quinta-feira, março 13, 2025

«O Futuro é o Mal», Heiner Müller

 

Língua Morta, Janeiro de 2025.
Organização e Tradução de Fernando Ramalho
Foi no já longínquo 1992 que me deparei, pelo Teatro da Cornucópia e por Luís Miguel Cintra, com a dramaturgia de Heiner Müller. Em Janeiro, com «A Missão» e, logo em Abril, com «Mauser». Desde aí, não mais me separei dele, dos seus ensaios, da sua poesia e do seu teatro. Caso único que me aconteceu após ter assistido a «Mauser», no Teatro do Bairro Alto: presente com amigos, estive horas, pela noite dentro, sem conseguir dizer uma única palavra. Nem a efervescência dos bares do Bairro me conseguiram arrancar uma única formulação, mesmo rápida, sobre o que senti. Tarde demais, balbuciei qualquer coisa entre «violência», «angústia», «guerra», «aniquilação» pensando que assim, bem vistas as coisas, poderia construir uma síntese desesperada para explicar todo o complexo mundo de Müller. Este livro trouxe-me o que de melhor tem Heiner Müller e por via da Língua Morta e de Fernando Ramalho que o organizou e traduziu. Fez mais do que isso: afastou a lógica cronológica, até certo ponto limitadora da obra do autor, e desenvolveu um livro sólido perante a já citada complexidade do pensamento de Müller. Não tendo sido tarefa fácil, conseguiu-o plenamente com a tradução sustentada, e referida pelo próprio organizador, com os anteriores trabalhos de João Barrento e Adolfo Luxúria Canibal. As entrevistas a Müller são tão esclarecedoras que me pergunto por que razão não as conhecemos antes traduzidas para português. Os seus poemas, a sua biografia, os seus pensamentos e a lógica emprestada por Fernando Ramalho nos seus textos complementares são um exemplo de sobriedade e de seriedade.

«Desespero» e o seu anjo. Era esta a expressão mais evidente e mais lógica que eu poderia ter dito nessa ocasião, em 1992. Retomo a leitura: «O Anjo Desditoso», embora diferente de «O Anjo sem Sorte» da tradução de João Barrento na Relógio D'Água (editado em 1997, um ano após a morte de HM), tem a mesma cadência, nada perde em absoluto, talvez até ganhe mais solidez nas expressões apresentadas e isso acontece igualmente com «O Anjo do Desespero», de 1979, que ganha uma nova força. «O Anjo Desditoso 2», de 1990, que não consta no livro da Rd'A, é escrito após a queda do Muro de Berlim e vale a pena dar-vos a conhecer a versão de Fernando Ramalho neste «O Futuro é o Mal»:

Entre cidade e cidade
Depois do muro o abismo
Vento pelos ombros a estranha
Mão sobre a carne solitária
O anjo ouço-o ainda
Mas ele já não tem outro rosto a não ser
O teu que eu desconheço

Heiner Müller tem uma relação tensa com a Alemanha, tal como vimos em outros autores de língua germânica e aqui lembramo-nos dos austríacos, mais livres de escrutínio antinazi (até sabemos porquê!) que os seus congéneres alemães. Essa tensão é medida nos escritos de HM tanto para a RFA, como para a RDA em que viu os seus escritos serem proibidos ou censurados. Mas o tal «abismo» que ele vê na queda do muro e exposto no poema acima transcrito é apresentado como uma espécie de vazio que nunca poderia ser preenchido numa sociedade capitalista que ele condena com um socialismo que já não o era há muito. Deixou-se morrer, tal como a Revolução de Outubro. O fim de uma era suscita-lhe o tal anjo que ainda o sente, que ainda o ouve, mas que desconhece o rosto antes deformado por Klee ou pelo anjo da História de Benjamim.

Observem a síntese de Fernando Ramalho sobre a escrita de Heiner Müller:
«Além dos mortos, há também muitos dos seus contemporâneos a habitar os seus textos, expressa ou implicitamente. Figuras como Anna Seghers, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Ernst Jünger, Jean Braudillard, Alexander Kluge, entre muitos outros, foram, em tempos e modos diversos, participando desse diálogo incessante com a tradição. Como, de resto, também figuras do seu espaço familiar ou episódios da sua vida: a relação tensa com a memória do pai e do avô, o suicídio da segunda mulher, Inge Müller, a possibilidade de viajar com alguma frequência para fora da RDA, as dificuldades de relação com a RDA e as suas instâncias políticas e culturais, a relação feliz com a sua última mulher, Brigitte Maria Meyer, ou o cancro no final da vida.
A composição desse mosaico povoado de espectros, vozes, labirintos, memórias, sonhos, imagens de uma expressividade e violência sem concessões, implicou sempre, para Müller, um trabalho aturado sobre a linguagem que, com o passar do tempo, foi consolidando uma tonalidade elíptica e fragmentária.» (pág.132,133)

Sobre o título deste livro «O Futuro é o Mal», que alguns, seguramente, entenderão como angustiante (e o mundo não está a sê-lo?), aponta para um outro facto que não devemos, quanto a mim, colocar de lado em Müller: a sua capacidade de «ver» o futuro numa perspectiva tanto tecnológica, como de possibilidades revolucionárias, transformadoras: 

«A derrota da utopia como uma linha de fuga não é necessariamente negativa, uma vez que a utopia exige do indivíduo sacrifício e renúncia. Reduz o valor do presente a favor de uma ficção do futuro. A utopia existe sempre à custa da vida real. A questão que se põe é saber se podemos continuar a pensar o futuro como uma qualidade. Nas estruturas ainda instáveis que entretanto emergiram não é suposto que o indivíduo exista, mas apenas que funcione. Isto abre caminho para que o computador tome o poder. (...)» (pág.157). 

Repete-se: «Nas estruturas ainda instáveis que entretanto emergiram não é suposto que o indivíduo exista, mas apenas que funcione.» Isto foi afirmado numa entrevista dada a Frank M. Raddatz, em 1991!