quarta-feira, março 26, 2025

«A Ideia», 104/105/106

A Ideia, 104/105/106. Outono de 2024. Periodicidade anual

A IDEIA - 104 / 105 / 106
revista de cultura libertária

outono 2024

director: António Cândido Franco

editor gráfico: Luiz Pires dos Reyes

268 páginas

SUMÁRIO DE MATÉRIAS
A. Cândido Franco – Sobre o 25 de Abril – da revolução ao colapso
Beldiabo – Ideias, precisam-se
Manuel da Silva Ramos – Plongée sobre os meus anos de 74 e 75
José do Carmo Francisco – Pranto e lamentação de Joana em 22 versos
Adriano Alcântara – País de partida (trecho final)
Risoleta Pinto Pedro – Os dyanthus caryophyllus
Teresa Ferrer Passos – A luz rompeu a noite
Pedro Ferreira – Da censura ao jogo de interesses
Jorge Leandro Rosa – Simone Weil: o activismo e os trabalhos da alma
Simone Weil – Carta a Georges Bernanos
A. Cândido Franco – Sobre a carta de Simone Weil a G. Bernanos
José Carlos Costa Marques – Pomar na vertente escarpada
Amadeu Baptista – Os dias invisíveis
A IDEIA – Cem anos da rebelião surrealista
Pedro Martins – Camões: antigas e novas andanças da heresia
Nuno Júdice – No centenário do surrealismo
Paulo Jorge Brito e Abreu – Menagem-homenagem a Nuno Júdice
Grupo DeCollage – Por uma nova convocação dos cúmplices
Michaël Lowy – Um manifesto libertário
Paulo Jorge Brito e Abreu – O surrealismo no lance
Manuel Almeida e Sousa – Mandrágora
Pedro Águas – O primeiro dos primeiros poemas
Duas cartas inéditas de Pedro Águas
Penelope Rosemont – Charles Radcliff (1941-2021)
Nicolau Saião – Um voo sobre o surrealismo
José Manuel Rojo – Eugenio Castro (1959-2024)
José Estevão – O estado poético do entomólogo
A IDEIA – José Maria Ferreira de Castro (1898-1974)
Bernard Emery – Murcharam mesmo os cravos da esperança?
Ricardo António Alves – Jaime Brasil e Ferreira de Castro
Mara Rosa – Jaime Brasil (1896-1966)
Jaime Brasil – Postal a Pinto Quartin
Tomás Ibáñez – Carta a Catherine Malabou
La “Oveja negra” de Ana María Matute – Almerinda Pereira
Clandestinos do anarquismo – Sebastian Kalicha
AMGD 102 – Maria Estela Guedes
Quatro pneus furados – Henrique Manuel Bento Fialho
Contestação lúdica da extrema-direita – Henrique Garcia Pereira
Sobre o anarquismo de direita – Jerónimo Leal
Dos nazis a Elon Musk – Irénée Régnauld
Oração II – Maria Estácio Marques
Os impertinentes – Carlos Oliveira Santos


LEITURAS & NOTAS
[Alain Gras, Cassandra Querido, François Jarrigue, João Freire,
José Nuno Lacerda Fonseca, Sebastian Kalicha, Tomás Ibáñez]
BIBLIOGRAFIA
[A. Cândido Franco, João Freire, Paulo Guimarães, Mara Rosa]

[este volume da revista A IDEIA comporta um primeiro suplemento com inéditos em verso & outros achados poéticos de Nunes da Rocha & um segundo de João Freire intitulado Um Futuro Perigoso ideologias, políticas, interesses – num mundo finito & ainda um encaixe em papel IOR de quadradinhos a preto e branco da autoria de Ariana Vitorino com A VIDA DE EMMA GOLDMAN]


 

«Liberne», Júlio do Carmo Gomes

 

