que os direitos de autor de indivíduos condenados fossem entregues às suas vítimas. Mais tarde, com a Deriva, ao publicar Jean-Marc Rouillan (Odeio as Manhãs) e Anjel Rekalde (Dorregarai a Casa-Torre), vim a perceber isto mesmo e a dificuldade legal em editar indivíduos ex-condenados (o primeiro pela militância na Action Directe e o segundo na ETA).
Depois de reler o livro foi uma desilusão: a diferença de trinta anos é grande, mas nunca esperava ver Mesrine (nos anos 80, mantinha ainda um certo halo de herói popular) como um indivíduo tão desprovido de sentimentos como perpassa na leitura do seu livro e na percepção da sua psicologia de assassino muito particular. Anselm Jappe já nos tinha avisado no prefácio: algumas das mortes foram totalmente inúteis, tendo servido somente para aumentar o seu narcisismo e reputação no «meio», como ele diz. As mulheres só são reconhecíveis como tal se forem submissas perante os homens; e se assaltam bancos e fazem frente à polícia são «verdadeiros homens». A tortura é legítima, segundo ele, para os delatores ou os traidores. E fê-lo, sem qualquer problema, a vários deles.
Mas o que mais me surpreendeu é a repulsa que ele tem por quem trabalha. Aliás, roubou, pelo menos duas vezes, grandes somas de salários a empresas. O problema contudo reside na sua opção em não trabalhar: recusava aquilo que os franceses chamam «metro, bulot, dodo» com toda a legitimidade, diga-se. Nada o obrigava a essa vida e poderia, nos anos 60, ter tido várias alternativas. Poderia, inclusive, repetir até à exaustão, que quem trabalha é um escravo moderno (porque de facto o é), mas não tinha o direito (porque contraditório) em adular tantos polícias e inspectores. Ou seja, um polícia é um polícia que faz o seu trabalho, o marginal, também. Logo, está tudo no seu lugar: «eu roubo, porque trabalhar é ser escravo, gosto de assaltar bancos porque há adrenalina e conheço miúdas bonitas e hóteis de luxo», «tu, polícia, tens de me apanhar e se fores correcto comigo, tudo bem, se for mano a mano, és tão honesto como eu!». Seria um resumo das suas ideias. Agora se poderá ver o verdadeiro terror da classe média depauperada, viver entre estes dois extremos!

Fala, uma única vez e no final do livro, de uma pretensa opção política, para explicar o eventual rapto de um líder parlamentar da oposição, porque poria o governo da altura em maus lençóis. Nada mais que isto. Anarquista? Comunista? Libertário? Socialista? De extrema-direita? Esta última hipótese coloca-se simplesmente por ter referido, na sua participação na guerra da Argélia, torturas que executou a árabes, cujo ódio, vai sendo descrito ao longo do livro, juntando a este racismo latente o gosto desmesurado pelas armas. Ficamos sem o saber.