Reli Instinto de Morte de Jacques Mesrine, recém-editado
pela Antígona, e muito por causa da crítica de Ana Cristina Leonardo, no
Expresso. Isto tem uma história: quando o li pela primeira vez foi em Paris,
editado pela então Champ Libre. Nessa ocasião a edição ligava-me à Centelha de
Coimbra e tentei editá-lo por aí. Fui até à Rua Béarn para falar com alguém que
me apresentasse os direitos de autor e de tradução. Ora, quando me dirigi até
lá, não sabia que tinha acabado de ser assassinado Gérard Lebovici o
editor de Mesrine. A sanha persecutória da polícia francesa tinha ultrapassado
tudo. Acusaram Guy Debord de ser ele o assassino, ou mesmo o seu mentor. A
imprensa levantava hipóteses sem fim como, por exemplo, ter sido elaborado por
antigos companheiros de Mesrine que, aliás, tinha adoptado Sabrine a sua filha
e muito referida no livro. O seu assassinato foi, portanto, uma espécie de
ajuste de contas de gente marginal. Com o caso de Guy Debord o caso piava mais
fino. Há muito que a polícia queria fazer-lhe uma grande provocação e ele
sabia-o. Publicava vários livros na Champ Libre e foi exactamente nessa altura
que lá cheguei. Esta completa provocação da polícia a Debord, que mais tarde
foi inocentado de tudo, foi muito bem descrita num comunicado do tradutor e
editor Júlio Henriques, sob o pseudónimo creio, de Partido da Verdade.
Quando toquei à porta abriram-me uma pequena vigia e de lá
perguntaram-me toda a minha identificação. Depois de ter dito que era português
e que gostava de saber as condições que me davam para traduzir Instinto de Morte,
de Mesrine e outros livros de Debord, fizeram-se desentendidos. Apresentaram-me
as Memórias de Bukarine e os cartazes do Maio 68, ou os livros de Censor (Sanguinetti?).
Só percebi mais tarde o problema: Debord. Encontrava-se a passar os seus
direitos (que eram livres) para o nome de Alice Becker Ho, antecipando talvez
as consequências da sua doença. Quanto a Mesrine, tinha acabado de sair uma lei
francesa que obrigava a que os direitos de autor de indivíduos condenados
fossem entregues às suas vítimas. Mais tarde, com a Deriva, ao publicar Jean-Marc
Rouillan (Odeio as Manhãs) e Anjel Rekalde (Dorregarai a Casa-Torre), vim a
perceber isto mesmo e a dificuldade legal em editar indivíduos ex-condenados (o
primeiro pela militância na Action Directe e o segundo na ETA).
Depois de reler o livro foi uma desilusão: a diferença de
trinta anos é grande, mas nunca esperava ver Mesrine (nos anos 80, mantinha
ainda um certo halo de herói popular) como um indivíduo tão desprovido de
sentimentos como perpassa na leitura do seu livro e na percepção da sua
psicologia de assassino muito particular. Anselm Jappe já nos tinha avisado no
prefácio: algumas das mortes foram totalmente inúteis, tendo servido somente
para aumentar o seu narcisismo e reputação no «meio», como ele diz. As mulheres
só são reconhecíveis como tal se forem submissas perante os homens; e se
assaltam bancos e fazem frente à polícia são «verdadeiros homens». A tortura é
legítima, segundo ele, para os delatores ou os traidores. E fê-lo, sem qualquer
problema, a vários deles.
Mas o que mais me surpreendeu é a repulsa que ele tem por
quem trabalha. Aliás, roubou, pelo menos duas vezes, grandes somas de salários
a empresas. O problema contudo reside na sua opção em não trabalhar: recusava
aquilo que os franceses chamam «metro, bulot, dodo» com toda a legitimidade,
diga-se. Nada o obrigava a essa vida e poderia, nos anos 60, ter tido várias
alternativas. Poderia, inclusive, repetir até à exaustão, que quem trabalha é
um escravo moderno (porque de facto o é), mas não tinha o direito (porque contraditório)
em adular tantos polícias e inspectores. Ou seja, um polícia é um polícia que
faz o seu trabalho, o marginal, também. Logo, está tudo no seu lugar: «eu
roubo, porque trabalhar é ser escravo, gosto de assaltar bancos porque há adrenalina
e conheço miúdas bonitas e hóteis de luxo», «tu, polícia, tens de me apanhar e
se fores correcto comigo, tudo bem, se for mano a mano, és tão honesto como
eu!». Seria um resumo das suas ideias. Agora se poderá ver o verdadeiro terror
da classe média depauperada, viver entre estes dois extremos!
Fala, uma única vez e no final do livro, de uma pretensa opção
política, para explicar o eventual rapto de um líder parlamentar da oposição,
porque poria o governo da altura em maus lençóis. Nada mais que isto.
Anarquista? Comunista? Libertário? Socialista? De extrema-direita? Esta última
hipótese coloca-se simplesmente por ter referido, na sua participação na guerra
da Argélia, torturas que executou a árabes, cujo ódio, vai sendo descrito ao
longo do livro, juntando a este racismo latente o gosto desmesurado pelas armas.
Ficamos sem o saber.