Livros Flauta de Luz, 2025. Ilustrações de Rita Faia
Distribuição: Antígona
Um livro mágico, este novo «Liberne» de Júlio do Carmo Gomes. O subtítulo denomina-se «Histórias dos montes baldios» e é fruto de uma longa estadia, em residência artística, em 2021, promovida pela Rural Vivo no Gerês do nosso imaginário. Não é por acaso que escrevo «imaginário», porque a maior parte de nós (que vivemos nas cidades, bastando para ter esta certeza ver a distribuição populacional do recanto) estaremos muito longe da vivência real e mítica do campo, daquela que teimosamente as gentes de lá se agarram ao ancestral, aos velhos costumes dos compartes na organização social e numa auto-produção realista, autónoma. Senti-o, pessoalmente, quando estive três dias na aldeia do Campo do Gerês, durante um festival rural. Foi evidente a minha distância tímida face ao modo como as pessoas vivem o campo, reparar na vida comunitária e várias vezes me dei a pensar como se poderia transpor esta forma de vivência social partilhada, justa, capaz, para uma cidade onde as pessoas mal se conhecem, onde vivem sozinhas, expostas ao frémito urbano e ao oblívio quando velhas, quando a única ligação social que tinham eram os laços do trabalho produtivo para o lucro de alguns. Pensei igualmente num outro livro, este de João Carlos Louçã, «Pensar a Utopia», quando permaneceu nos Pirenéus e nos deu a conhecer também as colectividades urbanas, no Porto, que promovem as trocas justas e as relações humanas nas grandes cidades. «Liberne» obriga-nos igualmente a tecer hipóteses de construir, de optar, perante o vivido pela sua leitura. Apetece fugir daqui, da cidade.

Não se pense, contudo, que a vida rural, assente em milenares hábitos comunitários, não está isenta de regras rígidas. Não é a «liberdade» completamente livre como se pensa nos chamados mitos urbanos. No decorrer da leitura de «Liberne» deparamos com uma justiça ancestral, mas óbvia nas suas regras, quer por quem aplica as leis não-escritas, bem entendido, mas também quem as recebe como multas em que o próprio «réu» também beneficia. Assim se faz a cola social baseada num saber adquirido há muito. A construção de uma base social é definida por todos, que delimitam o que é bom para a comunidade e o que é nocivo, que afastam os que não aceitam as regras e que põem em causa esse cimento de que são feitas muitas das comunidades do Gerês ainda hoje. O excelente conto «A Condena» é disso um exemplo: as regras são rígidas, até violentas, mas capazes de perdoar, de integrar, de absorver o que transvia, talvez a hipótese última de continuar o ancestral ritmo de vida rural comum a todos. O comunitarismo é explicado, em todos os contos, pelo fruir do que lemos com prazer e sem qualquer entrave de suposta matéria pseudo-pedagógica que não é para aqui chamada. 

Em «Laura» estamos perante uma magia pura. Daquela que nos lembra um Rulfo, um García Marquez. Se Júlio do Carmos Gomes escreveu e apurou a sua escrita (este livro não é o seu primeiro, já aqui falámos do seu «Urro») em quatro anos, ou seja, desde 2021, para este livro valeu cada dia. A relação de Laura, a personagem quase banida, com os lobos, esse animal mítico do campo, incompreendido pelos citadinos que abanam a cabeça de assentimento quando os caçadores abatem estes animais como neste momento está a acontecer no estado espanhol, no Xurês galego confinante com o Gerês, e com o beneplácito da UE, é um tríptico inconfundível à individualidade livre, ao mundo partilhado com os animais selvagens e um afastamento claro do cristianismo feito beato que, como sabemos, aproveitou-se de cada ritual «bárbaro» para se integrar melhor nas comunidades e assim abastardar esses mesmos rituais. «Nas terras altas do Gerês, o lobo é o animal fetichizado consagrado ao ritual de luta e sobrevivência com a natureza. É o animal heráldico e sobrenatural, a besta excluída da própria natureza. Forma atávica de o bicho-homem querer, ilusoriamente, humanizar-se e negar a sua própria natureza. A aldeia fica em alvoroço com a descoberta. À boca pequena, o povo aumenta a parada: que Laura não é Laura mas Eufémia, jovem que veio um dia fugida e que ali viveu séculos antes. (...)» (pág.55).

Em «Guardião», Júlio do Carmo Gomes apronta a sua imaginação literária para uma distopia que conseguimos rever tudo aquilo com que as populações do Gerês, alertadas, assustadas e revoltadas contra quem se movem máquinas de extracção das «terras raras», eufemismo trumpista e putinista para uma violência concertada contra o planeta; certamente os ciborgues nos anos 40 do século, que são atacados como forma de resistência das populações a quem foi negado o sossego comunitário. É aí que se destaca o papel das administrações locais, centrais e do Parque do Gerês também ele conluiado com este estado de coisas. Aqui, nestes contos foge-se ao panfletário. Trata-se de um livro de contos estruturado, pensado em cada palavra para ter o efeito desejado pelo autor. Neste «Guardião» o registo literário é de uma grande coerência. Na impossibilidade o colocarmos aqui na sua totalidade apresentamos uma parte do que entendo ser um autêntico manifesto poético do comunitarismo:

