segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Inês Fonseca Santos conversa com Catarina Nunes de Almeida

Inês Fonseca Santos. A Adília Lopes escreveu a sua autobiografia sumária (e é uma autobiografia simultaneamente ligada ao real e à poesia; à vida e à obra). Consegues escrever a tua?

Catarina Nunes de Almeida . Dificilmente. Não tenho jeito nenhum para falar de mim com ironia. Até lá ainda tenho que aprender a fazer umas quantas caretas à frente do espelho!

IFS. Lembras-te do primeiro poema/verso que escreveste? Tinha alguma palavra no feminino?

CNA. Raramente memorizo versos de poemas, nem mesmo dos meus. Mas lembro-me que aquilo que escrevi, logo desde cedo, tinha uma dimensão física muito grande – creio que, de certo modo, o meu crescimento nas palavras acompanhou o crescimento do meu corpo. Além disso, quando começamos a escrever, estamos muito comprometidos com as nossas experiências pessoais, com a nossa aldeia de afectos, com o nosso umbigo. Há muita inocência, muita sinceridade, porque ainda não retiramos grande gozo a brincar aos poetas-fingidores e a ampliar os pontos de vista. Falta geralmente, nos primeiros poemas, um pouco de sombra. Por isso, a dimensão feminina dessas minhas primeiras palavras, por certo, saltava à vista de forma muito evidente.

IFS. Hoje, no século XXI, ainda se escreve poesia no feminino ou o(s) género(s) caiu(caíram) em desuso?

CNA. Não sei se sei falar sobre isto. A escrita ou é uma apropriação de experiências de outros, ou é uma reciclagem de experiências próprias, ou é devaneio puro. Nessa medida, creio que a poesia pode corresponder a todos os géneros, inclusive ao neutro (aquele que, na verdade, não morreu com o latim). Julgo que o importante é estar apto para separar aquele que escreve daquele que é escrito – ou seja, o sexo do poeta não deve ser confundido com a sua expressão, com a sua voz. Mas como disse: não sei se sei falar sobre isto. Por enquanto, para mim, são questões que podem ficar à margem.

IFS. E voltando a este nosso século XXI, ainda temos palavras para usar, para gastar nos poemas (quer seja no feminino, quer seja no masculino)? Ou já foi tudo dito, como se anunciava nos anos 70 do século passado?

CNA. Penso que neste nosso século XXI o exercício pode ser bem mais interessante do que foi até aqui. Eu creio que a escrita ganha muito ao passar por outros processos criativos que não a simples busca de palavras raras ou novas. O meu terceiro livro, «Bailias», nasceu através de um desses processos, a que chamaria mesmo de “reciclagem”. Podemos resgatar uma linguagem ou uma estética datada e perdida no tempo, e conceder-lhe um novo fôlego ou um efeito inesperado. É uma grande ousadia e um grande desafio. Outra forma de escrever pode ser também contrariar a própria escrita. É um processo que ponho em prática muitas vezes, sobretudo quando comecei a conhecer com mais profundidade as poéticas do Extremo Oriente. A poesia não tem que ser a procura desmedida de palavras – pode muito simplesmente passar por uma prática de “higiene” na linguagem (para usar a expressão de Ezra Pound): uma limpeza do verso, uma redução do mundo ao seu grãozinho essencial. Assim é mais difícil que as palavras se desgastem.

IFS. E há palavras para recuperar? Como, por exemplo, a palavra "poetisa"?

CNA. O que mais existe são palavras para recuperar. Quanto mais recuamos na língua, mais nos surpreendemos com palavras-monumento. O poeta já não é só um fingindor; o poeta é um arqueólogo da linguagem, cada vez mais. Sobre a palavra “poetisa” é que não tenho muito a dizer: eu não distingo o poeta da poeta, assim como ninguém distingue o malabarista da malabarista.

IFS. Tu és poeta ou poetisa?

CNA. Poeta.

IFS. Muitas feministas odeiam o Pessoa. E o Pessoa falava dos casos de "feminino mental", referindo-se a uma determinada sensibilidade e ao modo de a expressar. Ainda existe essa sensibilidade feminina? Fazes uso dela? Ou ela apenas serve (e estimula) a ironia?

CNA. Acredito nesse “feminino mental”. E sim, faço uso da minha experiência enquanto mulher em quase todos os momentos da minha escrita. Ser mulher não é para mim um acto isolado – no meu caso, essa condição aderiu visceralmente às palavras e nunca procurei afastar-me disso.

IFS. O mês de Março é também o mês da Primavera, e a Primavera costuma associar-se à mulher, ao feminino. Lembro-me de uma história do Manuel António Pina em que ele dizia ter levado anos para conseguir usar a palavra "pétala" num poema. Conseguiu, mas assumiu que sempre teve medo dessa palavra. Alguns poetas - sobretudo homens - têm realmente medo de algumas palavras. E tu, Catarina, consegues identificar palavras que te assustam, de que desconfias, e que recusas quando escreves?

CNA. Não descobri ainda nenhuma palavra que considere “interdita”. Mas a poesia é para mim um veículo essencial de Beleza, pelo que mantenho uma postura muito selectiva e resistente em relação às palavras. Procuro, principalmente, trazer para os poemas palavras com um certo grau de nevoeiro, que facultem um pouco de sombra, que potenciem a placidez das imagens. À parte disso, devo confessar que gosto muito de advérbios de modo. E de dar o braço a torcer em relação a certos adjectivos.

[versão completa publicada por Inês Fonseca Santos no Facebook]