[…] a identidade ficcionalizada que Kafka constrói para si constitui, ela própria, um eco de múltiplos modelos de masculinidade epocais, que ele projecta nas suas vivências, como se de um espelho se tratasse. Além disso, com os seus comentários autobiográficos, induz no leitor uma interpretação para os textos, numa mistura entre realidade e ficção, de fronteiras também elas difusas e movediças. A situação pessoal de Kafka adequa-se realmente a essa indefinição e oscilação. Falante de alemão numa cidade de língua maioritariamente checa; filho de um judeu parvenu numa escola e numa sociedade elitistas; dividido entre o Judaísmo assimilado e o fascínio da ortodoxia judaica e da linguagem cabalística; herdeiro das tendências artísticas da família da mãe numa casa dominada por um pai autoritário e orientado para a vida prática, a sua situação é a um tempo real e produto de uma encenação.
Recordem-se, como prova dessa ficcionalização, as referências intertextuais e as influências inspiradoras de textos literários e de comportamentos culturais da sua época e meio sobre as masculinidades que encena como suas e das suas personagens. De facto, a figura do amigo, o destino de Gregor Samsa e o comportamento de Karl Rossmann parecem ser uma ilustração do homem judeu tal como o descreve Otto Weinrich em Charakter und Geschlecht (1903), com sinais de perversão e efeminização, tendencialmente homossexual. Todavia, e pesem embora tratados epocais, a homossexualidade não era na época vista apenas como apanágio dos judeus. No final do século XIX, O homoerotismo era conhecido como "le vice allemand': e o escândalo da "Harden-Eulenburg-Affaire" fez cair a suspeita do homoerotismo até mesmo sobre a figura do jovem Imperador Wilhelm II. A este propósito, Christine Kanz refere que também os escritos do filósofo e escritor Karl Blüher, comprometido com a fundação do movimento dos "Wandervõgel': tratam a homossexualidade como uma constante nas formas de relacionamento masculino em círculos como os do exército, e terão marcado Kafka, nomeadamente no que se refere à ligação intrínseca entre raça, doença e masculinidade (cf. Kanz 2003: 158¬159). Todavia, as propostas de Sacher-Masoch, que atrás referi já como autor da Venus de Peles e que faz a apologia do homem judeu e da família judaica como família ideal, não parecem ter colhido maior simpatia do autor. Estranho poderá parecer, por isso, que na Carta ao Pai, Kafka se queixe de não lhe terem sido transmitidas convicções religiosas firmes, pois afigura-se-lhe que a ortodoxia judaica, que nem ele nem o pai professam, poderia ter constituído uma base de entendimento entre ambos (cf. Kafka 2007: 46-53). Também o homem atlético, o desportista, que integra o imaginário da masculinidade do início do século XX e que inspira a figura do fogueiro e a desenvoltura de Karl Rossmann, em O Fogueiro, as acrobacias que o insecto faz no tecto e que o farão estatelar-se no chão, em A Metamorfose, e as que acompanham o suicídio de Georg em A Sentença, é alvo da desconstrução generalizada a que Kafka submete os modelos de masculinidade (cf. Boa 1996: 109). […] Teresa Martins de Oliveira, «“Os Filhos” de Kafka: Construções de Masculinidades em “A Sentença”, “ A Metamorfose” e “ O Fogueiro”», in Kafka – Um livro sempre aberto.
O Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e o Departamento de Estudos Germanísticos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto levaram a cabo em 5-12-2008 uma jornada dedicada a Franz Kafka, com a qual se pretendeu assinalar o 125º aniversário do nascimento do escritor.Os seis estudos que se publicam neste volume constituem as respostas de outros tantos autores, atentos ao desafio que representa a obra de Kafka, livro sempre aberto a um novo “virar de página”.
ÍNDICE
- Introdução
- Tradução e Edição – A Propósito de Recentes Traduções de Kafka | Teresa Seruya
- Kafka - Uma Habilidade Necessária | Nuno Amado
- “Os Filhos” de Kafka: Construções de Masculinidades em “A Sentença”, “ A Metamorfose” e “ O Fogueiro” | Teresa Martins de Oliveira
- Kafka - Os Paradoxos de “O Novo Advogado” | Gonçalo Vilas-Boas
- Fantasias de Fragmentação em Conrad, Kafka e Pessoa | Gerald Bär
- À Conversa com Manuela Bacelar
- Anexos Ilustrações de Manuela Bacelar – “Kafkas para que vos quero”