«(...) Vem pelo teu próprio pé. Não te apresses pois a sair da encruzilhada. Não te apresses a sair da encruzilhada nem do carreiro ladeado de giestas bravas e de carqueja, fincado pelos pés dos humanos, fincado pela memória de pastores e pastoras, fincado pelos pés dos teus próprios avós, fincado ao longo de séculos por gerações atrás de gerações e que a chuva, o vento e o estio ajudaram a assentar, calcando-o como a pedra antiga da mó moeu o milho que salvou o ano, sulcando o chão que pisas e onde também tu escreves o teu nome e a tua história, homens e mulheres cuja luta ao longo do tempo te abriu a clareira que agora atravessas, por onde agora caminhas e te acrescentas à vida, rendido ao canto que anuncia o crepúsculo, deslumbrado com os pirilampos que cintilam entre os silvedos e pressentindo na obscuridade o rumor que se levanta dos milhares de passos das crianças que desabriram pelos trilhos, consagrando no seu passo miúdo e irrequieto a vida sagrada da infância e fazendo fremir o chão, percorrendo a cangosta sem enxergarem as sombras do mundo (...)» (págs.92,93)

Um livro a não perder, a ler e voltar a ler, pelas expressões, pelas palavras e vocabulário aquilino, uma festa para os sentidos e para os sonhos que ainda permanecem em nós, de um dia podermos viver juntos de seguir os passos de uma república das crianças de que falava Virgílio Martinho ou Raoul Vaneigem. Atenção igualmente às excelentes ilustrações de Rita Faia.

alc

domingo, março 23, 2025

Genebra-Lausana-Gruyères em Fevereiro

 

Genève - estátua de Rousseau na ilha homónima
Os livros sobre Rousseau comprados num dos melhores alfarrabistas de Lausanne

Genève, perto da casa de Rousseau

Em Fevereiro, um assalto à vila e castelo de Gruyère com Alpes ao fundo.

A casa de Rousseau transformada em museu.

sexta-feira, março 21, 2025

«Niels Lyhne», Jens Peter Jacobsen

 

Antígona, 2024. Tradução do dinamarquês de Elisabete M. de Sousa
Posfácio de Claudio Magris, trad. de Miguel Serras Pereira
Uma descoberta de um livro notável de um escritor quase desconhecido por cá. Jens Peter Jacobsen foi um escritor dinamarquês falecido em 1885 com apenas 38 anos de idade e é considerado como uma dos melhores da sua geração, já que era lido e admirado por Rilke, Kafka, Joyce e um tal Thomas Mann, facto sublinhado e destacado pela editora. Rilke dizia que era o seu livro de cabeceira, «porque estava lá tudo». Não valerá a pena ir a estes nomes que só dificultam qualquer comentário já que as suas sombras se colocam atrás da pantalha a observar o conteúdo dos escritos. Sei que me lembrei várias vezes de «Morte em Veneza», o que me leva a pensar até que ponto o Sr. Mann não se terá inspirado neste «Niels Lyhne». Também pensei em Hardy, em Proust, em Canetti, mas que tem isso a ver? Adiante.

É difícil esquecer um livro destes. Aliás, nem isso é possível tal a força que é imprimida ao romance. Trata-se de uma vida. Uma vida de Niels Lyhne, um jovem que se torna ateu, mas não me parece que seja esse o principal tema do livro e apontado várias vezes no posfácio de Claudio Magris. Acredito mais na também referida influência do filósofo dinamarquês Kierkegaard, de Nietzsche, de Darwin e que Jacobsen traduziu a obra principal deste último para dinamarquês. A questão do ateísmo estava muito presente no final do século XIX através do positivismo, mas também é verdade que esta corrente secou bem depressa, tornando-se enfadonha e muito pouco transformadora, dando, contudo, à Ciência um papel determinante. Isto não bastava aos filósofos aqui citados e principalmente a Nietzsche que procuravam uma alternativa espiritual para a humanidade que se afastava irremediavelmente de deus. Mas Niels não é de modo algum um «super-homem» que idealizava o filósofo alemão. É antes um homem que se vê reflectido continuamente pelo passado e o pesa na sua consciência ética livre de amarras religiosas e até sociais. Neste romance a sua vida entra-nos pela nossa dentro, como uma invasão surda, mas verdadeira, uma verdade em extremo, e é isso que o faz o livro ser inesquecível. Nós somos o nosso passado e estamos sozinhos no mundo. Essa é a condição presente em nós e quando caminhamos para o futuro levamo-lo com ele, não como um fardo (isso será muito luterano ou católico, como preferirem!), mas como um conjunto de momentos felizes ou trágicos que nos moldam o carácter. 

