domingo, setembro 26, 2010

Estranhas Criaturas, Henrique Manuel Bento Fialho

Estranhas Criaturas apresenta-se sob a epígrafe de Calvino:
Relegada durante longas eras em esconderijos longínquos, desde que fora apeada do sistema das espécies agora extintas, a outra fauna voltava à luz vinda das caves da biblioteca onde se guardam os incunábulos, lançava-se em grandes saltos dos capitéis e dos algerozes, empoleirava-se nas cabeceiras dos dormentes. As esfinges, os grifos, as quimeras, os dragões, os hircocervos, as harpias, as hidras, os unicórnios, os basiliscos retomavam a posse da sua cidade. | Italo Calvino

Depois é um desfilar de Estranhas Criaturas.... como esta:


HIRCOCERVOS

   As estantes estão cheias, a cabeça cheia de pó, o chão desarrumado. Não admira que os pés tropecem, que a cinza ameace o céu limpo. Todo o azul celeste mete medo, todo o mar. Caminham por dentro dos músculos as notícias, o futuro antecipado, as previsões metrológicas.
   Ao carpir das sirenes, os homens chegam-se às varandas. Abrem os estores, dilatam as pálpebras, olham por cima dos pijamas os lençóis da cama onde pernoitam arrumados. Costas com costas, pobres cães vadios, esperam a hora de ir para os empregos. Perfumados. Trabalham o cansaço, uma dor na coluna vertebral, aquele ouvi dizer que sabia como quem traz prendas para casa. Uma consola para o menino, um adereço para a Barbie.
   Fazem flexões, alongam os músculos, esticam os ossos como quem estica os cordões à bolsa, o estendal de pendurar a alma todos os dias, à mesma hora, até que o coração diga basta. A um canto, o grito incita a fome: gostamos dos aranhiços, das pulgas, das infiltrações. Única distracção no caminho das horas.

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