Jacobsen era igualmente botânico e um apaixonado pela Natureza, como será óbvio imaginá-lo. A sua descrição naturalista dos cenários observados em diferentes estações é de ser guardada nos anais da literatura. A densidade psicológica que ele imprime às suas personagens é de uma grandeza absoluta, comparável a um Proust. Não me atrevo sequer a colocar aqui um trecho deste livro fabuloso. Perderia todo o seguimento, toda a vivacidade ou o vigor que nos obriga a lê-lo num único dia. 

Será um erro a tentativa de classificá-lo em qualquer movimento literário dos finais do século XIX. Não haverá qualquer possibilidade de o compartimentar no romantismo (ele nega-o no romance) ou no realismo. De facto é um livro que «tem lá tudo», repetindo o que dele disse Rilke, mas é de uma coerência total. Pode ser naturalista, até anarquista, pouco importa. Aquilo é vida e morte. Senso e não senso. Paz e ferocidade. Torno e retorno.

Uma referência à tradução directamente do dinamarquês de Elisabete M. de Sousa: não terá sido certamente fácil e as suas notas são utilíssimas para o leitor não familiarizado com a Dinamarca e a sua cultura nórdica. É uma tradução que nos dá segurança, confiável, portanto. O mesmo acontece com a tradução do posfácio de Claudio Magris, autor incontornável, por Miguel Serras Pereira e que, salvo melhor opinião, deve ser lida, mesmo, só no final da leitura contrapondo aqui e ali alguma opinião nossa.

alc

quinta-feira, março 13, 2025

«O Futuro é o Mal», Heiner Müller

 

Língua Morta, Janeiro de 2025.
Organização e Tradução de Fernando Ramalho
Foi no já longínquo 1992 que me deparei, pelo Teatro da Cornucópia e por Luís Miguel Cintra, com a dramaturgia de Heiner Müller. Em Janeiro, com «A Missão» e, logo em Abril, com «Mauser». Desde aí, não mais me separei dele, dos seus ensaios, da sua poesia e do seu teatro. Caso único que me aconteceu após ter assistido a «Mauser», no Teatro do Bairro Alto: presente com amigos, estive horas, pela noite dentro, sem conseguir dizer uma única palavra. Nem a efervescência dos bares do Bairro me conseguiram arrancar uma única formulação, mesmo rápida, sobre o que senti. Tarde demais, balbuciei qualquer coisa entre «violência», «angústia», «guerra», «aniquilação» pensando que assim, bem vistas as coisas, poderia construir uma síntese desesperada para explicar todo o complexo mundo de Müller. Este livro trouxe-me o que de melhor tem Heiner Müller e por via da Língua Morta e de Fernando Ramalho que o organizou e traduziu. Fez mais do que isso: afastou a lógica cronológica, até certo ponto limitadora da obra do autor, e desenvolveu um livro sólido perante a já citada complexidade do pensamento de Müller. Não tendo sido tarefa fácil, conseguiu-o plenamente com a tradução sustentada, e referida pelo próprio organizador, com os anteriores trabalhos de João Barrento e Adolfo Luxúria Canibal. As entrevistas a Müller são tão esclarecedoras que me pergunto por que razão não as conhecemos antes traduzidas para português. Os seus poemas, a sua biografia, os seus pensamentos e a lógica emprestada por Fernando Ramalho nos seus textos complementares são um exemplo de sobriedade e de seriedade.

«Desespero» e o seu anjo. Era esta a expressão mais evidente e mais lógica que eu poderia ter dito nessa ocasião, em 1992. Retomo a leitura: «O Anjo Desditoso», embora diferente de «O Anjo sem Sorte» da tradução de João Barrento na Relógio D'Água (editado em 1997, um ano após a morte de HM), tem a mesma cadência, nada perde em absoluto, talvez até ganhe mais solidez nas expressões apresentadas e isso acontece igualmente com «O Anjo do Desespero», de 1979, que ganha uma nova força. «O Anjo Desditoso 2», de 1990, que não consta no livro da Rd'A, é escrito após a queda do Muro de Berlim e vale a pena dar-vos a conhecer a versão de Fernando Ramalho neste «O Futuro é o Mal»:

Entre cidade e cidade
Depois do muro o abismo
Vento pelos ombros a estranha
Mão sobre a carne solitária
O anjo ouço-o ainda
Mas ele já não tem outro rosto a não ser
O teu que eu desconheço

Heiner Müller tem uma relação tensa com a Alemanha, tal como vimos em outros autores de língua germânica e aqui lembramo-nos dos austríacos, mais livres de escrutínio antinazi (até sabemos porquê!) que os seus congéneres alemães. Essa tensão é medida nos escritos de HM tanto para a RFA, como para a RDA em que viu os seus escritos serem proibidos ou censurados. Mas o tal «abismo» que ele vê na queda do muro e exposto no poema acima transcrito é apresentado como uma espécie de vazio que nunca poderia ser preenchido numa sociedade capitalista que ele condena com um socialismo que já não o era há muito. Deixou-se morrer, tal como a Revolução de Outubro. O fim de uma era suscita-lhe o tal anjo que ainda o sente, que ainda o ouve, mas que desconhece o rosto antes deformado por Klee ou pelo anjo da História de Benjamim.

Observem a síntese de Fernando Ramalho sobre a escrita de Heiner Müller:
«Além dos mortos, há também muitos dos seus contemporâneos a habitar os seus textos, expressa ou implicitamente. Figuras como Anna Seghers, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Ernst Jünger, Jean Braudillard, Alexander Kluge, entre muitos outros, foram, em tempos e modos diversos, participando desse diálogo incessante com a tradição. Como, de resto, também figuras do seu espaço familiar ou episódios da sua vida: a relação tensa com a memória do pai e do avô, o suicídio da segunda mulher, Inge Müller, a possibilidade de viajar com alguma frequência para fora da RDA, as dificuldades de relação com a RDA e as suas instâncias políticas e culturais, a relação feliz com a sua última mulher, Brigitte Maria Meyer, ou o cancro no final da vida.
A composição desse mosaico povoado de espectros, vozes, labirintos, memórias, sonhos, imagens de uma expressividade e violência sem concessões, implicou sempre, para Müller, um trabalho aturado sobre a linguagem que, com o passar do tempo, foi consolidando uma tonalidade elíptica e fragmentária.» (pág.132,133)

Sobre o título deste livro «O Futuro é o Mal», que alguns, seguramente, entenderão como angustiante (e o mundo não está a sê-lo?), aponta para um outro facto que não devemos, quanto a mim, colocar de lado em Müller: a sua capacidade de «ver» o futuro numa perspectiva tanto tecnológica, como de possibilidades revolucionárias, transformadoras: 

«A derrota da utopia como uma linha de fuga não é necessariamente negativa, uma vez que a utopia exige do indivíduo sacrifício e renúncia. Reduz o valor do presente a favor de uma ficção do futuro. A utopia existe sempre à custa da vida real. A questão que se põe é saber se podemos continuar a pensar o futuro como uma qualidade. Nas estruturas ainda instáveis que entretanto emergiram não é suposto que o indivíduo exista, mas apenas que funcione. Isto abre caminho para que o computador tome o poder. (...)» (pág.157). 

Repete-se: «Nas estruturas ainda instáveis que entretanto emergiram não é suposto que o indivíduo exista, mas apenas que funcione.» Isto foi afirmado numa entrevista dada a Frank M. Raddatz, em 1991!

quinta-feira, março 06, 2025

«A Presa», Irène Némirovsky

 

Cavalo de Ferro, 2021. Tradução de Luísa Benvinda Álvares
Começa-se a ler «A Presa» e pressente-se que a tensão irá aumentar porque os riscos assumidos pelas personagens são visíveis. É evidente que não conseguimos afastar a sua leitura. São vários os motivos: em primeiro lugar, o romance desenvolve-se em 1933, numa França exaurida e com ondas de choque da crise de 1929 nos EUA que, como sabemos, chega tarde ao país devido à autarcia económica e ao nacionalismo. O desemprego e a ausência de políticas sociais são uma realidade. Depois, porque estamos perante um demoliberalismo que exibe a sua própria autodestruição política antes da tomada do poder, por eleições, da efémera Frente Popular. Finalmente, porque Irène Némirovsky sabe, como ninguém, ou seja, por experiência própria, o que a casa gasta no que respeita às lutas intestinas partidárias e financeiras protagonizadas por uma burguesia que perdeu o pé, pensando que a aposta no apoio ao totalitarismo é a única saída. A época que se viveu entre as duas guerras mundiais dão-nos lições que não deveremos nunca esquecer e lembrar-nos como tudo começou, sendo que este «tudo» traduz-se em perto de 100 milhões de mortos nas duas guerras mundiais, para além de cidades arrasadas e de traumas que ainda hoje pagamos, provavelmente sem o sabermos ou errando o diagnóstico da crise social que hoje atravessa o planeta.

Dizia atrás que Irène Némirovsky sabia, por ser testemunha privilegiada, o mundo burguês que a rodeava. Infelizmente, foi isso que aconteceu e sabemo-lo lendo «A Presa». Filha de um banqueiro rico e ucraniano judeu, nasceu em 1903 tendo fugido, jovem, da Rússia soviética quando da revolução de 1917. A viagem passou pela Finlândia, atravessou a Europa e fixou-se finalmente em Paris. A família, pelo que se percebe continuou com a sua actividade banqueira, conhecendo os meandros dos favores políticos e das transacções especulativas financeiras em França que ela descreve como ninguém em «A Presa». De um modo miserável, o regime de Vichy entrega-a aos alemães que a matam em Auschwitz com apenas 39 anos. Por ser judia. 

A narrativa de «A Presa» centra-se na vida de Jean-Luc Daguerne, um pequeno ambicioso, empobrecido pela crise económica, sem emprego, mas que consegue gizar um plano de subida social através de um casamento de conveniência com uma jovem filha de um banqueiro. Todos os passos que dá são calculados ao milímetro, sem que mostre qualquer remorso nas consequências nefastas das suas escolhas para todos os que o rodeiam. Neste caso, a anomia social, a indiferença, o desprezo pelo outro ou pelo sofrimento social, sentimentos que tolhem a Europa entre as duas guerras, é totalmente representada por Jean-Luc Daguerne que cai ruidosamente em si, ainda a meio da vida, quando não consegue o que quer. Perde tudo e acaba com a sua vida, metáfora certeira do que aí vem. A densidade psicológica das personagens são, igualmente, o que dá vida a este romance. Mas interessante é, igualmente, verificar os caminhos ínvios e corruptos de uma política parlamentar já gasta, de todo previsível, cansada, intimamente ligada à banca e jogando com ela. Neste caso as pessoas nada são, tornam-se engrenagens eleitoras, um mecanismo legitimador de um regime em queda. 

«(...) Esse Langon, esse Abel Sarlat, esse Lesourd, adversário de Langon na Câmara dos Deputados, mas que jantava com ele em casa dos Sarlat e o tratava por tu, eram, contudo, eles que dispunham dos bens do regime, eram eles que controlavam as saídas para a liberdade, para o dinheiro, para o poder. Eram aquilo que nunca estivera ao alcance de Jean-Luc: boas relações. Que designação tão simples para uma coisa tão grande! Conheciam todas as plavras-chave...Para eles, nada era difícil, tudo ficava aplanado, suave, entreaberto. Agradar a Langon, a Lesourd, a Sarlat pouparia a Jean-Luc anos de espera, de vãs humilhações. Quando deixava Édith e se encontrava outra vez na rua, depois de um baile, ou no sombrio Ludo, começava a pensar naqueles homens. É certo que eles já o conheciam, mas ele entrava nas suas casas pela porta pequena, reservada à juventude...» (pág.62ee)

Jean-Luc Daguerne não cabe na definição de libertino que coloca os cânones morais em jogo como, por exemplo, um Barry Lyndon, um Sade ou uma personagem de Roger Vailland. É, antes, um Julien Sorel, de «O Vermelho e o Negro» de Stendhal, um arrivista cuja falta de escrúpulos estão em sintonia com a sua época, que não se lhe opõe, antes pelo contrário, quer pertencer-lhe. Aliás, não sei se a presa será Édith Sarlat, filha do banqueiro que casa grávida com Jean-Luc e que após o divórcio se volta para os seus, os de sempre, ou o próprio Jean-Luc que no caminho ínvio que traçou para o seu elevador social, baqueia e fere-se de morte. A presa será ele, não os que ele julga dominar.

Irène Némirovsky tem outros livros publicados em Portugal que valerá a pena conhecer: «O Caso Kurilov», «Dois», «David Golder»...